Cartinha de um (ainda) pobre civilista aos Reis Magos
Na Espanha e nos países de cultura hispânica, o Dia dedicado a memória dos Santos Reis Magos (06 de janeiro) é o momento reservado para a troca de presentes entre familiares e amigos; data que costuma ser associada à véspera de Natal aqui no Brasil. Naqueles países, muitas crianças endereçam suas cartas aos Santos Reis pedindo presentes, em vez de dirigir seus pedidos ao Papai Noel. Como já sabem os cinco leitores desta coluna, é o dia em que também costumo escrever minha cartinha aos Santos Reis.
Caríssimos Reis Magos:
Quase morri este ano, mas passo bem. Quase desisti da advocacia, da docência e da vida. Mas, Deus não se deixa vencer em generosidade. Dizem que quem tem amigos não pode ser um fracasso completo. Graças ao bom Deus, tenho amigos, alunos, familiares, filhos e esposa que me querem muito bem (apesar dos meus inúmeros defeitos)!
Se me permitirem mais uma vez a ousadia, quero pedir para que não deixem que meus colegas e alunos se convertam em seguidores de Humpty Dumpty, o ovo antropomórfico retratado por Lewis Carrol em “Alice através do espelho”. Para ilustrar melhor a questão, não custa rememorar a passagem que resume a filosofia de vida que se popularizou entre os “juristas” nacionais:
“- Mas ‘glória’ não significa ‘argumento infalível’ – Alice protestou.
– Quando eu uso uma palavra – Humpty Dumpty falou, mais uma vez num tom desdenhoso -, ela significa o que quero que ela signifique… nem mais nem menos.
– A questão é – Alice falou – se o senhor pode fazer as palavras significarem coisas tão diferentes.
– A questão é – disse Humpty Dumpty – quem é que manda… e isso é tudo”.
O “jurista” Humpty Dumpty (ou cabeça-de-ovo) é aquele que reduz o direito à vontade dos poderosos, Caros Reis. São aqueles que gostam de destacar que seus livros foram atualizados de acordo com os mais recentes informativos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. As opiniões destes “juristas” mudam ao sabor do vento seco de Brasília, conforme mudam as opiniões dos Ministros dos Tribunais superiores.
Não dá para levar esta gente a sério, caros Reis! Confundem o direito com a jurisprudência dos Tribunais superiores. Parecem desconhecer que o estudo sério do direito não pode ser reduzido ao conhecimento da legislação pátria e da jurisprudência atual, sob pena da mínima mudança na letra da lei (ou da jurisprudência) reduzir o conhecimento jurídico a cinzas.
Vós, queridos Reis, fostes a Jerusalém indagar da Autoridade de então, o Rei Herodes (Mt 2,2): “Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Porque nós vimos a sua estrela no oriente e viemos adorá-lo” (ubi est qui natus est rex Judæorum vidimus enim stellam ejus in oriente et venimus adorare eum). É salutar a confiança nas autoridades para a vida em sociedade, majestades. Mas, a vontade das autoridade não pode prevalecer per se, especialmente quando abertamente contrárias à razão e à verdade. Vós mesmos notastes, caros Reis, que a luz da verdade (a estrela de Belém) só voltou a brilhar quando se afastaram da vontade mesquinha da autoridade.
A propósito da falta de bom senso das nossas autoridades públicas, queridos Reis, posso pontuar que o Supremo Tribunal Federal havia concedido liminar proibindo a utilização do termo “mãe” para se referir às “mães”![1] Imaginem que (a depender do entendimento do ilustre ministro) o Evangelista, em vez de dizer que vós vistes “o menino com Maria, sua mãe” (Mt 2, 11), precisaria registrar que viram o menino com Maria, “a parturiente”.[2]
Talvez tenhamos sido salvos pelo bom senso da mãe do Ministro Flávio Dino, majestades; que pontuou na época do julgamento: “Hoje é aniversário da minha mãe, e se eu ligar para ela e disser ‘feliz aniversário, minha parturiente’, ela vai brigar comigo”. [3] No dia 17 de outubro de 2024, o STF concluiu o julgamento da ADPF 787 e prevaleceu o bom senso, decidiu-se que é possível fazer constar nas Declarações de Nascido Vivo os termos “parturiente” ou “mãe” (em vez de apenas “parturiente”) e os termos “responsável legal” ou “pai” (em vez de apenas “responsável legal”).
Devemos confiar nas autoridades, mas uma boa dose de ceticismo em relação às boas intenções das autoridades também é necessário, meus Reis. O Rei Herodes, por exemplo, não era boa peça, vós sabeis! Mas, é verdade tudo que se diz dele? Só Deus sabe! Herodes, “o grande”, é acusado de ter ordenado a morte de todos os meninos de Belém “da idade de dois anos para baixo” (Mt 2, 16), o que motivou a fuga de Jesus para o Egito. Contudo, muitos estudiosos colocam em dúvida a historicidade deste relato do suposto massacre dos inocentes, que pode ser na verdade uma referência simbólica a hagadá de Moisés, e ao massacre ordenado pelo Faraó na época da escravidão dos hebreus no Egito.[4]
Tal referência talvez se deva ao fato de que Herodes mandou matar ao menos três de seus filhos:
“No ano 7 a.C., Herodes justiçara os seus filhos Alexandre e Aristóbulo, porque sentia o seu poder ameaçado por eles. No ano 4 a.C., pelo mesmo motivo eliminara também o filho Antíprato (…). Herodes raciocinava apenas segundo as categorias do poder; a notícia de um pretendente ao trono, que ouvira dos magos, deve tê-lo alarmado”.[5]
Segundo a narrativa posterior de Macrobius em sua obra Saturnalia, o Imperador Augusto teria reagido com certa ironia ao saber da morte de Antíprato, filho mais velho do Rei Herodes: “Melius est Herodis porcum esse quam filium”[6], ou seja, é melhor ser porco do que ser filho de Herodes! Devido ao fato dos judeus não ingerirem carne de porco, era mais seguro que os porcos de Herodes morressem de velhice do que seus próprios filhos.
No Brasil, caros Reis, às vezes parece que é melhor ser cachorro do que ser gente! No primeiro semestre de 2024, os jornais noticiaram o caso morte do cachorro Joca, que estava sendo transportado do Aeroporto de Guarulhos (SP) para o Aeroporto de Cuiabá (MT), mas terminou por ser colocado em um avião para Fortaleza (CE). A Defensoria Pública do Estado do Mato Grosso pediu em juízo R$ 10 milhões de Reais de indenização em razão da morte do cãozinho.[7] Já no caso da morte de um pai de família por omissão do DER, a primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que a indenização devida era de apenas R$ 20 mil Reais, caros Reis![8] Deve ser duro viver em um país em que as autoridades julgam que a vida de um ser humano não vale nem um décimo da vida de um cachorro. Talvez seja melhor ser um dos porcos do velho Herodes, Majestades!
Perdoem o mau humor desta missiva, nobres senhores. Talvez se deva a todos os percalços por que passei no último ano. Mas, nesta quadra da vida, parece-me que a melhor lição foi dada pelo mestre Ariano Suassuna: “O otimista é um tolo. O pessimista, um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso!”
Por fim, renovo as homenagens que fiz aos amigos em 2023[9] e 2024[10]; rogo novamente por um ano melhor do que o ano passado, e simplesmente agradeço porque tenho pessoas junto a mim que realmente me amam e querem meu bem. Mais uma vez, obrigado, queridos Reis!
Notas e Referências:
[1] Historiei a questão apreciada pelo STF nesta coluna: https://juridicamente.info/consideracoes-sobre-a-adpf-787-em-julgamento-pelo-stf-quando-e-que-mae-passou-a-ser-uma-palavra-obscena/ Acesso em: 05 de janeiro de 2025.
[2] Também concedi entrevista sobre o tema para o jornal “Gazeta do Povo”: https://adfas.org.br/stf-julga-retorno-dos-termos-mae-e-pai-na-declaracao-de-nascido-vivo/ Acesso em: 05 de janeiro de 2025.
[3] Cf.: https://www.migalhas.com.br/quentes/415570/stf-ministros-divergem-sobre-termos-inclusivos-em-formulario-do-sus Acesso em: 03 de outubro de 2024.
[4] RATZINGER, Joseph (Papa Bento XVI). A infância de Jesus. Tradução de Bruno Bastos Lins. São Paulo: Planeta, 2012, p. 92.
[5] RATZINGER, Joseph (Papa Bento XVI). A infância de Jesus. Tradução de Bruno Bastos Lins. São Paulo: Planeta, 2012, p. 91.
[6] Cf.: MACROBIUS. Saturnalii. Disponível em: https://penelope.uchicago.edu/thayer/l/roman/texts/Macrobius/Saturnalia/2*.html Acesso em: 05 de janeiro de 2025.
[7] Cf.: https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/2024/05/06/cao-joca-defensoria-publica-de-mt-pede-indenizacao-de-r-10-milhoes-e-suspensao-de-transportes-de-animais-a-gol.ghtml Acesso em: 05 de janeiro de 2024.
[8] Cf.: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/02052022-Presuncao-de-dependencia-economica-assegura-indenizacao-a-familia-de-vitima-de-acidente-causado-por-omissao.aspx Acesso em: 05 de janeiro de 2024.
[9] https://juridicamente.info/carta-de-um-civilista-aos-reis-magos/
[10] https://juridicamente.info/cartinha-de-um-pobre-civilista-aos-santos-reis-magos/