Fishing Expedition na Arbitragem: um pequeno ensaio sobre o abuso e o direito à prova
Tal como os personagens de Mar Morto, de Jorge Amado — marinheiros que lançam suas redes ao mar sem a certeza do que virá, guiados mais pela superstição do que pela ciência das correntes —, alguns litigantes, no processo arbitral, lançam pedidos de produção documental sem critério, sem direção, movidos apenas pela esperança difusa de encontrar algo que lhes sirva.
Se, no romance, o mar é mistério e sobrevivência, na arbitragem o mar é o processo, e a rede lançada sem foco é o fishing expedition. A diferença crucial é que, enquanto o pescador de Jorge Amado desafia o destino com beleza trágica, o litigante que abusa da prova arrasta o procedimento arbitral à ineficiência, à assimetria e à perda de integridade. É dessa rede que se precisa desconfiar — e cortar.
Nesse contexto, a arbitragem se orgulha de sua eficiência e tecnicidade, mas há um ponto em que eficiência se converte em risco: o abuso probatório. Nesse terreno ambíguo, emerge a figura do fishing expedition, expressão consagrada para designar pedidos de prova documental sem delimitação precisa, motivados por mera esperança de encontrar elementos úteis à tese que ainda está por nascer.
O termo remete à ideia de “lançar redes” sem saber o que se busca, tentando capturar qualquer vestígio, prova, documentos, informação que favoreça a construção posterior da narrativa. Trata-se de uma inversão do ônus da prova: primeiro se pesca, depois se formula a causa de pedir. Um expediente que, longe de fortalecer o contraditório, o subverte.
A IBA Rules on the Taking of Evidence in International Arbitration é bastante clara nesse sentido: pedidos de documentos devem estar lastreados em três critérios cumulativos — relevância, materialidade e especificidade. E mais: a parte requerente deve demonstrar que os documentos não estão sob sua posse ou controle e indicar sua existência com razoável probabilidade. O objetivo é claro: evitar a banalização do procedimento probatório.
Exemplos não faltam. Em uma arbitragem envolvendo disputa de M&A, uma parte requer “todas as comunicações internas entre os administradores nos últimos oito anos”, sem indicar contratos, datas ou fatos determinados e, pior: os motivos. Em outra, um ente público solicita aos árbitros que uma concessionária do setor de transportes terrestres forneça “todos os pareceres regulatórios” emitidos desde a assinatura do contrato, sem apontar qualquer vínculo com atos concretos.
São pedidos que deslocam para a fase probatória a função que caberia à petição inicial.
Jeffrey Waincymer alerta: ainda que seja aceitável algum grau de suspeita como justificativa inicial, o pedido deve sempre guardar relação direta com alegações já formuladas. Quando isso não ocorre, o pedido se descaracteriza como meio de prova e passa a servir à especulação processual .
O risco se agrava quando o litígio envolve entes públicos. Como aponta Noah Rubins, Estados tendem a restringir o acesso documental, alegando sigilos institucionais, enquanto a parte privada — muitas vezes compelida a plena transparência — se vê submetida a uma assimetria probatória perversa .
A crítica à produção excessiva de documentos não é injustificada. Klaus Sachs observa que, em sistemas de civil law, a fishing expedition é percebida como violação ao princípio dispositivo e ao dever de concentração dos atos processuais. A busca desenfreada por documentos ofende a lógica de celeridade e sufoca o processo com sobrecarga inútil .
No entanto, há quem defenda um certo grau de elasticidade. Nos parece que, a função do árbitro não é apenas resolver o litígio, mas fazê-lo por meio do procedimento mais adequado. Isso inclui avaliar, com parcimônia e discricionariedade, quando o “poder de produção” se transforma em “dever de produção”.
O problema, como sempre, é o abuso. A fishing expedition transforma a arbitragem — que deveria ser técnica, ágil e dirigida — num contencioso pantanoso e reativo. Além de inflar custos, compromete a paridade de armas, impondo à parte requerida o ônus de revisar acervos imensos por documentos que sequer estão relacionados a fatos controvertidos.
É necessário discernimento. Nem toda produção documental robusta é especulativa. Em litígios complexos, sobretudo os regulatórios, é legítimo buscar informações técnicas que estejam sob controle exclusivo de uma das partes. Mas isso exige delimitação: datas, autores, temas, impacto econômico. Sem esses filtros, o pedido deixa de ser técnico e passa a ser tático — e, portanto, abusivo.
A produção documental não pode ser convertida em ferramenta de investigação prospectiva, voltada à descoberta de fatos ainda inexistentes no processo. A arbitragem não comporta a lógica inquisitorial travestida de diligência probatória. O árbitro julga com base nos fatos alegados, não nos fatos imaginados. Quando uma parte formula pedidos genéricos com o objetivo de “ver se encontra algo útil”, ela não busca esclarecer o litígio — busca fabricá-lo retroativamente. Trata-se de uma inversão metodológica inaceitável, que contamina o procedimento com elementos especulativos e transforma a prova em instrumento de construção narrativa oportunista. A prova, na arbitragem, deve ser meio de verificação, não atalho argumentativo.
A fishing expedition se torna especialmente nociva quando atua como instrumento de agravamento de assimetria informacional entre as partes. Em vez de corrigir a desigualdade natural de acesso às provas, ela inverte a lógica da produção documental: transfere ao adversário o ônus investigativo da parte que não tem tese formada. Ocorre, assim, uma erosão do princípio da lealdade processual — pois se explora a opacidade do outro lado não para esclarecer um fato controvertido, mas para tentar descobrir um, qualquer que seja, que permita reconfigurar a narrativa. Em arbitragens empresariais, contratuais ou regulatórias, em que um dos polos frequentemente detém maior domínio sobre os fluxos documentais, a proteção contra pedidos especulativos se revela não apenas técnica, mas ética.
Vale lembrar: o artigo 3.3 das IBA Rules exige que o requerente declare por que os documentos não estão sob seu controle e por que acredita que estão sob posse da parte adversa. Essa declaração não pode ser meramente formal. Deve ser substancial, sob pena de rejeição sumária do pedido.
Em última análise, o combate à fishing expedition é um esforço de preservação do devido processo legal. Não basta que o processo seja justo — ele precisa parecer justo. E não há justiça quando se permite que a prova documental seja usada como arma de desgaste e não como ferramenta de esclarecimento.
O árbitro tem, nesse contexto, papel central. Não basta atuar como garantidor da relevância e materialidade. Ele deve também controlar o timing, a proporcionalidade e o impacto estratégico da prova requerida. O gerenciamento probatório é uma dimensão indeclinável do seu poder-dever jurisdicional.
Sob o ponto de vista econômico, o fishing expedition impõe custos difusos e benefícios assimétricos. A parte que formula um pedido genérico transfere ao outro litigante — e, por vezes, ao próprio tribunal — o encargo de examinar acervos extensos, digitalizar arquivos, identificar documentos e justificar omissões. Trata-se de uma externalização estratégica de custos, que compromete a eficiência do processo e desloca recursos de análise para atividades infrutíferas. Pior: o retorno dessa “pesca” é incerto, mas os danos procedimentais são certos — aumento do tempo, do custo e da complexidade do litígio. Quando aceita sem controle, essa prática transforma a arbitragem em um jogo de força bruta documental, incompatível com os princípios de proporcionalidade, economicidade e racionalidade que justificam sua existência.
A crítica ao fishing não é uma crítica à busca da verdade. É, antes, uma defesa do modelo arbitral como espaço de racionalidade e equilíbrio. O que se combate não é a verdade, mas a sua deformação instrumental. Porque, como bem lembra o velho ditado, até o melhor pescador pode acabar enredado pela própria rede.
Lançar redes sem saber o que virá não é, por si, um erro — desde que haja fundamento e propósito. Quando Jesus disse a Pedro para lançar novamente as redes ao mar, mesmo após uma noite infrutífera, fê-lo com consciência do que estava por vir. Pedro, embora incrédulo, obedeceu — e colheu em abundância (Lucas 5:4-6). Na arbitragem, no entanto, não se é Jesus e não se pode ser Pedro. Não se lança rede sem saber o que se busca. O árbitro não é profeta, e o processo não é milagre. A prova não é terreno de fé, mas de técnica, de precisão, de delimitação. Aquele que pede documentos deve saber por que, para que e em que medida — caso contrário, pesca em águas turvas e arrasta o procedimento junto.
A boa resolução do litígio, seja na Arbitragem seja no Judiciário, não se faz por redes ao acaso.