A citação por meio eletrônico no Indevido Processo Resolucional
Por Eduardo José da Fonseca Costa*
Aos servidores do JEF de Franca
I
Na expressão «devido processo legal» [CF, art. 5º, LIV], legal não é o adjetivo – tão corrente na linguagem coloquial do Brasil e já dicionarizado – que denota qualidades positivas. Não quer dizer «adorável», «afável», «agradável», «amável», «aprazível», bom», «bonito», «divertido», «gentil», interessante», «simpático» ou coisa que o valha. Como não poderia deixar de ser, sendo a Constituição é um texto de direito positivo, legal é empregado por ela em sentido técnico-jurídico, motivo por que significa da lei, prescrito por lei, conforme a lei, definido por lei, estabelecido por lei, que é da lei, que está de acordo com a lei. Logo, a expressão «devido processo legal» significa nada mais nada menos que o «devido processo» minudenciado pela lei, pormenorizado pela lei, regulado pela lei etapa a etapa, detalhado passo a passo pela lei, nos termos da lei, sempre dentro da legalidade, always under law. Todavia, é compete privativa da União legislar sobre direito processual [CF, art. 22, I]. Daí por que o «devido processo legal» é o «devido processo» das leis da União [CF, art. 5º, LIV, c. c. art. 22, I]. Apenas LEI ORDINÁRIA FEDERAL é fonte formal de regras jurídicas infraconstitucionais sobre os múltiplos procedimentos (civil, trabalhista, penal comum, penal militar, penal eleitoral, eleitoral não penal, administrativo sancionatório, administrativo não sancionatório etc.).
É do Poder Legislativo, composto dos representantes eleitos pelo povo, a competência para regular o processo no plano infraconstitucional. Tudo quanto diga respeito aos procedimentos somente pode resultar da vontade omnilateral do povo, não da vontade unilateral de um indivíduo, nem da vontade oligolateral de um colegiado. Não se pode regular matéria processual por meio de medida provisória editada pelo Presidente da República, nem por meio de resolução do Conselho Nacional de Justiça, nem por meio dos regimentos internos dos tribunais, nem por meio de portarias baixadas pelos juízes de primeira instância, nem por meio de portarias da Advocacia-Geral da União. Destarte, a regulação do processo se submete à RESERVA LEGAL ABSOLUTA, não relativa (obs.: sem embargo, a legalidade processual ainda é um não tema na literatura jurídico-científica brasileira, como se a teoria das fontes fosse um tema sem relevância para a processualística). Só o Congresso Nacional pode legislar sobre essa matéria, não se podendo autorizar qualquer outro órgão do Estado a tanto. Nem poderia ser diferente: se todo poder emana do povo [CF, art. 1º, parágrafo único], outrossim, do povo deve emanar todo contrapoder, cabendo ao próprio povo, dessa maneira, estabelecer os limites positivos e negativos do poder que dele emana; logo, também do povo deve emanar a regulação do processo, que é uma garantia constitucional de liberdade o cidadão contra eventuais arbítrios do Estado, um marco negativo ao poder.
II
Por todas essas razões, deve estar sob a reserva absoluta da lei a regulação da CITAÇÃO, que é um dos atos prototípicos do processo. A influenciação exercida pelo acionante mediante o libelo faz nascer para o Estado-juiz o dever de citar o acionado; por princípio de correlação, nasce para o acionado a pretensão de ser citado a fim de que possa exercer a contrainfluenciação [nemo debet inauditus damnari]. É indisfarçável, portanto, que se trata de uma posição jurídica subjetiva ativa que dimana da garantia do contraditório [audiatur et altera pars] [CF, art. 5º, LV]. É um dos seus desdobramentos diretos. É um direito subjetivo fundamental de liberdade do indivíduo em juízo. Com outro dizer, é um direito de defesa ou resistência do cidadão-jurisdicionado contra o Estado-jurisdição (Abwehrrecht gegen den Staat, na dicção utilizada pela teoria liberal alemã dos direitos fundamentais, tal como desenvolvida por BERNARD SCHLINK, BODO PIEROTH, RALF POSCHER, ERNST-WOLFGANG BÖCKENFÖRDE etc.). É-lhe tamanha a importância que, segundo o praxista português MANOEL ÁLVARES PEGAS, a exigência da citação foi contida no direito divino, no direito natural, no direito romano, no direito canônico, no primeiro direito de Castela e, por fim, no direito lusitano (apud AZEVEDO, Luiz Carlos de. O direito de ser citado. São Paulo: Resenha Universitária, 1980, p. 32). A bem da verdade, a citação é um dado social multifacetado, que ultrapassa as fronteiras da juridicidade e que, por conseguinte, pode ser abordado sob perspectivas as mais diversas (teológica, mitológica, antropológica, filosófica, histórica, jurídico-dogmática etc.).
Por intermédio da citação se chama o citado à relação jurídica processual [in ius vocatio], integrando-o nela, angularizando-a, aperfeiçoando-a, completando-a. É um dos momentos mais sensíveis do processo, pois. Daí por que a citação deve ser cercada de um conjunto coeso de formalidades especiais. É preciso assegurar, via de regra, que o citando seja a pessoa do acionado. É necessário garantir, de igual maneira, que o citando tome conhecimento do objeto da causa [editio actionis], dos efeitos jurídicos da citação e das consequências que podem advir da sua eventual revelia. A citação sujeita o acionado aos poderes jurisdicionais considerados in concreto num determinado processo. Submete o acionado, independentemente da sua vontade, a um complexo potencial de atividades oficias de natureza cognitiva, executiva e acautelatória, as quais defluem da soberania estatal. Como se nota, é um ato de suma gravidade, que não pode ficar à mercê de experimentalismos e, por isso, de improvisos infra-, sub-, pseudo– ou extra-legais. De uma vez por todas, não pode ter o seu regime jurídico definido pelos órgãos do próprio Poder Judiciário, em especial pelos órgãos internos de planejamento estratégico, não raro tentados a flexibilizações temerárias por imperativos de eficiência e, em vista disso, por metas de desempenho institucional.
III
Acatando essa lógica, o CPC/2015 estabeleceu, de modo taxativo, cinco modalidades de citação: 1) a citação por meio eletrônico [art. 246, caput]; 2) a citação pelo correio [art. 246, § 1º-A, I]; 3) a citação por oficial de justiça [art. 246, § 1º-A, II]; 4) a citação pelo escrivão ou chefe de secretaria, se o citando comparecer em cartório [art. 246, § 1º-A, III]; 5) a citação por edital [art. 246, § 1º-A, IV]. Sextum non datur. Na hipótese de citação por meio eletrônico, e. g., ela deve fazer-se por meio dos endereços eletrônicos (e-mails) indicados pelo citando no banco de dados do Poder Judiciário, conforme regulamento do Conselho Nacional de Justiça. Assim, não existe previsão legal de citação por Instagram Direct, Messenger, SMS/MMS, iMessage, WhatsApp, Telegram, Discord, X (antigo Twitter), etc. Aliás, essas ferramentas eletrônicas de fato já existiam quando da edição no novo CPC, razão pela qual não se pode alegar um descompasso temporal entre a lei e a realidade tecnológica atual. É claro que o legislador de 2015 elegeu o e-mail como a única ferramenta eletrônica possível para a citação, proscrevendo todas as demais.
Nada obstante, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 354, de 19/11/2020, que autoriza a citação mediante «comunicação eletrônica por aplicativos de mensagens, redes sociais e correspondência eletrônica (e-mail)» (art. 9º, parágrafo único), mesmo que não estejam de antemão registrados em cadastro judiciário. Nesse sentido, o CNJ: a) autoriza a citação por aplicativos de mensagem e redes sociais, que são duas modalidades citatórias não previstas em lei, ferindo o artigo 5º, LIV, c. c. o artigo 22, I, ambos da CF/1988; b) autoriza a citação por e-mail não registrado em cadastro judiciário, ferindo o artigo 246, caput, do CPC. Nem mesmo se pode sustentar que o CNJ esteja regulamentando a forma de citação eletrônica a que alude a Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 (a Lei do Processo Eletrônico); afinal, o artigo 5º da lei mencionada permite esse tipo de citação unicamente àqueles que tenham sido antes cadastrados em portal próprio, conforme disciplinado pelos respectivos órgãos. Sublinhe-se: por força de disposição expressa do artigo 196 do CPC, o Conselho só tem competência para REGULAMENTAR o uso de ferramentas tecnológicas destinadas à comunicação pública de atos processuais por meio eletrônico. A competência para se regularem essas formas comunicativas é do CONGRESSO NACIONAL. A esquematização delas está reservada a uma decisão política dos representantes do povo, nos moldes de uma República, não a uma decisão que gestores judiciários suponham científica, nos moldes de um Tecnado. Em síntese, o povo decide por si como deve ser citado; especialistas não eleitos, por mais experimentados que sejam, não podem decidir por ele. A CF/1988 não confere ao CNJ «capacidade normativa de conjuntura» em matéria de processo, como se questões processuais fossem meras questões circunstanciais de estratégia judiciária.
IV
Há quem invoque a «instrumentalidade das formas» [CPC, artigos 188, 277 e 1.053] para defender que a citação por ferramenta tecnológica não regulada em lei é válida e eficaz, desde que ela tenha alcançado a sua finalidade e não tenha ocorrido prejuízo à defesa. No julgamento do REsp 2.026.925-SP (rel. Min. Nancy Andrighi, j. 08.09.2023), a 3ª Turma do STJ reconheceu que a comunicação de atos processuais por aplicativos de mensagens «não possui nenhuma base ou autorização da legislação e não obedece às regras previstas na legislação atualmente existente para a prática dos referidos atos». No entanto, em julgamento sob segredo de justiça, a mesma turma julgadora ressalvou que, se a citação por WhatsApp «cumprir a sua finalidade, que é dar ciência inequívoca acerca da ação judicial proposta, será ela válida», «ainda que não tenha sido observada forma específica prevista em lei» (<https://encurtador.com.br/fdTCy>). Pois bem, quando se invoca o instrumentalismo para convalidar meios citatórios extralegais, faz-se da citação à tout prix uma divisa, apostando-se na comparência ou na cientificação inequívoca. Abrem-se as portas, assim, para um vale-tudo comunicacional, um faroeste citatório, tolerando-se pombo-correio, drone, serviço de cartório de títulos e documentos, ius in vocatio privada, telefone, telepatia, Instagram Direct, Messenger, SMS/MMS, iMessage, WhatsApp, Telegram, Discord, X (antigo Twitter).
Essa solução insatisfatória dada pela teoria da instrumentalidade das formas – que tem sido um maquinismo de nulidades – deriva da compreensão equivocada do processo como «instrumento da jurisdição». Ora, quando se compreende o processo como uma garantia de liberdade do jurisdicionado [CF, art. 5º, LIV], é natural adotar-se uma teoria da garanticidade das formas (que no Brasil ainda é teoria in fieri, à qual pretendo dedicar-me em artigos futuros). Segundo essa teoria, citação por meio atípico é ato de nullitatis insanabilis, ainda que o citado tenha tido ciência indubitável do objeto da causa, dos efeitos jurídicos da sua citação, bem como das consequências da sua eventual revelia. O vício é suprível, se tanto, pelo comparecimento espontâneo do citado [CPC, art. 239, § 1º]. Com isso, a insanabilidade do vício cumpre uma função quíntupla: 1) impõe sanção pela inobservância aos meios citatórios legais [= função retributiva]; 2) desestimula o juiz a reincidir na inobservância [= função preventiva especial negativa]; 3) estimula o juiz a repensar a inobservância e acatar os meios citatórios legais [= função preventiva especial positiva]; 4) desencoraja os demais juízes de desprezar os meios citatórios legais [= função preventiva geral negativa]; 5) reafirma os meios citatórios legais e reforça, desse modo, a estabilidade do ordenamento jurídico [= função preventiva geral positiva] (obs.: na citação por meio típico inadequado, o ato será nulo se o meio usado in casu for menos protetivo que o prescrito, sendo o vício suprível apenas pela comparência – ex.: citação por correio, embora se prescreva por oficial de justiça; por sua vez, será válido se o meio usado in casu for mais protetivo que o prescrito – ex.: citação por oficial de justiça, embora se prescreva por correio).
V
Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 1.595-A, de 2020 (do Senado Federal), para se prever a intimação eletrônica por meio de aplicativo de mensagens multiplataforma (<https://encurtador.com.br/OkigE >). Seja como for, o projeto se cinge a regular o uso de aplicativo de mensagens multiplataforma para a realização de INTIMACÃO, não de citação. Como se não bastasse, de acordo com o projeto, os advogados e as partes devem manifestar interesse por essa forma de intimação. Isso posto, caso aprovado o projeto, o sistema de direito procedimental civil vigente continuará permitindo a citação eletrônica EXCLUSIVAMENTE pelo e-mail indicado pelo próprio citando em banco de dados do Poder Judiciário [CPC, art. 246, caput]. Enfim, a citação por e-mail constante de cadastro oficial continuará sendo a ÚNICA forma de citação por meio eletrônico aceita no ordenamento jurídico brasileiro. E é bom que seja desse jeito. Como bem frisou a Ministra NANCY ANDRIGHI no voto proferido no julgamento do REsp 2.026.925-SP, «a identificação e a localização de uma parte com um perfil em rede social é uma tarefa extremamente complexa e incerta, pois devem ser consideradas a existência de homônimos, a existência de perfis falsos e a facilidade com que esses perfis podem ser criados, inclusive sem vínculo com dados básicos de identificação das pessoas, bem como a incerteza a respeito da entrega e efetivo recebimento do mandado de citação nos canais de mensagens criados pelas plataformas».
Ao menos sob o ponto de axiológico, é inegável uma hierarquia entre a citação e a intimação, visto que as consequências da primeira são muito mais graves que as da segunda; portanto, não é de se estranhar que o legislador esteja aberto ao uso de aplicativo de mensagens para a intimação, mas não para a citação. A citação deve orientar-se por uma gramática garantístico-estrutural, confinando-se nos quadrantes rígidos do devido processo legal [= devido processo das leis editadas pelo Congresso Nacional = devido processo decorrente da vontade omnilateral do povo = devido processo republicano-democrático]. De algum tempo para cá, porém, ela tem sido capturada por uma verborreia instrumentalístico-funcional, flutuando dentro dos limites frouxos de um indevido processo resolucional [= indevido processo das resoluções editadas pelo CNJ = indevido processo decorrente da vontade oligoteral dos conselheiros do CNJ = indevido processo tecnoaristocrático]. Ao que parece, após a moda das medidas executivas atípicas [CPC, art. 139, IV], o CNJ tenta fazer com que se surfe a onda das «medidas citatórias atípicas». São sempre os mesmos slogans (ou seja, as mesmas palavras de feito com apoio nas quais o instrumentalismo processual procura dobrar as regras legais expressas que o incomodam): «celeridade», «efetividade», «eficiência», «flexibilização», «justiça», «resultados», «simplificação» etc. Em todo o caso, as medidas executivas atípicas têm ao menos amparo legal. Em contrapartida, as «medidas citatórias atípicas»…
*Juiz Federal em Ribeirão Preto/SP. Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor de Mestrado e Doutorado da Universidade de Ribeirão Preto. Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (triênio 2016-2018). Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual. Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual