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NEM TODA CRIANÇA GRITA: Por uma escola que chegue antes

Por Fernanda Carolina de Araujo Ifanger1 e

Lucilene Marques da Fonseca2

 

Nós precisamos adotar a postura de que é preciso chegar antes que uma criança se torne um prontuário médico, um boletim policial, um processo judicial, um dossiê psicossocial, uma notícia de jornal ou um corpo no necrotério. — Maria Amélia Azevedo & Viviane Guerra (2018)

Introdução

Maio é o mês do alerta. Com o laço laranja no peito, somos convidados a enxergar o que muitas vezes se esconde no silêncio das infâncias: a violência sexual—podemos entender essa forma de violência contra crianças e adolescentes como englobando as situações de exploração sexual e também de abuso sexual intrafamiliar e extrafamiliar.

A exploração sexual é descrita pela Organização Internacional do Trabalho (OIT, 1999) como uma das piores formas de trabalho infantil. Ela se refere à mercantilização dos corpos de crianças e adolescentes, com fins sexuais, tendo como objetivo precípuo obter lucro ou benefícios para o mediador e/ou aliciador — os agentes se aproveitam de alguma vulnerabilidade à que está sujeita à criança ou adolescente, que muitas vezes enganam, deturpam e motivam sua saída da residência familiar, para aliciá-la.

Esse tipo de conduta pode culminar na prática de diferentes crimes previstos na legislação penal, tais como tráfico para fins de exploração sexual, pornografia, prostituição infantil, dentre outras. Por sua vez, as situações de abuso sexual extrafamiliar ou intrafamiliar diferem-se da exploração sexual por não terem caráter mercantil —as condutas relacionadas a esse tipo de violência podem incidir em diversos tipos penais, a exemplo do estupro de vulnerável, da importunação sexual, entre outras.

Nesses casos é possível identificar um perfil comum aos autores e vítimas dessas condutas. Os algozes costumam ser homens que fazem parte do convívio social das crianças, tais como: pais, padrastos, vizinhos e, as vítimas são geralmente do gênero feminino. (Fukumoto; Corvino; Olbrich Neto, 2011).

No Brasil, uma criança ou adolescente é vítima de abuso a cada 10 minutos (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022). É assustador — e é real.

Em qualquer dessas modalidades, trata-se de um importante problema de saúde pública, uma  grave  violação  de  direitos humanos,  que  tem  profundas  e  duradouras  consequências  para  as  vítimas, especialmente quando implica na perda da confiança que tinha em pessoas próximas.

Entre histórias que nos obrigam a não virar o rosto está a de Araceli Cabrera Sánchez Crespo, sequestrada e assassinada aos 8 anos em 1973. Sua memória inspira a campanha Maio Laranja, que nos cobra responsabilidade coletiva.

Mas há outras vozes, e outras formas de gritar — inclusive com o corpo.

 

“Apesar de,” – Quando a arte fala o que o silêncio não conta

Lançado no contexto do Maio Laranja, o documentário Apesar de, dirigido por Beatriz Prates, constrói uma narrativa sensível e impactante sobre a violência sexual infantil ao retratar a história real da contorcionista Georgia Bergamim, abusada sexualmente entre os oito e onze anos de idade. No filme, o corpo em movimento torna-se metáfora e denúncia: a arte é a linguagem escolhida para resistir à dor e convocar a sociedade à urgência da escuta e da denúncia. O contorcionismo, mais do que técnica, transforma-se em expressão política e poética da sobrevivência. Memórias de infância registradas em fitas VHS — festas de aniversário, por exemplo — são justapostas a coreografias criadas especialmente para o longa, entrelaçadas pela trilha sonora sensível de Arthur Decloedt.

Durante exibição realizada na sede da OAB/SP, em 16 de maio, Prates (2025) afirmou: “Este filme foi feito para gerar conversas. O abuso infantil acontece entre quatro paredes. Precisamos falar mais sobre o tema”. Ao permitir que a arte diga o que muitas vezes não pode ser verbalizado, o documentário reforça o papel fundamental da cultura como instrumento de mediação simbólica, escuta sensível e mobilização social frente à violência. Essa função de escuta e denúncia — que extrapola a linguagem formal — deve ser igualmente assumida pela escola, enquanto espaço privilegiado de proteção e construção coletiva da cultura do cuidado.

 

Que posso esperar da escola?

A escuta da criança vítima de violência, prevista na Lei nº 13.431/2017, não pode se restringir ao momento em que o trauma já foi consumado. A escola precisa ser capaz de enxergar para além do visível, de acolher os sinais que se manifestam nas entrelinhas do cotidiano — nos silêncios, nos gestos, nos desenhos e nas ausências. É nesse território aparentemente banal que, segundo o olhar cirúrgico de José Mário Pires Azanha (2011), reside a potência reveladora da prática educativa, pois é no cotidiano escolar que os sentidos mais profundos das experiências escolares se anunciam. Como afirmam Azevedo e Guerra (2018), “chegar antes” é mais do que uma ação pedagógica: é um gesto ético e político. E, como nos ensina Paulo Freire (1996), o bom professor não ensina apenas conteúdos — ele se posiciona diante do mundo e se recusa à neutralidade diante da dor.

Contudo, mesmo com o marco legal do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), a violência — sobretudo sexual — persiste como uma chaga invisibilizada, agravada pelo fato de que mais de 70% dos abusos ocorrem dentro da própria família (Pesquisa FAPESP, 2020). O silêncio, o medo e a desigualdade racial aprofundam a subnotificação, enquanto milhares de crianças permanecem sem amparo efetivo. Diante desse cenário, a escola não deve apenas transmitir conteúdos, mas integrar uma rede de proteção sensível, capaz de escutar, acolher e agir com responsabilidade ética e social.

 

A banalização do corpo: O grito da juventude

Em uma sociedade marcada pela erotização precoce, pelo silêncio diante da violência e pela ausência de uma educação sexual responsável, o corpo das crianças e adolescentes torna-se alvo de práticas abusivas cada vez mais naturalizadas. O caso da adolescente de 13 anos que engravidou após participar de uma prática conhecida como “roleta russa sexual” (Correio Braziliense, 2025) escancara a fragilidade da formação ética e afetiva de crianças e adolescentes em nosso país. Atividades apresentadas como supostas “brincadeiras” envolviam práticas sexuais sem proteção e sem qualquer compreensão dos riscos envolvidos, revelando o quanto o corpo infantojuvenil tem sido exposto a experiências violentas travestidas de liberdade. Essa banalização da sexualidade não aponta apenas para o silêncio das instituições, mas também para a ausência de políticas públicas efetivas e contínuas de educação para as relações e para o cuidado. É urgente que a escola, a sociedade e o poder público atuem de forma articulada e responsável — rompendo com o ciclo da omissão, da negligência e da violência que ainda silencia tantas infâncias.

 

Arte, escola e denúncia: a rede que protege

O documentário Apesar de, a vida ceifada de Araceli, os casos anônimos que surgem diariamente nas escolas — todos nos mostram que nenhum grito é igual ao outro, mas todos merecem ser ouvidos. A arte, nesse cenário, não é apenas expressão: é resistência, denúncia e ponte de reconstrução subjetiva — a campanha Maio Laranja não é só uma data. É um compromisso com a escuta, com a prevenção, com a construção de vínculos. É um chamado para que a escola seja território de dignidade, e não de silêncios –.

Já em 1988 a Constituição Federal brasileira foi a primeira carta constitucional a reconhecer a prioridade absoluta dos direitos das crianças e adolescentes, e identificou a responsabilidade do Estado, da sociedade e da família na proteção desses sujeitos de direitos — esse debate se fortalece também na comunidade científica. A Revista Pesquisa FAPESP já abordou, por exemplo, o impacto das violências silenciosas no artigo “Violência sexual contra homens é subnotificada”, que mostra como a invisibilidade da dor e a falta de escuta dificultam também a denúncia entre vítimas do sexo masculino, sobretudo adolescentes. A violência sexual contra meninos e homens permanece amplamente silenciada, com apenas 9% dos meninos denunciando os abusos sofridos, em contraste com 46% das meninas, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (2022). Esse silêncio está fortemente relacionado aos estigmas da masculinidade, que inibem a expressão de vulnerabilidade e dificultam o reconhecimento da violência. Estudos indicam que vítimas masculinas apresentam maior risco de uso de drogas, isolamento social, disfunções sexuais e ideação suicida, sobretudo quando os abusos ocorrem na infância e são prolongados (Pesquisa FAPESP, 2024). Apesar da gravidade, apenas 53 dos 1.400 artigos nacionais sobre violência sexual abordam especificamente homens como vítimas, revelando lacunas críticas na produção científica. Iniciativas independentes de acolhimento psicológico e ações pedagógicas em escolas públicas têm se mostrado fundamentais para romper o silêncio e oferecer suporte e prevenção, sendo amparadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), que impõe o dever legal de comunicar casos de violência (art. 13), responsabiliza quem se omite (art. 245) e determina que dirigentes escolares realizem a notificação obrigatória (art. 56).

Outro destaque é a reportagem “Um horizonte de direitos”, que revisita os 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e evidencia os desafios contemporâneos na garantia de proteção integral. Ora, mesmo após três décadas de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), a violência contra crianças e adolescentes permanece como um dos maiores desafios à efetivação de seus direitos no Brasil. Entre 1990 e 2017, os homicídios de adolescentes mais que dobraram, passando de 5 mil para 11,8 mil por ano, sendo que 81% das vítimas eram negras, evidenciando a desigualdade racial na violação desses direitos (Pesquisa FAPESP, 2020). Além disso, mais de 70% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes são praticados por familiares, muitas vezes no ambiente doméstico, o que dificulta a denúncia e o acolhimento. Apesar dos avanços institucionais impulsionados pelo ECA, como a criação dos conselhos tutelares e o reconhecimento da criança como sujeito de direito, o enfrentamento efetivo da violência ainda exige investimento em políticas públicas intersetoriais e escuta qualificada das vítimas.

Esses textos ampliam o escopo das ações educativas e mostram que a escuta — seja ela mediada por arte, vínculo pedagógico e pesquisa — é o primeiro passo para interromper o ciclo da violência e a cultura acovardada do silêncio.

 

Notas e Referências:

AZANHA, J.M.P. Uma Ideia de Pesquisa Educacional. 2. Ed. São Paulo: EDUSP, 2011.

AZEVEDO, M.A; GUERRA, V.N.A. Infância e violência doméstica. 7. ed. São Paulo: Cortez, Fronteiras do Conhecimento, 2018.

BRASIL. Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.

CORREIO BRAZILIENSE. Psicanalista relembra adolescente grávida e reforça alerta. Brasília, 19 abr. 2025. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2025/04/7115750-psicanalista-relembra-adolescente-gravida-e-reforca-alerta.html. Acesso em: 24 maio 2025.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 41 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023.

FUKUMOTO, A. E. C. G.; CORVINO, J. M.; OLBRICH NETO, J. Perfil dos agressores e das crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Rev. Ciênc. Ext. v.7, n.2, p.71-83, 2011.

PRATES, B. . Apesar de, documentário. Exibido em 16 mai 2025.  Local: OAB-SP.

REVISTA PESQUISA FAPESP. Violência sexual contra homens é subnotificada. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/violencia-sexual-contra-homens-e-subnotificada/ Acesso em: 16 mai 2025.

REVISTA PESQUISA FAPESP. Um horizonte de direitos. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/um-horizonte-de-direitos/ Acesso em: 16 mai 2025.

VITORINO, A.J.R. Que posso conhecer da escola? Notas sobre a noção de crítica. Educação, Santa Maria, v. 47, 2022. Disponível em: http://educa.fcc.org.br/pdf/edufsm/v47/1984-6444-edufsm-47-e48345.pdf. Acesso em: 15 mai 2025

1 Membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito (PPGD) da PUC-Campinas. Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (2014), mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (2010), Bacharelada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2006).

2  Mestranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, integrante do GRAPSE – Grupo de Avaliação, Políticas e Sistemas Educacionais do PPGE-PUC-Campinas, linha de pesquisa em Políticas Públicas, cuja pesquisa centra nas “AÇÕES ARTICULADAS ENTRE A SECRETARIA DE EDUCAÇÃO E A SECRETARIA MUNICIPAL DE SEGURANÇA PÚBLICA DE CAMPINAS (SP) EM PROL DA CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA DE PAZ NAS ESCOLAS”, sob orientação do Prof. Dr. Lucas Catib Laurentiis  e coorientação da Profª. Drª. Mônica Piccione Gomes Rios. Mãe da doce Luiza (in memoriam).

 

 

Colunista

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Lucas Laurentiis
Professor Titular Categoria A1 da PUC-Campinas. Coordenador e membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito (PPGD), vinculado à linha de pesquisa "Cooperação Internacional e Direitos Humanos". Mestre e doutor em Direito constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi pesquisador visitante com bolsa CAPES sanduíche da Albert Ludwigs Universität Freiburg e do Instituto Max Planck de Freiburg. É especialista em Direito constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. . Foi professor nos cursos de especialização e pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Foi professor e orientador da Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público. Foi pesquisador e professor convidado da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e Membro da comissão de Direito constitucional da OAB-SP. . Atua nas áreas de direito público, liberdade de expressão e proteção de dados

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