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Agressões em código: como o meio ambiente digital molda a violência escolar

Por Christiany Pegorari Conte* e 

Ana Clara Simielli Sparvoli**.

 

A violência nas escolas brasileiras tem ganhado contornos alarmantes nos últimos anos, reflexo de tensões sociais, emocionais e estruturais que ultrapassam os muros escolares. Nesse contexto, surge a recente série “Adolescência”, veiculada no streaming Netflix, retratando a história de um adolescente de 13 anos que provoca a morte de uma colega de escola, trouxe à tona o debate sobre a violência escolar, principalmente, situações que envolvem o bullying/cyberbullying.  A obra ressalta, dentre outros pontos de reflexão, o papel dos pais e da escola na compreensão desse contexto de violência digital que também reverbera fora do ambiente da internet, envolvendo crianças e adolescentes (pessoas em processo de desenvolvimento e muito mais suscetíveis à riscos, influências e manipulações).

Também recentemente, a Revista FAPESP (edição 350, abril/2025), publicou matéria de capa destacando um aumento da violência escolar no Brasil nos últimos 10 anos. A publicação aponta como causas desse cenário, a escassez de políticas voltadas para a convivência escolar, a precarização das unidades de ensino, a desvalorização da atividade docente e a relativização dos discursos de ódio, dentre outros fatores[1].

A série e a matéria a Revista FAPESP dialogam ao abordar os episódios de violência escolar e o papel que as comunidades virtuais mórbidas (grupos online que abordam ou incitam a violência, suicídio, automutilação e comportamentos autodestrutivos de maneira geral) e os discursos de ódio (estimuladores de hostilidade e de discriminação contra grupos em virtude de raça, gênero, etnia, religião, orientação sexual etc.) desempenham nesse contexto. Isso é especialmente preocupante diante de uma juventude cada vez mais conectada, em grande parte por meio de redes sociais e aplicativos de mensagens, e que estão presentes no ambiente digital cada vez mais cedo: cerca de 80% das crianças em países ocidentais têm presença online antes mesmo de completar 2 anos de idade – através de compartilhamento feito por pais e familiares, conhecido como “sharenting”[2].

Nesse ambiente, expressões, como a apontada na série (“incel” – celibatário involuntário), e o uso específico de emojis (símbolos) constituem uma linguagem própria, utilizada como instrumento de exclusão, humilhação pública e violência simbólica. Pior: esses códigos circulam com rapidez e muitas vezes escapam do controle de pais, responsáveis e até das instituições escolares, ou seja, mesmo que os pais monitorem as redes sociais dos filhos, podem não compreender as mensagens transmitidas em determinado conteúdo postado. Por trás de piadas rápidas, memes aparentemente inofensivos e gírias que viralizam nas redes, um novo tipo de violência tem ganhado espaço dentro — e fora — dos muros escolares. O bullying tradicional, marcado por apelidos ofensivos, exclusões e agressões físicas, agora assume contornos digitais, com linguagem própria e códigos quase indecifráveis para adultos. Trata-se de uma forma silenciosa, camuflada, mas profundamente nociva de violência: o cyberbullying escolar.

A legislação brasileira vem se preocupando com essas questões: além do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), temos: a Lei n. 13.185/2015, dispondo sobre a política nacional de prevenção e combate à intimidação sistemática; a Lei n. 13.663/2018, que inclui nas atribuições das escolas a promoção da cultura da paz e de conscientização, prevenção e combate a diversos tipos de violência, como o bullying; a Lei n. 14.811/2024, que criminaliza a intimidação sistemática presencial e virtual (art. 146-A do Código Penal), além de estabelecer medidas de proteção à crianças e adolescentes nos estabelecimentos educacionais, reforçando a responsabilidade das instituições de ensino e exigindo uma atuação mais ativa na prevenção e mitigação das situações que envolvam violência escolar.

Para as escolas, o desafio é implementar políticas de compliance educacional que incluam canais de denúncia anônima, protocolos de intervenção e formação continuada de educadores em cultura digital. Muitas instituições ainda atuam de forma reativa, lidando com as consequências sem investir em prevenção ou diagnóstico precoce.

A educação digital surge, então, como peça-chave. Ela não se limita a ensinar como usar a tecnologia, mas envolve desenvolver senso crítico, empatia e responsabilidade no uso da internet. Promover rodas de conversa, oficinas de linguagem online e dinâmicas de escuta ativa pode ajudar os jovens a compreenderem o peso de suas palavras e atitudes no ambiente virtual. As crianças precisam de mais do que alfabetização digital, precisam de competências críticas para interpretar e reagir a conteúdos online de forma segura.

Do lado das famílias, é essencial cultivar o diálogo aberto e observar sinais de alerta. Mudanças bruscas de comportamento, evasão escolar, queda no rendimento, isolamento, agressividade ou vício em redes sociais podem indicar que algo está fora do eixo. Os pais não precisam entender todas as gírias, signos ou plataformas, mas devem estar atentos ao conteúdo consumido, à frequência de uso e às emoções que emergem dessas interações.

Somente a existência da legislação não é suficiente e quando chegamos na fase de criminalização, optando pela via do direito penal, significa que fracassamos em todos os aspectos e caminhos que antecedem a situação de violência. A prevenção é sempre a melhor estratégia e ela demanda uma construção conjunta de espaços de diálogos que envolvam pais, instituições de ensino (professores, diretores, funcionários), poder público (especialmente os órgãos de proteção à crianças e adolescentes) e comunidade.

O universo digital não é o vilão, mas um espelho das dinâmicas sociais contemporâneas. Cabe a todos — educadores, pais, alunos e gestores — decifrar os códigos dessa nova linguagem para que, em vez de agressão, ela seja ferramenta de expressão, inclusão e respeito. Decifrar os códigos da era digital é um desafio coletivo — e, se feito com empatia, responsabilidade e escuta, pode transformar agressões em pontes de diálogo e inclusão.

 

Notas e Referências:

* Advogada. Pós Doutoranda no Projeto Égide pelo PPGD PUC Campinas. Doutora em Educação pela PUC Campinas. Mestre em Direito da Sociedade da Informação pela FMU. Professora de Direito Penal e Processual Penal da PUC Campinas.

** Estudante da Graduação em Direito na PUC-Campinas.

[1] Violência escolar aumenta nos últimos 10 anos no Brasil : Revista Pesquisa Fapesp. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/violencia-escolar-aumenta-nos-ultimos-10-anos-no-brasil/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=ed350&utm_id=abr25. Acesso em: 17/04/25.

[2] Disponível em: https://iclnoticias.com.br/compartilhamento-excessivo-de-fotos-por-pais/. Acesso em: 17/04/25.

 

Colunista

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Lucas Laurentiis
Professor Titular Categoria A1 da PUC-Campinas. Coordenador e membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito (PPGD), vinculado à linha de pesquisa "Cooperação Internacional e Direitos Humanos". Mestre e doutor em Direito constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi pesquisador visitante com bolsa CAPES sanduíche da Albert Ludwigs Universität Freiburg e do Instituto Max Planck de Freiburg. É especialista em Direito constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. . Foi professor nos cursos de especialização e pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Foi professor e orientador da Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público. Foi pesquisador e professor convidado da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e Membro da comissão de Direito constitucional da OAB-SP. . Atua nas áreas de direito público, liberdade de expressão e proteção de dados

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