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Impartialidade: considerações acerca da flexibilização do processo

Por Carlos Henrique Silva de Souza[1],

Joana Beatriz dos Santos[2] e

Pedro Andrade Machado Melo[3]

 

Antes de qualquer análise crítico-textual sobre o tema escolhido, importante diferenciar os institutos macros que levaram à produção deste artigo: imparcialidade e impartialidade.

Antonio do Passo Cabral (2007) considera que a imparcialidade é um requisito anímico ligado à psicologia do julgador, implicando que o responsável pelo processo deva se guiar pela retidão de suas ações e buscando sempre uma resolução legítima e conforme o direito.

Por outro lado, desejar que o juiz seja impartial é esperar uma tipicidade em relação à sua função processual, evocando sua incapacidade de agir como parte (Cabral, ibid.).  Trata-se de uma condição objetiva relacionada à repartição funcional e à estrutura operacional do processo.

Feita a distinção, Crevelin (2021), autor do texto referencial utilizado para construção desta resenha, também aborda a imparcialidade e a separação dos poderes em relação à atuação do juiz no procedimento, destacando o dever de atuar dentro de limites constitucionais, respeitando a competência legislativa e as garantias do devido processo legal.

A análise se concentra em três eixos: na incompatibilidade da adaptação ope iudicis com a tripartição de poderes e a legalidade; na inadequação da importação do active case management estrangeiro para a legislação brasileira e na defesa da adaptação procedimental apenas via lei ou convenção das partes.

Quanto à separação dos poderes, consagrada no art. 2º da Constituição Federal de 1988, estabelece que os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário são independentes e harmônicos entre si, cada um com funções próprias e intransferíveis.

Caberá ao Legislativo editar normas gerais e abstratas sobre procedimentos, enquanto o Judiciário deverá aplicá-las de forma imparcial, sem extrapolar sua competência. Nessa perspectiva, o texto critica decisões que, sob o argumento de “adequação ao caso concreto”, acabam por legislar a partir do bench[4], desrespeitando o devido processo legislativo (Santos, 2022) e a soberania popular.

Quanto às funções do processo, é concebido como garantia fundamental contra abusos do Estado, assegurando que restrições a direitos só ocorram dentro de um rito previsível e legalmente estabelecido. A legalidade estrita (art. 5º, II, CF) exige que toda intervenção estatal – incluindo atos processuais – tenha base em lei, jamais na discricionariedade judicial.

O processo não é mero instrumento de resultados, mas um mecanismo de limitação do poder, cuja rigidez protege os jurisdicionados contra arbitrariedades. Essa visão rejeita a ideia de que o juiz possa adaptar procedimentos livremente, pois, sem claras definições de balizas legais, abre-se espaço para subjetivismos e violações a direitos como a ampla defesa e o contraditório.

Sobre a flexibilização procedimental, o texto sustenta que o juiz não tem competência para modificá-la sem autorização legal. Adaptações só são legítimas em duas hipóteses: (1) por lei ou (2) por convenção entre as partes, com o juiz atuando apenas como fiscal da validade do acordo.

Para Crevelin (2021), existe uma conotação mitológica na defesa da adaptação procedimental pelo juiz que frequentemente se apoia em dois argumentos principais: (1) a suposta necessidade de um active case management (gestão judicial ativa do processo) e (2) a correção de procedimentos que suprimem garantias processuais. No entanto, ambas as justificativas são descontextualizadas e, quando aplicadas sem critérios concretos, podem levar a uma flexibilização abusiva ao comprometer a segurança jurídica e a imparcialidade do juiz.

O active case management é um modelo originário de sistemas jurídicos adversariais, nos quais as partes têm amplo controle sobre o andamento do processo, cabendo ao juiz intervir para garantir eficiência e evitar abusos. No Reino Unido, por exemplo, estabelece regras claras sobre quando e como o juiz pode intervir, com procedimentos diferenciados conforme a complexidade da causa. Na França, o juiz instrutor tem poderes de gestão, mas sempre dentro de um sistema legalmente estruturado.

No Brasil, porém, não há tradição adversarial que justifique a importação desse modelo sem adaptações. Aqui, o processo já é predominantemente inquisitivo, com o juiz tendo amplos poderes de direção.

Defender que o magistrado possa “adaptar o procedimento” sem base legal específica significa conceder-lhe um poder quase legislativo, violando a separação de poderes e a legalidade processual anteriormente citadas. Além disso, diferentemente da Inglaterra e da França, onde a flexibilização está detalhada em leis, no Brasil seria discricionária, sujeita a critérios subjetivos e potencialmente arbitrários.

Outro discurso comum é o de que o juiz deve corrigir procedimentos defeituosos que suprimam garantias constitucionais, como o contraditório e a ampla defesa. Em tese, a ideia parece legítima, pois visa assegurar um processo justo. No entanto, há uma diferença crucial entre corrigir vícios processuais (que é dever do juiz) e recriar procedimentos sob o argumento de que a lei é insuficiente – o que ultrapassa sua competência.

A questão é problemática porque fere a segurança jurídica, já que as partes não podem prever como o processo será conduzido na hipótese de o juiz poder alterá-lo conforme sua conveniência; subverte a hierarquia democrática, já que o legislador é quem deve definir os procedimentos; cria um risco de instrumentalização, já que se o juiz pode moldar o procedimento conforme suas preferências, abre-se espaço para decisões parciais em vez de isentas.

Quando se fala em adaptação procedimental, muitas vezes o que se propõe não é uma mera correção de vícios, mas uma reconfiguração do rito processual, substituindo regras legais por critérios judiciais.

Ao tratar da igualdade dos julgamentos, Crevelin (2021) alerta para o grave risco de relativização do princípio da isonomia quando se permite ao juiz alterar o procedimento conforme sua visão pessoal. Entretanto, o processo civil, como instrumento de pacificação social e garantia de direitos, deve observar critérios mínimos de uniformidade, especialmente quanto ao rito.

Nesse ponto, o autor sustenta que o poder de adaptação não pode ser entregue ao juiz sem critérios objetivos e legais, sob pena de gerar julgamentos casuísticos e imprevisíveis.

Contudo, a crítica, embora profundamente fundamentada e coerente com os princípios do Estado de Direito, pode ser vista como excessivamente formalista e rígida diante da realidade prática do sistema judicial. A diversidade de litígios, a complexidade dos casos e as lacunas normativas frequentemente demandam soluções adaptativas para preservar a efetividade do processo. Negar completamente ao juiz qualquer possibilidade de adaptação pode inviabilizar a prestação jurisdicional eficiente e adequada em contextos excepcionais.

Após uma exaustiva explanação contra a flexibilização, vale analisar a problemática sob um aspecto menos rígido e legalista em seu sentido stricto. Caio Watkins (2023, p. 24) sustenta que:

Adaptação, por sua vez, significa o ajuste processual realizado em concreto para o atendimento de necessidades específicas. Adaptável é um processo flexível ou maleável, capaz de receber alterações ou modificações, não sendo, assim, marcado pela nota da extrema rigidez. A adaptabilidade processual, […], é um princípio que assegura o poder de se adequar o processo às especificidades do caso concreto.

Partindo do pressuposto de inexistência de distinções entre adaptação e flexibilização do processo/procedimento (Watkins, 2023), os procedimentos especiais, enquanto instrumentos de flexibilização processual criados pelo legislador, subsistem em situações limitadas.

Por um lado, observa-se uma crescente desjudicialização dos procedimentos especiais de jurisdição voluntária, como ocorre com o divórcio, o inventário extrajudicial e a usucapião extraordinária (Abreu, 2016). Por outro lado, nota-se uma mudança no eixo da adaptabilidade; deixa de ser atribuição exclusiva do legislador, por meio de procedimentos especiais, e passa a ser compartilhada pelo juiz e pelas partes.

Logo, a superação da ordinariedade, que antes justificava a multiplicação de procedimentos especiais em leis esparsas (Abreu, ibid.), servia como mecanismo de flexibilização processual, orientado pelo critério de adequação.

No entanto, essa especialização enfrenta dois problemas centrais: primeiro, a incapacidade do legislador de prever todas as situações que demandam tratamento diferenciado; segundo, o paradoxo da rigidez, já que a busca por flexibilidade, por meio da criação de procedimentos específicos, acaba gerando novos modelos igualmente inflexíveis (Abreu, ibid.).

A adaptabilidade processual ganha novo sentido quando se reconhece que o juiz também deve orientar-se por ela, assumindo um papel ativo na conformação do procedimento ao caso concreto.

Com base em normas mais flexíveis, o magistrado passa a ter maior liberdade para moldar o rito processual, tornando-o maleável e aberto a soluções atípicas. O atual Código de Processo Civil oferece diversos mecanismos que permitem essa adaptação, como a dinamização dos ônus probatórios e a flexibilização de prazos e da ordem de produção de provas.

Além disso, as partes podem participar ativamente dessa conformação, como ocorre na organização compartilhada da causa e na definição do calendário processual. No entanto, esse poder concedido ao juiz não é ilimitado; as partes e a sociedade exercem controle sobre essas decisões, seja por meio do debate processual, seja pela exigência de fundamentação detalhada das decisões, inclusive com a aplicação do princípio da proporcionalidade.

Portanto, o desafio está em conciliar a necessidade de flexibilidade com os limites da legalidade. A atuação do magistrado deve ser orientada por critérios objetivos, proporcionalidade e motivação adequada, sempre dentro dos limites previamente definidos pelo ordenamento. Assim, é possível preservar a igualdade e a previsibilidade sem sacrificar a efetividade da tutela jurisdicional.

Em suma, a obra de Crevelin cumpre papel relevante ao propor uma crítica contundente ao ativismo judicial desmedido na condução do procedimento, reafirmando os pilares da isonomia, legalidade e imparcialidade. Ainda que mereça ponderações quanto à sua rigidez, sua contribuição é valiosa para o debate sobre os contornos e fundamentos do processo.

 

Notas e Referências:

ABREU, Rafael Sirangelo de. Customização processual compartilhada: o sistema de adaptabilidade do novo CPC. Revista de Processo, vol. 257, jul. 2016. Disponível em: https://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RPro_n.257.07.PDF Acesso em: 3 de mar. 2025

BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm Acesso em: 3 de mar. 2025

BRASIL. Constituição Federal (1988). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 3 de mar. 2025

CABRAL, Antonio do Passo. Imparcialidade e Imparcialidade: por uma teoria de repartição de funções no processo. Revista de Processo, v. 32, n. 149, jul. 2007, p. 339-364. Disponível em: https://www.academia.edu/1094303/Imparcialidade_e_Impartialidade_por_uma_teoria_de_reparti%C3%A7%C3%A3o_de_fun%C3%A7%C3%B5es_no_processo Acesso em: 31 de mar. 2025

WATKINS, Caio. O Poder Geral de Adaptação do Processo: o juiz e as tendências contemporâneas da flexibilização procedimental. Londrina, PR: Thoth, 2023. 307 p. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/handle/1/21034 Acesso em: 3 de mar. 2025

SOUSA, Diego Crevelin de. Impartialidade: a divisão funcional de trabalho entre partes e juiz a partir do contraditório. Belo Horizonte, MG: Casa do Direito, 2021. 450 p.

SANTOS, Samuel Martins. O devido processo legal como conceito-chave de análise das relações entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário: um enfoque nas relações entre os poderes. Revista do Legislativo Paranaense, n. 6, out. 2022, p. 103-121. Disponível em: http://revista.alep.pr.gov.br/index.php/escolalegislativo/article/view/169/pdf# Acesso em: 3 de mar. 2025

[1] Graduando em Direito pelo Centro Universitário Frassinetti do Recife (UniFAFIRE). Escritor e assistente jurídico da Empresa de Advocacia Queiroz Cavalcanti – QCA. E-mail: carloshenriquesilva@grad.fafire.br

[2] Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Frassinetti do Recife (UniFAFIRE). Escritora e pesquisadora na área de Processo Civil. Colunista. Monitora acadêmica em Direito Civil I, Direito Constitucional II, Direito Penal I, Teoria Geral do Processo e Processo Civil I. Membra do GMMA – Grupo Marco Maciel de Arbitragem. Estagiária da Procuradoria Regional da União (AGU/PRU-5). E-mail: joanabeatrizsantos@grad.fafire.br

[3] Graduando em Direito pelo Centro Universitário Frassinetti do Recife (UniFAFIRE). Escritor e estagiário da Procuradoria Regional Federal (AGU/PRF-5). E-mail: pedroandrademachado@grad.fafire.br

[4] Termo utilizado para caracterizar a atuação legislativa dos juízes, ultrapassando o limite da função precípua.

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