Direito à saúde e medidas coercitivas: uma análise de entendimento do STJ e do TJPE sobre o bloqueio de verbas públicas.
Por Joana Beatriz dos Santos[1]
1 O direito fundamental à saúde e o dever do Estado para a sua promoção
O direito à saúde é assegurado como um direito fundamental pela Constituição Federal, configurando-se como um dever inalienável do Estado e uma garantia indispensável para a proteção da população.
O artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal consagra o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Com este princípio, exige-se que todos os direitos fundamentais, especialmente aqueles relacionados à saúde e à vida sejam protegidos e garantidos.
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III – a dignidade da pessoa humana.
A saúde é direito de todos e dever do Estado, devendo ser garantida por meio de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, conforme preceitua o artigo 196 da Constituição Federal.
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
O dispositivo em questão impõe aos entes públicos a obrigação de implementar políticas sociais e econômicas que assegurem o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde, promovendo a redução do risco de doenças e o tratamento adequado. Tal garantia é reforçada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, consolidando a saúde como um direito público subjetivo, diretamente oponível ao Estado.
Da mesma forma, o artigo 227 versando sobre o dever do Estado em assegurar o direito à vida e à saúde, reafirma a prioridade absoluta que deve ser conferida às necessidades do sujeito de direitos em situação de vulnerabilidade que necessita de um tratamento médico contínuo e específico.
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Sobre a proteção dessa classe vulnerável, sendo estas, as crianças, os adolescentes e os jovens no geral, o artigo 7º da Lei nº 8.069/90 que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, aborda a mesma linha temática do direito à saúde e à proteção integral ao impúbere.
Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
Veja-se que apesar de um grande e considerável aparato legal sobre a proteção da saúde e o dever do Estado em garantir e efetivar esse direito, enfrenta-se desafios significativos, especialmente no que tangencia o cumprimento de decisões judiciais que determinam o fornecimento de medicamentos e tratamentos médicos essenciais.
O fenômeno da judicialização da saúde, amplamente observado nas últimas décadas, reflete a busca dos cidadãos por soluções individuais diante de omissões estatais. Essa prática, embora legitime o direito à saúde, revela tensões entre a concretização de direitos fundamentais e a capacidade financeira do Estado, frequentemente levando ao uso de medidas coercitivas como o sequestro de verbas públicas para garantir a eficácia das decisões judiciais.
2 A obrigação do Estado em cumprir a ordem judicial
A obrigação do Estado em cumprir decisões judiciais decorre do princípio fundamental da separação de poderes e da submissão de todos, incluindo os entes públicos, à lei. Conforme disposto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito, e, uma vez reconhecida a existência de uma obrigação pela via judicial, é dever do Estado cumprir integralmente a sentença proferida.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
Esse dever também é reforçado pelo artigo 37, que impõe à Administração Pública a observância dos princípios da legalidade, moralidade, eficiência e, especialmente, da supremacia do interesse público, o que inclui a execução de ordens judiciais.
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (…).
O descumprimento de decisões judiciais configura afronta ao princípio da legalidade e pode ser enquadrado como ato de improbidade administrativa, nos termos do artigo 11 da Lei nº 8.429/1992, ao frustrar os objetivos das políticas públicas e comprometer o atendimento das necessidades fundamentais da população.
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: (…) VI – deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo.
Sobre a obrigação do Estado em cumprir ordem judicial, no tocante ao fornecimento de medicamentos e insumos a cidadão carente, confere-se recente decisão do Tribunal de Justiça de Pernambuco, em Apelação Cível:
ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. APELAÇÃO. DIREITO À SAÚDE. MENOR IMPÚBERE PORTADORA DE INTOLERÂNCIA À LACTOSE. NECESSIDADE DE SUPLEMENTO NUTRICIONAL. APLICAÇÃO DO ART. 196 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 2º DA LEI FEDERAL Nº 8.080/90 E DA SÚMULA Nº 18 DESTE TRIBUNAL. OBRIGAÇÃO DO ENTE PÚBLICO. ENTENDIMENTO PACIFICADO. APELO DESPROVIDO. DECISÃO UNÂNIME.
-
- É certo que os recursos do Ente Público não são inesgotáveis, bem como há outros cidadãos necessitando de medicamentos com urgência, mas o Judiciário deve, sim, compelir a Administração a cumprir o seu dever, determinando-lhe que atue naquele caso concreto como deveria atuar em todos os demais, visto que nenhuma valia tem uma Administração Pública que sequer assegura as mínimas condições de dignidade aos cidadãos.
- É inafastável a responsabilidade do Ente Público no sentido de prestar a assistência médica necessária aos cidadãos. Aplicação do art. 196 da CF/88, art. 2º da Lei Federal nº 8.080/90 e da Súmula nº 18 deste tribunal.
- Por entender que a saúde é direito de todos e dever do poder público, este e. Tribunal sumulou entendimento de que é dever do Estado fornecer medicamento ou custear tratamento para a população (Súmula nº 18): “É dever do Estado-membro fornecer ao cidadão carente, sem ônus para este, medicamento essencial ao tratamento de moléstia grave, ainda que não previsto em lista oficial”.(TJPE, Apelação Cível n. 573371-7, relator Des. PAULO ROMERO DE SÁ ARAÚJO, 2ª Câmara de Direito Público. Julgado em 26/10/2023, DJe de 13/11/2023).
O entendimento do TJPE reitera de forma categórica a obrigação do Estado em cumprir sentenças judiciais, especialmente quando envolvem o direito fundamental à saúde. O tribunal destacou que, embora os recursos públicos sejam finitos e existam múltiplas demandas concorrentes, é imperativo que o Judiciário exerça seu papel de compelir a Administração Pública a cumprir sua obrigação constitucional, garantindo que o Estado atue no caso concreto como deveria agir em todos os demais.
3 O sequestro de verbas públicas como medida coercitiva
O sequestro de verbas públicas também é uma medida prevista no ordenamento jurídico para garantir o cumprimento de decisões judiciais, sobretudo em matéria de saúde. Os artigos 139, IV e 497 do CPC conferem ao juiz poderes para determinar medidas, inclusive atípicas, que assegurem a efetividade da decisão judicial.
Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (…) IV – determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária.
Art. 497. Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz, se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.
Na promoção do direito à saúde, o sequestro de verbas públicas tem sido utilizado para garantir o fornecimento de medicamentos, tratamentos e procedimentos médicos essenciais. A medida torna-se necessária em situações em que o descumprimento de ordens judiciais pode colocar em risco a vida e a dignidade dos indivíduos assegurados pela Constituição.
A investigação, tanto do Superior Tribunal de Justiça quanto do Tribunal de Justiça de Pernambuco, tem consolidado a legitimidade do sequestro como uma ferramenta importante para evitar danos irreparáveis.
Nesse sentido, é possível observar recentíssima decisão do STJ em matéria de fornecimento de medicamentos pelo Estado e o sequestro de verbas públicas para tal finalidade:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO. RECURSO ESPECIAL. DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. SEQUESTRO DE VERBAS PÚBLICAS. POSSIBILIDADADE. TEMA 84/STJ. PROVIMENTO NEGADO.
-
- É legítimo o sequestro de verbas públicas como forma de compelir o ente federativo ao cumprimento do provimento jurisdicional, em especial nas demandas acerca da obrigação de fornecimento de medicamentos, conforme o julgado no Tema 84/STJ.
(STJ, AgInt no REsp n. 1.998.487/DF, relator Ministro Paulo Sérgio Domingues, Primeira Turma, julgado em 10/6/2024, DJe de 17/6/2024).
Ainda sobre o bloqueio de valores, o TJPE também decidiu por bloquear os ativos financeiros, via Sisbajud, do Estado de Pernambuco, de forma que garanta a efetivação não tão somente da decisão judicial a qual o compelia a fornecer o medicamento, mas, para garantir que os direitos fundamentais à vida e à saúde fossem assegurados.
MANDADO DE SEGURANÇA N.º: 0010480-67.2015.8.17.0000 (0397529-1) ÓRGÃO JULGADOR: SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO IMPETRANTE: HIGOR JOSÉ VASCONCELOS PINHO DE MIRANDA IMPETRADO: SECRETÁRIO DE SAÚDE DE PERNAMBUCO RELATOR: Des. Paulo Romero de Sá Araújo DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
Analisando os autos, é possível observar o descumprimento sistemático do Estado de Pernambuco à ordem judicial no sentido de providenciar o medicamento de uso contínuo pleiteado, fazendo com que a aquisição do fármaco, pelo impetrante, repetidas vezes, apenas seja possível através da liberação de alvarás judiciais. (…) Diante do exposto, considerando a urgência de saúde com necessidade de tratamento ininterrupto, defiro o pedido e determino o imediato bloqueio judicial dos ativos financeiros do Estado de Pernambuco, via Sisbajud, no valor de R$ 29.352,00 (vinte e nove mil, trezentos e cinquenta e dois reais), referente ao período de 03 (três) meses de medicamento, período que se entende suficiente para que o Estado regularize o fornecimento (…).
(TJPE, MS n. 0010480-67.2015.8.17.0000 (0397529-1), relator Des. PAULO ROMERO DE SÁ ARAÚJO, 2ª Câmara de Direito Público. Julgado em 17/07/2023, DJe de 04/08/2023).
A decisão do TJPE não apenas reafirma a legalidade do sequestro de verbas públicas, mas também destaca sua importância prática como garantia de que direitos fundamentais não sejam negligenciados pela inércia ou descaso do poder público. Essa medida, embora excepcional, justifica-se quando outros meios se mostram ineficazes para garantir a proteção à saúde e à vida dos cidadãos.
Embora o sequestro de verbas públicas seja eficaz, sua aplicação também levanta questionamentos sobre os limites da atuação judicial frente à reserva do possível e o mínimo existencial. De um lado, a alocação orçamentária e comprometimento outras políticas públicas, de outro, a visão predominante dos tribunais em proteger o direito à saúde de forma concreta e urgente justificar sua adoção.
Considerações finais
A legitimidade do sequestro de verbas públicas demanda uma análise entre a ponderação dos direitos individuais e a gestão dos recursos públicos. E, em relação à reserva do possível, onde a capacidade financeira do Estado para atender a todas as demandas da população é limitada, a aplicação dessa medida pode divergir em outras necessidades coletivas e políticas públicas.
A jurisprudência, no entanto, tem reafirmado que, em situações de descumprimento de ordens judiciais que envolvem o direito à saúde, a proteção aos direitos fundamentais deve ter prioridade, justificando o uso do sequestro como mecanismo necessário para garantir a eficácia das decisões judiciais.
O Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça de Pernambuco, têm sustentado que, embora o sequestro de verbas possa afetar a gestão orçamentária e a execução de outras políticas públicas, a sua aplicação é justificável para proteger o direito à saúde e à vida, que são direitos fundamentais e prioritários. Essa posição reflete a interpretação de que, sem a devida aplicação de medidas coercitivas, a efetivação dos direitos fundamentais ficaria comprometida, resultando em prejuízos irreparáveis para os indivíduos que necessitam de tratamento médico.
O entendimento se alinha com a compreensão de que, em situações de urgência e necessidade de proteção a direitos fundamentais, o uso de instrumentos coercitivos como o sequestro é uma ferramenta legítima e por vezes necessária para garantir a dignidade e a integridade do indivíduo, respeitando o princípio da supremacia do interesse público e a obrigação estatal de assegurar e promover a saúde.
Notas e Referências:
BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 30.11.2024
BRASIL, Lei nº 8.069/90. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm Acesso em: 30.11.24
BRASIL, Lei nº 8.429/1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa, de que trata o §4º do art. 37 da Constituição Federal; e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm Acesso em 30.11.2024
BRASIL, Lei nº 13.105/2015. Código de Processo Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm Acesso em: 30.11.2024
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Recurso Especial 1.998.487/DF. Relator: Paulo Sérgio Domingues – Primeira Turma. Diário de Justiça eletrônico, 17 de jun. 2024.
BRASIL. Tribunal de Justiça de Pernambuco. Apelação Cível 573371-7. Relator: Paulo Romero de Sá – 2ª Câmara de Direito Público. Diário de Justiça eletrônico, 13 de nov. 2023.
BRASIL. Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mandado de Segurança 0010480-67.2015.8.17.0000 (0397529-1). Relator Des. Paulo Romero de Sá Araújo – 2ª Câmara de Direito Público. Diário de Justiça eletrônico, 04 de ago. 2023.
[1] Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Frassinetti do Recife (UniFafire). Estagiária da Procuradoria Regional da União – PRU5. Escritora e pesquisadora na área de Processo Civil. Colunista. Monitora acadêmica em Dir. Civil, Dir. Constitucional, Dir. Penal e Teoria Geral do Processo.