A mão pesada do Estado e o leite amargo da realidade para as mães brasileiras: uma análise comportamental necessária
Recentemente, ao ir a uma farmácia comprar leite infantil, tive a informação sobre a proibição governamental de descontos em leites infantis e acessórios (mamadeiras, bicos etc.), sob o pretexto de incentivar a amamentação – escancara, mais uma vez, a desconexão entre a idealização estatal e a dura realidade vivida pela população, em especial pelas mães brasileiras, notadamente as de baixa renda. Longe de ser um caminho eficaz para promover o aleitamento materno, essa medida revela uma ingerência descompassada na dinâmica social e econômica, ignorando as complexas engrenagens que moldam as decisões familiares.
O cerne da questão reside em uma pergunta fundamental: o arrocho financeiro na aquisição de um produto essencial é a chave para fomentar uma prática que esbarra em obstáculos estruturais profundos? Ao invés de construir pontes de apoio, o Estado ergue barreiras de custo, penalizando justamente aquelas que mais necessitam de suporte.
Pensemos nas mães de baixa renda, diariamente confrontadas com a árdua tarefa de conciliar a maternidade com a atividade econômica. A escassez de creches públicas, agravada por horários de funcionamento frequentemente incompatíveis com as jornadas de trabalho, as obriga a depender da boa vontade de vizinhos e familiares para o cuidado de seus filhos. Essa terceirização do cuidado, embora paliativa, impõe uma questão inegável: como garantir a nutrição adequada dessas crianças quando suas mães estão ausentes, labutando para garantir o sustento familiar? A resposta, por vezes dolorosa, reside na suplementação com fórmulas infantis.
É nesse ponto que a proibição de descontos se revela cruel. A teoria dos seis meses de licença-maternidade garantida esbarra na fria estatística do mercado informal. Segundo dados do DIEESE, uma parcela expressiva das mulheres brasileiras – alarmantes 43,3% em nível nacional e ainda mais preocupantes 56,8% em Pernambuco, no ano de 2023 – atua na informalidade, desprovida de qualquer direito trabalhista, incluindo a licença-maternidade. Para essas mulheres, a escolha entre alimentar seus filhos e garantir o mínimo para a família é uma encruzilhada diária.
O resultado dessa política pública míope é previsível e perverso. Diante da impossibilidade de arcar com os custos elevados das fórmulas infantis, muitas mães recorrem a alternativas nutricionalmente inferiores e potencialmente prejudiciais à saúde de seus filhos, como compostos lácteos mais baratos ou “cereais” infantis. Em um país onde a renda média familiar per capita era de R$ 2.069 em 2024 (IBGE), e onde uma lata de leite infantil pode onerar o orçamento em até R$ 110, o impacto financeiro é devastador, especialmente para os que vivem com uma renda média de apenas R$ 759,00.
Essa lógica punitiva se estende à aquisição de acessórios, cuja qualidade é crucial para o desenvolvimento saudável dos bebês. Ao encarecer esses itens, o Estado indiretamente expõe as crianças a produtos de qualidade duvidosa, com potenciais danos à sua saúde.
Ademais, a política ignora uma parcela significativa de mães que, por razões biológicas ou psicológicas, não conseguem amamentar adequadamente seus filhos, em decorrência do baixo fluxo de leite materno. Uma pesquisa com mais de 5 mil mães brasileiras revelou que 19% não conseguiram amamentar, e esse índice sobe para 31% quando se trata de aleitamento materno exclusivo até os seis meses. Essa realidade clama por soluções que vão além da imposição financeira, oferecendo suporte médico, psicológico e informacional para essas mulheres.
A insistência em uma política pública que desconsidera dados socioeconômicos cruciais, a realidade do mercado de trabalho informal e as dificuldades enfrentadas pelas mães demonstra uma falha grave na gerência estatal. A forma de pensar é o inverso: o sucesso dos métodos aplicados estará vinculado em como a ação estatal irá induzir comportamentos de indivíduos que na grande maioria das vezes se comportam de forma irracional. A ausência de uma análise aprofundada e da aplicação dos princípios da economia comportamental, que poderiam oferecer insights valiosos sobre os reais motivadores e as barreiras ao aleitamento materno, resulta em uma intervenção ineficaz e injusta.
A economia comportamental, com suas ferramentas de “nudges”, oferece um caminho alternativo e mais eficaz para a elaboração de políticas públicas. Nudges são formas de elaborar políticas públicas por meio de uma arquitetura de escolhas com o escopo de conduzir decisões individuais em direções que são do melhor interesse individual ou social. Ao invés de proibir descontos, o Estado poderia utilizar nudges de forma transparente, como alertas informativos sobre os benefícios do aleitamento materno e os riscos do uso inadequado de fórmulas, ou criar “defaults” que facilitem o acesso a serviços de apoio à amamentação.
Para isso, é fundamental que o Estado invista em pesquisa e coleta de dados para compreender as preferências e os comportamentos das mães, adaptando as políticas públicas às suas necessidades e realidades. Governos como o britânico e o americano já estruturaram sistemas de pesquisa social utilizando a economia comportamental, obtendo avanços significativos na gestão pública.
Em vez de proibir descontos, o Estado deveria concentrar seus esforços em construir uma rede de apoio abrangente: ampliação do acesso a creches públicas com horários flexíveis, políticas de apoio à maternidade para trabalhadoras informais, campanhas de informação eficazes e acessíveis, suporte profissional para mães com dificuldades em amamentar e, crucialmente, políticas de transferência de renda que permitam às famílias de baixa renda garantir a nutrição adequada de seus filhos, seja através do aleitamento materno apoiado ou da suplementação necessária.
A proibição de descontos em leites infantis e acessórios não é um incentivo à amamentação; é um fardo adicional imposto às famílias que já lutam contra a desigualdade e a falta de oportunidades; além de elevar o custo das famílias brasileiras. É mais um exemplo de como a mão pesada do Estado, desprovida de sensibilidade, dados e análises comportamentais, e ancorada em uma visão simplista da realidade, pode agravar as dificuldades da população, deixando um gosto amargo onde deveria haver o doce sustento da maternidade.