Arbitrabilidade e Insolvência: comentários ao Recurso Especial nº 2163463
A crescente sofisticação das relações comerciais e a difusão da arbitragem como método de resolução de controvérsias impõem uma reavaliação crítica dos limites da arbitrabilidade em contextos de crise empresarial. Em particular, a incidência do regime jurídico da recuperação judicial e da falência sobre litígios que envolvem direitos patrimoniais disponíveis suscita tensões normativas relevantes: de um lado, a autonomia privada e a força obrigatória da convenção de arbitragem; de outro, a tutela da coletividade de credores e a ordem pública concursal.
A presente análise parte desse ponto de fricção para examinar em que medida determinadas matérias — como a compensação de créditos sujeitos ao concurso — podem ou não ser submetidas à jurisdição arbitral, à luz da legislação vigente, da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. O objetivo é delimitar os contornos da arbitrabilidade objetiva e subjetiva à luz do direito da insolvência, destacando os riscos de esvaziamento funcional da arbitragem e de hipertrofia da jurisdição estatal em contextos sensíveis.
No âmbito da recuperação judicial e da falência, a indisponibilidade de bens adquire contornos específicos, regulados pela Lei nº 11.101/2005. O cerne do problema está na existência de um arcabouço normativo específico que, por razões de interesse público, exclui determinadas matérias da esfera arbitral. Há um conjunto de disposições especiais que vedam a arbitragem para certas questões, ainda que envolvam essencialmente direitos patrimoniais.
A doutrina indica que temos uma verdadeira uma limitação jurídica imposta para resguardar a ordem pública e a função social do processo falimentar, afastando, nesse contexto, a aplicação irrestrita do critério geral de arbitrabilidade objetiva[1].
Além disso, defende-se — com razão, a meu ver — que, ainda que determinadas matérias não estejam formalmente excluídas do âmbito arbitral e, em tese, possam ser resolvidas por esse meio, há contextos em que a arbitragem se mostra inviável ou desaconselhável. A complexidade dos interesses em jogo nos processos falimentares, aliada ao potencial impacto sistêmico das decisões arbitrais, exige prudência na definição do foro competente. Nessas situações, a objeção não decorre de uma proibição jurídica, mas de uma inadequação prática[2].
Na recuperação judicial, fundamentada no art. 47, a indisponibilidade visa assegurar a preservação da empresa como fonte de geração de empregos, tributos e desenvolvimento econômico, condicionando a alienação de bens à aprovação no plano de recuperação (art. 50).
Já na falência, a indisponibilidade é intensificada, abrangendo tanto os bens da massa falida quanto, eventualmente, os bens particulares de réus responsáveis por atos que causem prejuízo à massa, conforme o art. 82, § 2º, que permite ao juiz, de ofício ou a requerimento, decretar a indisponibilidade em proporção ao dano causado. Ademais, o art. 154, § 5º, reforça essa proteção ao prever que a rejeição das contas do administrador judicial pode implicar a determinação de indisponibilidade ou sequestro de bens, servindo ainda como título executivo para ressarcir a massa.
A reforma introduzida pela Lei nº 14.112/2020, ao acrescentar o § 9º ao artigo 6º da LRF, reforça a autonomia da convenção de arbitragem mesmo diante do processamento da recuperação judicial ou da decretação da falência. Até porque, veja bem, o simples deferimento do processamento da recuperação judicial não possui, por si só, o efeito de alterar a natureza jurídica do crédito discutido nem de desqualificá-lo como direito patrimonial disponível.
Conforme reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça, a submissão de uma das partes ao regime concursal não transmuta a essência do crédito perseguido no âmbito arbitral, tampouco converte automaticamente a controvérsia em matéria inarbitrável[3]. A jurisdição arbitral continua apta a reconhecer e quantificar tais créditos, especialmente quando o litígio antecede a crise empresarial e não interfere, de modo direto ou imediato, na execução coletiva.
A contrário sensu, admitir que qualquer pedido de recuperação judicial seja suficiente para deslocar a competência da arbitragem representaria, na prática, um esvaziamento da cláusula compromissória e da regra da kompetenz-kompetenz, desestabilizando o regime jurídico de resolução privada de litígios.
O dispositivo impede que o administrador judicial simplesmente rejeite a eficácia da convenção de arbitragem, tampouco permitindo que o regime falimentar suspenda ou impeça a instauração do procedimento arbitral. Contudo, essa regra não resolve, por si só, todas as questões sobre a arbitrabilidade no contexto falimentar. Isso porque a efetiva aplicação da cláusula compromissória deve ser analisada à luz da natureza do litígio e dos efeitos que a arbitragem pode gerar sobre o concurso de credores e a preservação da empresa.
Isso porque o controle da arbitrabilidade pode ser realizado posteriormente pelo Poder Judiciário. Assim, ainda que a norma reconheça a continuidade da arbitragem nesses cenários, a adequação do foro arbitral dependerá da compatibilidade entre a disputa submetida ao juízo arbitral e os regimes jurídicos concursais. É dizer: o juízo estatal pode ser chamado a intervir, seja para confirmar a arbitrabilidade, seja para afastá-la quando sua aplicação não preencher algum dos requisitos previstos no art. 1 da Lei 9.307/96.
Esse controle ex post foi precisamente exercido pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 2.163.463/SP, que declarou a nulidade parcial de sentença arbitral que havia reconhecido a possibilidade de compensação entre créditos recíprocos, sendo um deles sujeito ao processo de recuperação judicial.
Na ocasião, a Corte reconheceu que, embora a cláusula compromissória remanesça eficaz mesmo após o deferimento da recuperação judicial (arbitrabilidade subjetiva), certas matérias — como a compensação de créditos sujeitos ao concurso — extrapolam os limites da arbitrabilidade objetiva. Isso porque, a partir do deferimento do processamento da recuperação, os direitos individuais dos credores se submetem a um regime jurídico especial, voltado à organização da crise e à proteção da par conditio creditorum. A compensação, como forma de extinção de obrigações, perderia sua natureza de direito patrimonial disponível e ingressa na órbita da indisponibilidade qualificada.
A Corte, enfim, entendeu que o § 9º do art. 6º da LRF não pode ser interpretado como salvo-conduto irrestrito à jurisdição arbitral. A norma reafirma a eficácia da cláusula arbitral apenas quanto ao critério subjetivo, não autorizando o juízo arbitral a invadir matérias que, por força do interesse público subjacente, exigem apreciação exclusiva pelo juízo da recuperação. Permitir que um tribunal arbitral decida unilateralmente sobre compensações em favor de credores sujeitos ao concurso — à margem do plano aprovado e da assembleia — equivaleria a admitir o esvaziamento do regime concursal e a subversão da ordem pública recuperacional.
A função organizadora do juízo universal seria, assim, convertida em ficção jurídica, submetida à erosão privatista de decisões parciais e descoordenadas. Nesse contexto, a arbitragem, ainda que pactuada, encontraria um limite que não decorre de sua invalidade, mas de sua inadequação estrutural diante da lógica de preservação e equilíbrio sistêmico que rege o processo recuperacional.
Apesar da correção técnica da decisão do STJ ao distinguir entre arbitrabilidade subjetiva e objetiva, e ao reconhecer a inarbitrabilidade da compensação envolvendo crédito sujeito ao regime concursal, é possível levantar uma crítica de natureza sistêmica.
O acórdão parte da premissa de que a mera sujeição de um crédito ao regime da recuperação judicial basta para subtraí-lo da jurisdição arbitral, independentemente do contexto fático ou da natureza da controvérsia. Com isso, obscurece-se a possibilidade de análise qualificada sobre a disponibilidade concreta do direito debatido, sobretudo quando, como no caso julgado, a compensação havia sido reconhecida em sede arbitral com base em fatos anteriores ao deferimento do processamento da recuperação[4].
Trata-se de típica hipótese em que a decisão arbitral se antecipou ao regime de indisponibilidade concursal, o que deveria conferir-lhe presunção de legitimidade e plena eficácia jurídica. Ao desautorizar o juízo arbitral retroativamente, o Tribunal esvazia a racionalidade e o alcance da cláusula compromissória, transformando o juízo recuperacional em uma instância revisora generalizada da arbitragem, com base em um critério de enquadramento formal e excessivamente rígido[5].
Mais grave ainda é que se tratava de litígio versando sobre compensação entre direitos patrimoniais disponíveis, os quais, conforme reconhece o próprio art. 1º da Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/96), são plenamente arbitráveis. A compensação, como mecanismo extintivo de obrigações, é expressão legítima da autonomia privada — ainda mais quando se opera entre créditos líquidos, certos e vencidos, e com origem em contratos empresariais simétricos.
Há, todavia, quem sustente a inaplicabilidade da cláusula compromissória à controvérsia envolvendo compensação quando uma das partes estiver submetida à recuperação judicial. Parte da doutrina reconhece que, embora a compensação entre créditos reciprocamente exigíveis e líquidos constitua matéria tipicamente patrimonial e disponível — e, portanto, arbitrável à luz do art. 1º da Lei de Arbitragem — essa disponibilidade se perde diante da submissão do crédito ao regime concursal[6].
Nessa leitura, a condição da empresa recuperanda atrai um regime jurídico especial que transforma a compensação em questão de ordem pública, na medida em que seus efeitos incidem diretamente sobre o conjunto dos credores e sobre o equilíbrio interno do plano aprovado. A eventual extinção bilateral de obrigações por decisão arbitral, ainda que tecnicamente correta, poderia produzir impacto relevante sobre a isonomia entre credores e comprometer a integridade do concurso, razão pela qual se advoga, nesse caso, pela competência exclusiva do juízo da recuperação para deliberar sobre a viabilidade da compensação.
Não obstante essa linha de pensamento, entendo que o próprio legislador, ao introduzir o art. 193-A na Lei nº 11.101/2005, conferiu tratamento claro à matéria, ao admitir expressamente a possibilidade de compensação de créditos nos termos da legislação civil, afastando, portanto, qualquer vedação absoluta. Desconsiderar esse comando normativo sob o argumento de uma pretensa indisponibilidade estrutural do crédito é promover um desvio hermenêutico que — sob o pretexto de proteger o concurso — termina por suprimir a autonomia privada das partes.
O efeito prático é a reestatização silenciosa de disputas que poderiam ser solucionadas com mais tecnicidade, previsibilidade e racionalidade econômica no âmbito arbitral, comprometendo, sem justificativa suficiente, a funcionalidade e a confiança no regime convencional de resolução de conflitos.
Do ponto de vista econômico, a decisão do STJ pode gerar efeitos colaterais indesejáveis ao incentivar comportamentos oportunistas em ambiente de crise. Ao deslocar, de maneira rígida, a competência sobre compensações para o juízo da recuperação, afasta-se a possibilidade de que disputas contratuais sejam resolvidas por um juízo escolhido pelas partes com base em critérios técnicos e comerciais.
Esse deslocamento não apenas aumenta os custos de transação, como também fragiliza o enforcement da cláusula compromissória, reduzindo sua utilidade como ferramenta ex ante de alocação eficiente de riscos. Em termos práticos, a decisão sinaliza ao mercado que a cláusula arbitral pode ser neutralizada em virtude da posterior sujeição de uma das partes ao regime concursal, ainda que o litígio em questão não represente ameaça concreta à massa de credores. Para nós, resultado é o aumento da incerteza da previsibilidade dos fluxos econômicos em cenários de insolvência.
Notas e Referências:
[1] FICHTNER, José Antonio; MANNHEIMER, Sergio Nelson; MONTEIRO, André Luís. Teoria geral da arbitragem. Prefácio de Luis Felipe Salomão. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 391 e ss.
[2] FICHTNER, José Antonio; MANNHEIMER, Sergio Nelson; MONTEIRO, André Luís. Teoria geral da arbitragem. Prefácio de Luis Felipe Salomão. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 391 e ss.
[3] (STJ – REsp: 1953212 RJ 2021/0170952-3, Relator.: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 26/10/2021, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/11/2021)
[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 2.163.463/SP. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Brasília, DF, julgado em 01/04/2025
[5] DECCACHE, Antonio Carlos Fernandes. Dos efeitos da falência sobre a arbitragem. 2020. Tese (Doutorado em Direito Comercial) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020, p. 92.
[6] ACRAMONE, Marcelo; BRAGA, Henrique de Oliveira Lima. Os limites objetivos da cláusula compromissória e a recuperação judicial. In: MONTEIRO, André Luis; et. al. (Coord.). Arbitragem, Mediação, Falência e Recuperação. São Paulo: Thomson Reuters, 2022, p. 128