A Regulamentação Municipal das Apostas de Quota Fixa: Competência Federativa, Receita Pública e os Riscos de Evasão Regulatória
Pedro de Menezes Carvalho[1]
Ticiano Torres Gadelha[2]
Marcelo Bueno M. Carneiro[3]
No contexto da federação brasileira, os municípios ocupam posição central na entrega de serviços públicos essenciais, especialmente nas áreas de saúde, educação e assistência social. No entanto, essa atribuição de responsabilidades não se reflete proporcionalmente na estrutura de arrecadação municipal, historicamente limitada diante das crescentes demandas locais. Dados recentes da Secretaria do Tesouro Nacional revelam que, em média, os municípios brasileiros dependem em mais de 60% de suas receitas de transferências da União, com margem reduzida para geração própria de recursos. Neste cenário, a regulamentação da atividade de apostas de quota fixa por entes municipais surge como uma possibilidade concreta de diversificação de receitas, mas também como uma fonte de tensão federativa e insegurança regulatória.
A promulgação da Lei nº 14.790, de 29 de dezembro de 2023, disciplinando a exploração das apostas de quota fixa no território nacional, consolidou a centralidade da União na normatização da atividade, criando um sistema de outorga sob supervisão da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda. Embora a lei não trate expressamente da competência dos municípios, a omissão acaba, na prática, por restringir sua participação na arrecadação proveniente desse novo setor econômico. Isso motivou um conjunto de municípios a buscar caminhos próprios para estabelecer sistemas locais de credenciamento, com base na autonomia política garantida constitucionalmente e no entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que a exploração de loterias pode ser exercida por todos os entes federados.
O cerne da controvérsia jurídica foi elevado à análise do STF por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 1212, proposta pelo partido Solidariedade. A ação questiona a legalidade das iniciativas municipais de regulamentação e exploração de apostas lotéricas, invocando, entre outros fundamentos, o artigo 22, inciso XX, da Constituição Federal, que atribui à União a competência para legislar sobre sistemas de consórcios e sorteios. O partido alega que a proliferação de loterias municipais compromete a ordem regulatória nacional, gera assimetrias concorrenciais e favorece distorções de mercado, exemplificando com o caso do município de Bodó (RN), que teria credenciado dezenas de operadores sem seguir os padrões técnicos e de segurança exigidos em nível federal.
De outro lado, os defensores da competência municipal argumentam que a Constituição permite a exploração de atividades lotéricas por todos os entes federativos, e que a Lei 14.790 não poderia, por si só, restringir esse direito. Citam precedentes do STF, como os votos dos ministros Gilmar Mendes (na ADPF 492) e Alexandre de Moraes (na ADPF 493), que reconheceram a legitimidade da atuação de estados e municípios na instituição de suas próprias loterias, desde que respeitados os princípios constitucionais e os direitos fundamentais dos consumidores.
Sob essa perspectiva, o avanço das apostas de quota fixa em nível municipal pode ser visto como um reflexo do federalismo cooperativo, no qual cada ente busca formas legítimas de ampliar sua base arrecadatória. Estudo recente da Leme Consultores projeta que a regulamentação municipal poderia injetar até R$ 8 bilhões por ano nos cofres públicos, por meio da regularização de pequenos e médios operadores que não conseguem arcar com os altos custos da outorga federal. O modelo, portanto, teria potencial para impulsionar a economia local, fomentar o empreendedorismo e reduzir a informalidade do setor.
Contudo, essa aparente solução carrega consigo um risco sistêmico: a utilização dos municípios como uma via paralela para driblar os critérios técnicos, financeiros e regulatórios estabelecidos pela União. Na ausência de uma estrutura federal robusta de coordenação, operadores podem buscar municípios com menor rigor fiscalizatório para se credenciarem, ampliando sua atuação para além dos limites territoriais de origem, inclusive por meio de plataformas online. Esse movimento não apenas ameaça a eficácia da regulamentação nacional, como também fragiliza a própria credibilidade do mercado de apostas, tornando-o mais vulnerável a práticas ilícitas e à lavagem de dinheiro.
O desafio, portanto, está em equilibrar a legítima autonomia municipal com a necessidade de garantir padrões mínimos de governança, integridade e supervisão. Para isso, uma possível solução seria a criação, pelo Congresso Nacional, de uma moldura normativa de caráter geral — uma regulamentação-quadro — que reconheça a competência dos municípios, mas condicione sua atuação ao cumprimento de critérios uniformes e auditáveis. Tal estrutura poderia incluir exigências técnicas mínimas, parâmetros de transparência, integração de dados com a União e mecanismos cooperativos de fiscalização.
Por fim, impõe-se uma reflexão sobre a capacidade operacional dos municípios brasileiros para desempenhar a função regulatória e fiscalizatória de um setor tão sensível. A maioria das prefeituras carece de expertise técnica, recursos humanos qualificados e ferramentas tecnológicas para monitorar a atividade de operadores lotéricos de forma eficaz. Nesse ponto, é razoável cogitar a delegação parcial da fiscalização à União, por meio de consórcios públicos, convênios intergovernamentais ou sistemas de compartilhamento de informações. A ausência de um modelo integrado pode transformar uma oportunidade fiscal em um risco institucional.
Caso o Supremo Tribunal Federal reconheça a legitimidade dos municípios para regulamentar e explorar as apostas de quota fixa, é recomendável que, além da elaboração de uma regulamentação-quadro com diretrizes mínimas obrigatórias, seja instituído um sandbox regulatório sob coordenação federativa. Esse ambiente controlado permitiria que os municípios testassem, de forma supervisionada e temporária, modelos próprios de regulação e operação, com delimitação clara de escopo, objetivos e métricas de desempenho. A iniciativa seria acompanhada de uma análise de impacto regulatório (AIR), com coleta e sistematização de dados sobre desempenho econômico, riscos operacionais, efeitos concorrenciais e capacidade de fiscalização. Apenas com evidências concretas será possível avaliar, com segurança, a viabilidade, os benefícios e os riscos da descentralização desse mercado, prevenindo distorções e promovendo ajustes normativos embasados em dados reais.
Outro aspecto que deverá ser cuidadosamente considerado — caso o STF reconheça a competência municipal — é a imposição de mecanismos efetivos de controle administrativo sobre a operação das apostas, exercendo, assim, o poder de polícia. Entre esses mecanismos, destaca-se a obrigatoriedade de sistemas de geolocalização que assegurem que todas as apostas estejam efetivamente sendo realizadas dentro dos limites territoriais do município. Essa exigência, embora essencial para preservar a competência local e evitar extrapolações indevidas, representa um desafio significativo do ponto de vista técnico e financeiro. Além disso, será necessário garantir que o operador tenha viabilidade econômica para sustentar a operação lotérica em nível municipal, o que pressupõe a existência de um mercado consumidor mínimo. Portanto, como condição para o credenciamento, deve-se exigir a demonstração prévia da viabilidade econômico-financeira da atividade, com base em estudos de mercado e projeções realistas.
Da mesma forma que os municípios buscam consolidar sua competência regulatória, é fundamental assegurar o equilíbrio do pacto federativo, evitando sobreposição de competências entre municípios ou conflitos com a função reguladora da União. A criação de um sistema funcional e legítimo exige que os diferentes níveis de governo atuem de maneira coordenada, respeitando seus limites e responsabilidades institucionais. O objetivo maior deve ser a construção de um ambiente regulatório íntegro, previsível e saudável, que inspire confiança, promova a concorrência leal e evite disputas jurisdicionais que comprometam a estabilidade do setor.
A experiência internacional oferece lições valiosas sobre os riscos práticos associados à regulamentação de jogos, especialmente em contextos descentralizados ou com carga tributária elevada. Na Holanda, por exemplo, o aumento progressivo da alíquota de impostos sobre jogos impactou negativamente a sustentabilidade do setor. Tanto operadoras físicas quanto plataformas online enfrentaram severas dificuldades para manter a lucratividade, o que levou ao encerramento de diversas operações. Como consequência, a Autoridade Holandesa de Jogos (Kansspelautoriteit – KSA) passou a alertar para o risco iminente de que máquinas caça-níqueis desativadas migrem para o mercado ilegal. Ao serem vendidas sem critérios, esses equipamentos — profissionais e de alto valor — podem ser operados por agentes não licenciados, em ambientes desprovidos de qualquer controle institucional, sem políticas de identificação do jogador (KYC) ou medidas de prevenção à ludopatia. A KSA intensificou a fiscalização e notificou compradores identificáveis sobre as exigências legais para instalação e operação de tais equipamentos, inclusive a obrigatoriedade de licenciamento específico junto às prefeituras. Apesar dessas ações, os dados são preocupantes: somente na segunda metade de 2024, mais da metade da receita do setor holandês foi direcionada a sites internacionais não licenciados, demonstrando que um regime regulatório mal calibrado — seja por excesso tributário ou falta de coordenação — pode favorecer justamente o que se pretende combater: a evasão para o mercado informal e o enfraquecimento da proteção ao consumidor.
Em síntese, a regulamentação municipal das apostas de quota fixa não é, por si, inconstitucional. No entanto, sua implementação descoordenada e fragmentada compromete a unidade do sistema regulatório nacional e cria incentivos para a evasão de controles. A construção de um modelo federativo equilibrado, transparente e tecnicamente qualificado é essencial para que essa nova fronteira econômica se transforme em uma fonte sustentável de arrecadação e não em um vetor de insegurança jurídica. Opções devem ser estudadas e testadas, entre elas a viabilidade de criação de consórcios municipais. São longos caminhos a serem seguidos, mas sempre deve-se ter o foco um ambiente regulatório íntegro, previsível e saudável.
Notas e Referências:
[1] Advogado e professor universitário com mestrado em Direito pela UFPE. Especialista em Contratos pela Harvard University e em Negociação pela University of Michigan. Advogado na área de Regulação, Negócios, Energia e Financeira. Experiência destacada na docência na UNICAP, IBMEC e PUCMinas.
[2] Extensão pela FGV/RJ, Especialização em Direito da Propriedade Intelectual pela PUC Rio, mestrando pelo INPI/UFRJ
[3] Advogado e Diretor Jurídico, Riscos e LGPD do Z.ro Bank, especialista em Direito dos Contratos pela PUC/SP; em meios de pagamentos e criptomoedas; em Negociação pela University of Michigan e Co-Chair na International Betting Integrity Association..