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Inafastabilidade da jurisdição: É ilícito prever cláusula de mediação obrigatória em contratos de consumo?

Por Maria Fernanda Ramos de Melo[1][2].

 

No artigo “Cláusula de mediação ou negociação obrigatória nos contratos de consumo: violação ao acesso à Justiça?” Alexandre Moura Alves de Paula Filho, realizou uma análise empírica de natureza qualitativa quanto à presença ou não de abusividade em dois contratos de grandes empresas nacionais que preveem cláusulas limitativas perante o acesso à justiça.

O artigo em sua introdução faz menção a previsão constitucional do direito fundamental da inafastabilidade da jurisdição e ressalta a manifestação deste em outras fontes de direito processual, como o artigo 3º do Código de Processo Civil de 2015. Mendes e Branco (2014, p.135) definem os direitos fundamentais como “os valores mais caros da existência humana”, tornando racional e razoável a manifestação destes direitos nas normas infraconstitucionais visando evitar quaisquer vícios de legalidade que possam surgir na atuação dos órgãos do poder judiciário.

Ainda na introdução, o autor faz menção ao Movimento Universal do Acesso à Justiça e as suas três ondas: a assistência judiciária gratuita, a tutela dos interesses difusos e, por último, as adequações processuais necessárias para a resolução de conflitos no qual se destacam a arbitragem e à conciliação, assim, para Cappelletti e Garth é essencial não existir limitações ao mero “acesso ao juiz”. O questionamento do termo “método alternativo” é posto em destaque ao trazer a ideia da existência de um método principal – a decisão judicial que seria sempre uma “opção A” e os métodos alternativos que, consequentemente, seriam sempre “opções B” na solução de conflitos. Evidentemente a utilização do termo “método alternativo” é errôneo e o autor ressalta a utilização de uma terminologia mais correta – os “métodos adequados”. Esta mudança, para além de derrubar conceitos limitadores de evolução dos métodos de solução de conflitos (como, por exemplo, o acesso à justiça coincidir com o acesso ao judiciário), é essencial para a ótica de Justiça multiportas visto que a decisão imposta pelo juiz deixa de ser sempre “opção A” na solução de conflitos, garantindo uma maior flexibilidade e eficiência.

As convenções pré-processuais como mencionado por Alexandre de Paula Filho podem trazer vantagens como a previsibilidade e prevenção de situações que seriam  consideradas indesejáveis ao longo do processo que são plenamente admissíveis, face o artigo 190 do Código de Processo Civil em vigor que, para Fernandes (2016) promoveria uma flexibilidade por meio de um autorregulamento que se adequaria às peculiaridades circunstanciais das partes.

Surge, portanto, ponderações da validade das cláusulas limitativas do acesso à justiça, no qual, segundo o autor, é convencionado a não utilização do Poder Judiciário desde que seja estipulado cláusulas obrigatórias de negociação ou mediação extrajudicial antes de um ajuizamento de uma demanda, ou por meio de uma cláusula compromissória que estipula a adoção de arbitragem como solução de conflito, onde se ressalta o fato de ser essencial não limitar o acesso à justiça ao se limitar o acesso à jurisdição. Se isto acontecesse, a nulidade contratual seria evidente sob levantamento de críticas ao ferimento do direito fundamental, da inafastabilidade da jurisdição e ao ferimento dos métodos adequados de solução de conflitos, ao comprometer a eficiência do pacta sunt servanda.

Ao unir as ponderações da validade das cláusulas limitativas ao acesso à justiça com a existência dos contratos de adesão surge a problemática das cláusulas abusivas: se uma das partes não apresenta a possibilidade de manifestar a sua vontade face cláusula abusiva durante a celebração do contrato se torna um tudo ou nada onde é inexistente a flexibilização de cláusulas contratuais, ferindo a boa-fé. De tal modo, Alexandre de Paula Filho ressalta a proteção contratual em favor do consumidor por meio dos artigos 46 e 47 do Código de Defesa do Consumidor em vigor.

Deste modo, além do direito brasileiro contemplar no rol de cláusulas abusivas as cláusulas limitativas do acesso à justiça, é necessária a análise do caso em particular e suas especificidades, que se torne evidente a dificuldade do ajuizamento de uma demanda.

Levantam-se questionamentos perante a ilegalidade da cláusula de mediação obrigatória que inviabiliza o ajuizamento de demandas no judiciário antes de ser realizada uma tentativa de mediação. Em uma primeira ótica é até observável uma antítese visto a mediação ter em sua natureza a vontade entre as partes, de forma solidária e autônoma que, segundo o Conselho Nacional de Justiça (2017), esta nunca poderia ser “obrigatória”.

Por outro lado, esta obrigatoriedade só se encontraria estipulada por meio de comum acordo, por meio de cláusulas contratuais, o que implica de certo modo a existência de uma manifestação de vontade entre as partes. Ademais, é importante citar a fala de Guilherme Sampaio, diretor da Agência de Transportes Terrestres (ANTT) durante o Painel 24 de debates da OAB (2023): “Buscar meios de não chegar ao litígio permite a economia de recursos, tempo e soluciona o problema com mais agilidade. Nesse sentido, a arbitragem e a mediação têm se tornado um meio efetivo”.

Ao ponderar sobre a mediação obrigatória ser ou não uma cláusula limitativa do acesso à justiça, o autor pontua que a Lei de Mediação que afirma que para o desrespeito destes casos, o magistrado apresenta a obrigação de suspender o curso do procedimento durante prazo acordado ou até que ocorra a reunião de mediação. Destaca-se também o aspecto da Lei de Mediação ser abrangente a todos os contratos. Porém, isto não afasta a realidade de haver casos a qual a imposição de mediação em um contrato de adesão em que não se possa optar sua dispensa, desrespeitando a inafastabilidade da jurisdição.

Por fim, o autor faz a análise de dois exemplos de contratos de consumo com previsão de cláusula de mediação: o primeiro, um contrato de transporte aéreo de uma companhia brasileira, onde o autor critica que as passagens aéreas se operam em sua maioria no ambiente digital, onde a assinatura do consumidor é realizada por um “clique” que consente o contrato na sua totalidade, onde é indisponível a sua anuição e, o segundo exemplo, trata-se do uso de um site que intermedeia compras online e seus termos e condições gerais que estipulam possuir equipe especializada para mediar os conflitos – o que ensejaria questionamentos perante a neutralidade do mediador, além de ser igualmente abusivo em comparação com o primeiro contrato. O autor conclui, após sua análise, que ambos os contratos são abusivos, por privarem o consumidor da sua livre escolha legalmente prevista e protegida.

De modo a responder à pergunta do título desta resenha crítica: “É ilícito prever cláusula de mediação obrigatória em contratos de consumo?” Considera-se que não seria ilícito, desde que exista, como observado ao longo deste texto, a proteção do princípio da inafastabilidade da jurisdição, a autonomia por parte do consumidor de forma expressa para optar ou não, assim como a capacidade do consumidor poder se desvincular da cláusula de modo a poder migrar efetivamente para o acesso a via judicial. Ressalta-se também uma crítica a existência da cláusula de mediação obrigatória em contratos de consumo: o fornecedor “censura” o consumidor por meio do sigilo característico das mediações, mantendo uma imagem pública como ofertante de serviço aparentemente purgado de ilicitude quando, na realidade, está acontecendo o contrário.

 

Notas e Referências:

CNJ – CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Conciliação e Mediação. [S.l.]. CNJ, 2017. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/conciliacao-e-mediacao/. Acesso em: 3 jun. 2024.

FERNANDES, Fabrício dos Santos. Negócio jurídico pré-processual no Novo Código De Processo Civil. ln: Jusbrasil. [S.l.]. 2016. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/negocio-juridico-pre-processual-no-novo-codigo-de-processo-civil/405020760. Acesso em: 3 jun. 2024.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paula Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

OAB – ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Painel 24 – Meios adequados de solução de conflitos. [S.l.]. OAB, 2017. Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/61741/painel-24-meios-adequados-de-solucao-de-conflitos. Acesso em: 3 jun. 2024.

PAULA FILHO, Alexandre Moura Alves de. Cláusula de mediação ou negociação obrigatória nos contratos de consumo: violação ao acesso à Justiça? Revista de Processo. vol. 315. ano 46. p. 421-442. São Paulo: Ed. RT, maio 2021.

[1] Resenha apresentada para a disciplina de Métodos de solução de conflitos e pacificação social do curso de Direito, no turno da manhã, do Centro Universitário Frassinetti do Recife. Sob orientação do professor Alexandre Moura Alves de Paula Filho.

[2] Maria Melo, bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário Frassinetti do Recife. E-mail para contato: mariafernandaramos@grad.fafire.br.

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