A inidoneidade do hearsay testimony para abalizar a decisão de pronúncia: uma análise jurisprudencial
Como é sabido, o rito do Júri é composto por duas fases: a primeira, também conhecida como juízo sumariante, que corresponde à instrução processual de processos de rito comum (recebimento da denúncia, citação do acusado para responder à acusação, audiência de instrução e julgamento, apresentação de alegações finais e prolação de sentença); e a segunda, instalada após a prolação de sentença de pronúncia ao final do juízo sumariante, quando se procederá com as providências do art.422, CPP (apresentação de rol de testemunhas, juntada de documentos e requerimento de diligências), e, em seguida, a submissão do processo a julgamento em plenário.
Consoante mencionado acima, o processo apenas seguirá para a segunda fase do rito do Júri em caso de prolação de sentença de pronúncia, ou, em outros termos, quando o juiz estiver convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou participação; oportunidade em que – fundamentadamente- pronunciará o acusado (art.413, CPP).
Quanto a isso, faz-se mister salientar que, no processo penal brasileiro, erigido sobre os pilares de um Estado Democrático de Direito, por opção expressa do legislador constituinte, o ônus de provar a tese de que o fato criminoso foi praticado pelo réu (ou sob suas ordens) recai exclusivamente sobre a acusação, enquanto consequência lógica do princípio da presunção de inocência, consagrado no art.5º, LVII, da CFRB, atuante em todo o curso do processo[1]. Disso decorre que, se o Ministério Público não conseguiu elaborar essa prova até o fim da primeira fase do rito do juri, não há como exigir da defesa que o faça.
Dito de outra forma, se a acusação não produz provas de sua tese até o momento da pronúncia, opera-se a preclusão, pelo que de todo incabível, após toda uma instrução processual frustrada em primeira fase, sem que se tenha atingido um standard probatório suficiente para a pronúncia, levar o caso a plenário para lá provar.
Nesse aspecto, questão relevantíssima nos processos em trâmite perante o rito do júri são os chamados testemunhos de “ouvir dizer” (hearsay testimony) – aqueles prestados por pessoas que não presenciaram diretamente os fatos, tendo apenas ouvido falar sobre eles – e sua consequente imprestabilidade enquanto elemento de prova razoável para sustentar uma sentença de pronúncia, que exige, expressa e categoricamente, um grau superior de convicção.
Dispõe a jurisprudência remansosa dos tribunais superiores que o standard probatório relativo à pronúncia é mais alto que o de uma decisão qualquer, isso em razão de a primeira fase do procedimento do júri constituir filtro processual de legalidade cuja função é evitar a submissão de um indivíduo a julgamento sem provas pelo plenário, onde os jurados terão contato imediato apenas com os elementos já provados. (STF, Segunda Turma, HC nº 180.144, Relator Min. Celso de Mello, julgado em 10/10/2020, DJe 22/10/2020; HC n. 589.270/GO, Relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 23/02/2021, DJe de 22/3/2021; HC n. 560.552/RS, Relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 23/2/2021, DJe de 26/2/2021.)
Nessa toada, entende pacificamente o Superior Tribunal de Justiça ser de todo insuficiente o testemunho por “ouvir dizer” (hearsay testimony) para lastrear a sentença de pronúncia, tudo isto dada a sua falta de corpulência probatória. Colaciona-se:
PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PRONÚNCIA BASEADA, APENAS, EM DEPOIMENTOS COLHIDOS NA FASE POLICIAL. ILEGALIDADE. DEPOIMENTO EM JUÍZO DE “OUVI DIZER”. RELATOS INDIRETOS. FUNDAMENTO INIDÔNEO PARA SUBMISSÃO DO ACUSADO AO JÚRI. AGRAVO NÃO PROVIDO.
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- Segundo entendimento desta Corte Superior, o testemunho de “ouvir dizer” ou hearsay testimony não é suficiente para fundamentar a pronúncia, não podendo esta, também, encontrar-se baseada exclusivamente em elementos colhidos durante o inquérito policial, nos termos do art. 155 do CPP.
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- Agravo regimental não provido.
(AgRg no AgRg no AREsp n. 2.097.753/MG, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe de 8/8/2022)
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“HABEAS CORPUS. HOMICÍDIOS QUALIFICADOS TENTADOS. NULIDADE. PRONÚNCIA FUNDAMENTADA EXCLUSIVAMENTE EM TESTEMUNHOS INDIRETOS, CONTRADITÓRIOS E ELEMENTOS DE INFORMAÇÃO COLETADOS NA FASE INQUISITORIAL. OFENSA AO ART. 155 DO CPP. IMPOSSIBILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. PACIENTE DESPRONUNCIADO.
(…)
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- É ilegal a sentença de pronúncia baseada, unicamente, em testemunhos colhidos no inquérito policial, de acordo com o art. 155 do Código de Processo Penal, e indiretos – de ouvir dizer (hearsay) -, por não se constituírem em fundamentos idôneos para a submissão da acusação ao Plenário do Tribunal do Júri.
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- Ordem de habeas corpus concedida para despronunciar o paciente, sem prejuízo de formulação de nova denúncia, nos termos do art. 414, parágrafo único, do Código de Processo Penal.
(HC n. 706.735/RS, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, DJe de 17/2/2023)
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HABEAS CORPUS. HOMICÍDIOS QUALIFICADO E TENTADO QUALIFICADO. PRONÚNCIA. TESTEMUNHO INDIRETO (POR “OUVIR DIZER”) . IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE OUTROS INDÍCIOS DE AUTORIA. IMPRONÚNCIA.
I – “O testemunho indireto (também conhecido como testemunho de” ouvir dizer “ou hearsay testimony) não é apto para comprovar a ocorrência de nenhum elemento do crime e, por conseguinte, não serve para fundamentar a condenação do réu . Sua utilidade deve se restringir a apenas indicar ao juízo testemunhas referidas para posterior ouvida na instrução processual, na forma do art. 209, § 1º, do CPP”(AREsp n. 1940381/AL, rel. Min . Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 14/12/2021, DJe 16/12/2021.)
II – In casu, não há indícios mínimos de autoria suficientes a ensejar a pronúncia, na medida em que o único depoimento que imputa ao paciente a autoria delitiva se refere a testemunho indireto (por “ouvir dizer”), inadmissível pela jurisprudência para tanto. Precedentes.
III – Habeas corpus concedido. Impronúncia de Fabio Fogassa (Processo n. 5006505-64.2017.8 .21.0001 – 2ª Vara do Júri do Foro Central de Porto Alegre).
(STJ – HC: 842157 RS 2023/0267366-0, Relator.: Ministro JESUÍNO RISSATO DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJDFT, Data de Julgamento: 28/11/2023, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/12/2023)
Da mesma forma, entende Manzini que [2]:
“as atestações indiretas, os conhecimentos reflexos, as deposições por ter ouvido dizer, não tem caráter de testemunho, senão que apenas podem ser consideradas como elementos inseguros de informações”
Sendo assim, considerando que o testemunho de ouvir dizer é prestado por pessoa que não viu ou presenciou os fatos, mas que, em sentido contrário, ouviu a narrativa de alguém, deve ser considerado imprestável, dado que frágil e sem credibilidade, permeado por elementos subjetivos de juízo de valor, que em nada se coadunam com a análise concreta e objetiva da situação objeto do processo-crime.
Consequentemente, considerando que cumpre à acusação produzir as provas necessárias a constituir um standard probatório mínimo a abalizar uma sentença de pronúncia, o hearsay testimony, ao passo que não possui, isoladamente, força probante suficiente para alterar o status de dúvida que paira sobre o caso, revela-se absolutamente inidôneo para lastrear tal decisão.
Notas e Referências:
BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Dispõe sobre o Código de Processo Penal. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em: 15 de maio de 2025.
NICOLITT, André. Manual de processo penal, 10ª ed. Belo Horizonte. Editora D´Plácido, 2020, P.210.
MANZINI, Vicenzo. Tratado de Derecho Processual Penal. Trad. Buenos Aires, 1952, III, p.254
[1] NICOLITT, André. Manual de processo penal, 10ª ed. Belo Horizonte. Editora D´Plácido, 2020, P.210.
[2] MANZINI, Vicenzo. Tratado de Derecho Processual Penal. Trad. Buenos Aires, 1952, III, p.254