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Do controle prévio de legalidade dos atos à conformidade plena: o papel do advogado nas contratações públicas

Inaugurando a Coluna “Direito, Gestão Pública e Controle”, falaremos a respeito do controle de legalidade, exercido pelo advogado, nas contratações realizadas no setor público, que foi ampliado pela Lei 14.133, de 1 de abril de 2021.

Durante décadas, o exercício da advocacia no âmbito das contratações públicas foi visto como uma atividade de análise de documentos. No entanto, no século XXI, a Advocacia Pública vem passando por diversas transformações, que têm exigido cada vez mais um olhar mais atencioso para as práticas de governança, gestão pública e de riscos e conformidade.

As necessidades, dinâmica e a funcionalidade do âmbito público têm impactado profundamente a prática advocatícia e desafiado os profissionais do Direito. Ter conhecimento desses conceitos pode ser um diferencial frente ao mero conhecimento técnico da lei, cujo objetivo é ditar as regras que se aplicam às contratações públicas.

A lei de licitações e contratos administrativos (Lei 14.133, de 1 de abril de 2021) trouxe um novo regime para as contratações públicas no Brasil. Tal regime impôs ainda mais importância das boas práticas de gestão pública e da conformidade ou compliance, cujo objetivo é prevenir práticas ilegais, corrupção e má utilização dos recursos públicos — promovendo a transparência e eficiência na gestão pública.

Se a chegada de uma nova lei representa uma oportunidade de rever práticas, costumes, condutas e procedimentos, a Lei 14.133/21 trouxe a oportunidade de rever o papel a responsabilidade do advogado que analisa juridicamente as contratações realizadas no âmbito da Administração Pública.

Enquanto a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993 previa apenas uma análise de minutas de documentos que compõe as contratações públicas (minutas de editais, contratos, acordos, convênios e outros ajustes, termos de cooperação, adesões a atas de registro de preços, termos aditivos, dentre outros instrumentos), a nova lei determina, agora, que o advogado examine o processo como um todo – buscando o que pode ser chamado de conformidade plena.

Com isso, a Lei 14.133/21, ampliou o controle de legalidade – impondo novos deveres aos(às) advogados(as) que atuam no âmbito da Advocacia Pública.

O artigo 6º, inciso I, do Decreto-Lei nº 200/67, determina que as atividades do ente público deverão obedecer a princípios fundamentais, dentre eles o de planejamento (Matias-Pereira, 2009, p. 103)[1] e estar alinhados com o Plano de Contratação Anual (PCA) – instrumento de governo elaborado anualmente pelos órgãos e entidades, que apresenta o planejamento estratégico do órgão acerca do que se vai comprar no mercado, e que auxilia na elaboração da respectiva lei orçamentária do ente federativo e no diálogo potencial com o mercado e incrementar a competitividade (conforme artigo 5º do Decreto nº 10.947/22.) (Sarai, 2025, p. 390)[2].

Em virtude do interesse público, esse processo administrativo costuma ser realizado em fases, incluindo a de planejamento, que contempla uma série de tarefas de organização, coordenação e controle de ações do governo, com o objetivo de promover o bem-estar social e garantir a eficiência, transparência e responsabilidade na execução das políticas públicas.

Um dos principais instrumentos para a garantia de que os recursos públicos sejam utilizados de forma transparente, legal e eficiente, de modo a atender ao interesse público, é a Gestão Pública: a capacidade do gestor público de administrar recursos, políticas e serviços públicos de maneira a atingir os objetivos de interesse coletivo, com qualidade, transparência e o melhor uso possível do dinheiro público.

Tendo em vista a política de boas práticas de gestão pública, o artigo art. 53, caput c/c § 4º da Lei nº 14.133/2021 prevê que, ao final da fase preparatória, o processo licitatório seguirá para o órgão de assessoramento jurídico da Administração, que realizará controle prévio de legalidade mediante análise jurídica da contratação. Por conta disso, o artigo 8º, § 3º e art. 117, § 3º, da mesma lei determina que o fiscal do contrato será auxiliado pelos órgãos de assessoramento jurídico e de controle interno da Administração, que deverão dirimir dúvidas e subsidiá-lo com informações relevantes para prevenir riscos na execução contratual.

Tal regra não se dá por acaso: ela é funcional, operacional, estratégica e decisiva para o êxito do processo: cada contrato assinado por um órgão público possui uma finalidade específica, visando equilibrar o princípio da eficiência e da transparência e buscando sempre garantir a proposta que apresente mais vantagens para o ente público, seja em termos financeiros, de qualidade, ou, até mesmo, de tempo. A busca pela proposta mais adequada exige não apenas o domínio técnico desde os primeiros passos, mas também e sobretudo planejamento para que o dinheiro público seja utilizado de um modo mais vantajoso para o interesse público – respeitando a transparência, legalidade e eficiência.

O ponto crucial nesse processo é o equilíbrio: em permitir a tomada da decisão mais adequada ao caso sem colocar em risco o dinheiro público. Deve-se reconhecer, porém, erros: muitas vezes a decisão advém de cenários de incerteza em que qualquer um pode errar (Sarai, 2025, p. 30). É nesse contexto em que o controle (interno ou externo) ocupa um relevante papel no âmbito do Poder Público (Ferraz; Motta, 2023, p. 551-552)[3] – fiscalizando o funcionamento deste.

Qual é, pois, o papel do(a) advogado(a) nesse ciclo? Enquanto o gestor público deve planejar, coordenar e supervisionar todo o processo licitatório, o que envolve diversas etapas (como a de planejamento), o(a) advogado(a) deve fornecer, dentro de suas competências[4], um assessoramento para evitar erros que possam retirar a conformidade do processo ou comprometer a viabilidade dele – violando o interesse público.

Todavia, é necessário esclarecer que a atividade desse(a) profissional não contempla critérios como discricionariedade, conveniência e oportunidade dos atos praticados no âmbito do ente público, porque cabe ao agente público analisar e decidir qual será a melhor alternativa para o caso (Sarai, 2025, p. 1050).

Desse modo, o artigo 53 da lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, atribui ao advogado o controle prévio de legalidade, inerente à atividade de controle interno, o qual consistirá em:

 

I – Apreciar o processo licitatório conforme critérios objetivos prévios de atribuição de prioridade;

II – Redigir sua manifestação em linguagem simples e compreensível e de forma clara e objetiva, com apreciação de todos os elementos indispensáveis à contratação e com exposição dos pressupostos de fato e de direito levados em consideração na análise jurídica (§1º do mesmo dispositivo).

 

Isso implica dizer que a responsabilidade atrelada à decisão é sempre da autoridade gestora, que deverá implementar boas práticas de gestão pública (para administrar recursos de maneira a atingir os objetivos de interesse coletivo, com qualidade, transparência e o melhor uso possível do dinheiro público que está sob a sua posse) e que poderá aceitar ou não os apontamentos feitos pelo advogado.

A esse respeito, é importante destacar o enunciado da Súmula 20 do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco. Após uma intensa e acalorada discussão sobre a responsabilidade do advogado público parecerista[5], o referido órgão de controle externo pernambucano decidiu que o advogado somente que emite parecer somente pode ser punido quando i) reconhecido o dolo ou o erro absurdo e quando ii) demonstrado, de modo incontrastável, o nexo de causalidade e o modo como o conteúdo de seu parecer causou violou a lei ou causou um dano[6][7]. Não implica dizer que o advogado está isento de responsabilidade, mas que poderá continuar atuando com a independência funcional técnica prevista no artigo 7º, I e § 2º e artigo 18 do Estatuto dos Advogados ou da Ordem dos Advogados do Brasil[8].

Conforme o enunciado de nº 07 do Manual de Boas Práticas Consultivas da Advocacia-Geral da União (AGU),

 

O Órgão Consultivo não deve emitir manifestações conclusivas sobre temas não jurídicos, tais como os técnicos, administrativos ou de conveniência ou oportunidade, sem prejuízo da possibilidade de emitir opinião ou fazer recomendações sobre tais questões, apontando tratar-se de juízo discricionário, se aplicável.

Ademais, caso adentre em questão jurídica que possa ter reflexo significativo em aspecto técnico deve apontar e esclarecer qual a situação jurídica existente que autoriza sua manifestação naquele ponto.

 

A manifestação em linguagem simples e compreensível e de forma clara a qual o item II se refere é o que comumente chamamos de Parecer Jurídico: um documento de natureza técnica e jurídica importante na formalização e fiscalização das licitações e contratos[9], garantindo a observância dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, entre outros.

Pode-se dizer que o assessoramento em questão serve como um dos meios de fiscalizar se tudo está de acordo com a lei, o programa adotado, recursos disponíveis, ordens dadas e princípios e diretrizes admitidos (Ferraz; Motta, 2023, p. 551-552)[10].

Neste contexto, o advogado não apenas exerce um papel consultivo direcionado aos agentes públicas responsáveis pela contratação pública (agente de contratação, membros da comissão de contratação, fiscais e gestores de contratos), mas também se torna uma peça-chave na prevenção de litígios e na segurança jurídica: tarefa crucial para garantir a legalidade e a eficiência das contratações públicas, bem como uma tomada de decisão mais segura, eficiente transparente e transformadora.

 

Notas e Referências:

[1] MATIAS-PEREIRA, José. Manual de Gestão Pública Contemporânea. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 2009.

[2] SARAI, Leandro. Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14133/21. Comentada por Advogados Públicos. 5ª ed. São Paulo: JusPodivm, 2025.

[3] FERRAZ, Luciano; MOTTA, Fabrício. Controle das Contratações Públicas. Em: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; GUIMARÃES, Edgar; MATOS, Thiago Marrara de. Manual de licitações e contratos administrativos: Lei 14.133, de 1º de abril de 2021. 2023, p. 83-135.

[4] Dentro das competências que lhe foram atribuídas pelo Estatuto, Código de Ética e outras normas disciplinadoras  de seu órgão de classe (Ordem dos Advogados do Brasil), o(a) advogado(a) é o(a) profissional habilitado tecnicamente para auxiliar gestores(s) a tomarem decisões mais seguras, eficientes e transparentes.

[5] Tal discussão foi travada com a Ordem dos Advogados do Brasil — Seccional Pernambuco (OAB-PE), a Procuradoria-Geral do Município do Recife (PGM-Recife) e a Associação dos Procuradores do Município do Recife (APMR),

[6] Mas não significa dizer que o advogado está isento de responsabilidade: apesar de ser da autoridade pública, o advogado que a assessorou poderá responder perante às instâncias da Advocacia Pública, vinculada aos órgãos de classe da Advocacia), pelo conteúdo apresentado no parecer por ele elaborado.

[7] Tal parâmetro está alinhado ao artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que dispõe que a responsabilização de agentes públicos exige a demonstração inequívoca de dolo ou erro grosseiro e, ato contínuo, o liame causal entre a opinião exarada e o eventual dano advindo do ato praticado com base no parecer. Nesse contexto, o TCE-PE reforça a proteção à conduta técnica e assegura que eventuais avaliações de responsabilidade sejam pautadas por critérios rigorosos e justos, em consonância com os princípios da administração pública.

[8] Há, ainda, uma proposta de Súmula Vinculante (PSV) nº 142, em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF), que busca consolidar parâmetros e balizas adequados para a atuação técnica desses profissionais e, consequentemente, para eventual responsabilização.

[9] A AGU o faculta em caso de: contratação direta por dispensa de licitação em razão do valor (artigo 75, II, da Lei 14.133/21); e contratação direta por inexigibilidade de licitação (incisos do artigo 74 da mesma lei) (ON AGU nº 69/21).

[10] FERRAZ, Luciano; MOTTA, Fabrício. Controle das Contratações Públicas. Em: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; GUIMARÃES, Edgar; MATOS, Thiago Marrara de. Manual de licitações e contratos administrativos: Lei 14.133, de 1º de abril de 2021. 2023, p. 83-135.

Colunista

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Renan Francelino
Bacharel e Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Pesquisador do U.Data – Laboratório de Pesquisas Empíricas em Direito (Unicap/CNPQ). Pesquisador-Extensionista da Clínica de Litigância Estratégica e Interesse Público (CLIP). Autor de artigos científicos e livro de metodologia de pesquisa científica. Advogado de Direito Público e Parecerista Jurídico de Licitação, Contratos Administrativos e Instrumentos afins.

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