Compreendendo as Três Fases do Processo Arbitral
O processo arbitral pode ser didaticamente dividido em três fases: pré-arbitral, arbitral e pós-arbitral. Essa divisão não é apenas acadêmica — ela é funcional, estratégica e decisiva para o êxito do procedimento. Cada fase possui lógica própria, exigências técnicas e consequências jurídicas distintas. Ignorá-las é colocar em risco toda a estrutura da arbitragem, cuja vocação é oferecer uma resposta jurisdicional célere, técnica e eficiente. A arbitragem é jurisdição privada, mas não é informalidade irresponsável: exige planejamento rigoroso e domínio técnico desde os primeiros passos.
A fase pré-arbitral se inicia com a convenção de arbitragem, seja ela cláusula compromissória ou compromisso arbitral. Essa convenção é a porta de entrada e o alicerce do processo arbitral. Em regra, permanece inerte até o surgimento de um litígio, momento em que se verifica se a cláusula é minimamente funcional. Cláusulas mal redigidas, sem regras claras sobre número de árbitros, forma de nomeação ou sede do procedimento, geram impasses que muitas vezes exigem provocação ao Judiciário com base no art. 7º da Lei de Arbitragem. Isso já representa um desvio da rota inicialmente pactuada pelas partes — e, em muitos casos, um desperdício de tempo e recursos evitável com simples cautela na fase contratual.
Outro elemento central da fase pré-arbitral é a possibilidade de medidas cautelares ou de urgência antes da instituição da arbitragem. Como o tribunal arbitral ainda não foi constituído, cabe ao Judiciário suprir essa lacuna, garantindo a tutela jurisdicional provisória sem que isso represente afronta à cláusula compromissória. O equívoco aqui é comum: advogados menos experientes hesitam em acionar o Judiciário por medo de violar a convenção arbitral. Esse medo é infundado. Até que os árbitros sejam nomeados e aceitos, a jurisdição estatal é plenamente competente para proteger direitos ameaçados.
A partir do requerimento de arbitragem, a fase pré-arbitral entra em seu momento decisivo. Esse requerimento pode ser endereçado à instituição arbitral ou diretamente à outra parte, conforme se trate de arbitragem institucional ou ad hoc. Ele deve ser preciso, completo e bem instruído. A notificação para início da arbitragem não é mero rito — é ato jurídico que, além de formalizar o litígio, tem efeitos práticos como interrupção da prescrição, início de contagem de prazos e fixação dos marcos procedimentais. Uma notificação mal feita compromete não só a arbitragem, mas também eventuais medidas posteriores.
Com a resposta ao requerimento e eventual impugnação dos árbitros indicados, inicia-se a formação do tribunal arbitral. A nomeação dos árbitros é talvez o momento mais sensível de toda a fase pré-arbitral. A parcialidade percebida, ainda que apenas sugerida, pode implodir o procedimento antes mesmo que ele comece. Daí a importância da apresentação do termo de independência e da possibilidade de impugnação fundamentada. A arbitragem exige confiança. Árbitros mal escolhidos comprometem a credibilidade do julgamento e alimentam futuras ações anulatórias.
É fundamental compreender que a arbitragem só está efetivamente instituída quando os árbitros são nomeados e aceitam o encargo, com a devida ciência das partes. A partir desse momento, transfere-se a jurisdição: sai de cena o juiz estatal e entra o julgador privado, dotado de plenos poderes para conduzir o processo. Trata-se de verdadeira jurisdictio, com força vinculante e autoridade decisória. Ignorar essa transição é cometer erro primário, com consequências práticas severas, como a perda de competência do Judiciário e o risco de decisões ineficazes.
Com os árbitros nomeados e aceitos, a arbitragem é formalmente instituída, e o próximo passo é a celebração do termo de arbitragem — documento não obrigatório fundamental que delimita, organiza e orienta todo o curso do procedimento (LArb, art. 19 §1º). Mais do que uma formalidade, o termo de arbitragem cumpre função estruturante: nele se definem os pedidos submetidos ao juízo arbitral, as regras procedimentais que serão adotadas, a sede da arbitragem, o idioma, o calendário de prazos, as regras sobre provas e, quando aplicável, os critérios para repartição de custas e honorários. É nesse momento que se eliminam eventuais lacunas deixadas pela convenção de arbitragem, dando segurança jurídica e estabilidade ao processo. Um termo mal redigido é convite à insegurança e à nulidade. Por isso, exige atenção redobrada de todos os envolvidos. É aqui que o advogado pode — e deve — corrigir rumos, alinhar estratégias e evitar vícios que serão irreversíveis na fase decisória. Ignorar ou subestimar o termo de arbitragem é negligenciar a espinha dorsal do procedimento.
Em seguida, inicia-se a fase postulatória: alegações iniciais, respostas, reconvenções. Aqui, a arbitragem mostra sua versatilidade. Câmaras arbitrais modernas dispensam as formalidades excessivas do processo civil e priorizam a exposição clara dos fatos, dos pedidos e das provas. Não se exige petição inicial “modelo CPC”. O importante é delimitar o litígio com precisão. Toda petição deve ser pensada com lógica cirúrgica. Arbitragem não é espaço para digressão retórica: é lugar de argumentação estratégica e objetividade brutal.
A instrução probatória, na arbitragem, é ampla e flexível. Testemunhas, documentos, perícias, inspeções — tudo pode ser admitido desde que respeitados o contraditório e a ampla defesa. O árbitro não está preso às amarras do Código de Processo Civil. Ele pode ouvir especialistas, aceitar relatórios de auditoria no lugar de perícia, autorizar perguntas diretas às partes. Já vi audiência em que, em vez de quesitos periciais, usou-se painel técnico com três engenheiros debatendo ao vivo a viabilidade econômica de uma usina.
Quando há necessidade de medidas coercitivas — como condução de testemunha, exibição de documentos ou imposição de medidas cautelares — o árbitro pode requisitar auxílio do Poder Judiciário. Trata-se de atuação subsidiária, prevista expressamente na lei, e que não configura subordinação. O juiz estatal, aqui, é parceiro na realização da justiça arbitral. A cooperação entre jurisdições é sinal de maturidade institucional. E o árbitro que não compreende essa prerrogativa está despreparado para o ofício.
As audiências, quando realizadas, devem ser objetivas, bem conduzidas e voltadas à construção de convicção. Diferentemente do processo judicial, não há aqui espaço para procrastinação nem para litigância performática. O árbitro pode, e deve, limitar perguntas irrelevantes, recusar requerimentos abusivos e manter a audiência dentro de parâmetros racionais. A arbitragem não é palco de espetáculo: é arena de solução técnica de controvérsias.
Com a instrução concluída, abre-se prazo para alegações finais — por escrito ou em sustentação oral. Em seguida, o tribunal profere a sentença arbitral. Ela deve ser fundamentada, conter relatório, motivação e dispositivo, além do local e da data. Esses elementos não são meros formalismos: definem a natureza da arbitragem (nacional ou estrangeira) e asseguram o cumprimento da decisão. A ausência de qualquer desses requisitos compromete a validade do laudo arbitral.
A sentença arbitral vincula as partes e só pode ser objeto de pedido de esclarecimento — nos moldes dos embargos de declaração — quando contiver obscuridade, contradição ou omissão (LArb, art. 30). Esse pedido não suspende seus efeitos, salvo se os árbitros assim decidirem. A lógica é de efetividade: a arbitragem decide, e o decidido deve ser cumprido.
A fase pós-arbitral tem início com a entrega da sentença às partes. Se houver cumprimento voluntário, o procedimento se encerra. Caso contrário, inicia-se o cumprimento forçado — sempre perante o Judiciário. Aqui, a sentença arbitral funciona como título executivo judicial (art. 515, VII, do CPC). Não há necessidade de nova ação de conhecimento. Inicia-se, diretamente, a execução.
É possível, também, o ajuizamento de ação anulatória, prevista no art. 33 da Lei de Arbitragem. Trata-se de ação excepcional, que não permite reexame do mérito. Só pode ser proposta com base em vícios formais, como ausência de convenção válida, cerceamento de defesa, decisão ultra petita ou falta de imparcialidade do árbitro. Essa via não deve ser banalizada — e o Judiciário tem o dever de rechaçar pedidos movidos por espírito de revanche.
A sentença arbitral estrangeira precisa ser homologada pelo Superior Tribunal de Justiça, nos termos dos arts. 35 a 38 da Lei de Arbitragem e do Regimento Interno do STJ. O procedimento é técnico, formal e essencial para conferir eficácia à decisão em território nacional. Não se discute o mérito: apenas a regularidade da arbitragem e a compatibilidade com a ordem pública brasileira.
O controle judicial da arbitragem, portanto, é posterior e restrito. Esse modelo é fruto da confiança na autonomia das partes e na capacidade do árbitro de exercer função jurisdicional com responsabilidade. Qualquer tentativa de ampliação desse controle representa retrocesso, desrespeito à vontade contratual e desserviço ao sistema de justiça.
Advogados que atuam em arbitragem precisam adotar postura distinta da contenciosa tradicional: aqui, não há espaço para procrastinação, excesso de formalismo ou de litigância pela litigância. A função do advogado é estratégica, propositiva e colaborativa. A retórica contenciosa dá lugar à precisão técnica.
Enxergar a arbitragem como um sistema processual não é apenas uma provocação acadêmica — é uma exigência prática. O processo arbitral possui racionalidade própria, estrutura funcional distinta e garantias compatível com os valores da autonomia privada e da autorregulação. É um subsistema normativo que opera com fechamento operacional, porque se basta internamente, e com abertura cognitiva, porque dialoga com o ambiente jurídico, econômico e institucional em que está inserido. Nesse cenário, não há espaço para importações acríticas do processo estatal, tampouco para práticas litigantes que desrespeitem a lógica do sistema arbitral. Advogado que entra na arbitragem com mentalidade cartorária está perdido. E parte que trata a arbitragem como simulacro ou manobra, será rechaçada — se não pelo tribunal, pelo mercado. A arbitragem é sistema vivo, sofisticado, tecnicamente exigente e institucionalmente sensível. Quem não respeita suas fases, seus fundamentos e sua natureza, não apenas compromete o resultado: viola a razão de ser do próprio instituto.