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O Processo Coletivo em Rede

Por Natália Chernicharo Guimarães*

 

Introdução

O modelo de democracia representativa, tal como consolidado nas democracias ocidentais contemporâneas, vive uma crise de legitimidade que transcende a esfera política e alcança os mecanismos jurídicos de representação coletiva. As instituições tradicionais já não conseguem dar conta da complexidade e pluralidade de demandas sociais, sobretudo em contextos de grandes conflitos coletivos e desastres socioambientais. Nesse cenário, adquire centralidade a proposta de superação do modelo estritamente representativo por meio da democratização efetiva dos processos de tomada de decisão. O campo jurídico, especialmente no que tange ao processo coletivo, é um terreno fecundo para repensar formas de participação cidadã, de redistribuição de poder e de reconfiguração do papel dos sujeitos coletivos.

É nesse contexto que surge a proposta do processo coletivo em rede, concebido a partir de um diagnóstico crítico das limitações do modelo tradicional e de uma aposta na democracia ativa como fundamento normativo e procedimental. A obra que o sustenta propõe a reorganização do processo coletivo com base na participação direta, no uso inteligente das tecnologias digitais e na atuação das Assessorias Técnicas Independentes (ATIs), como forma de devolver protagonismo aos sujeitos historicamente silenciados pelo modelo jurídico tradicional. O presente artigo tem por objetivo apresentar os principais pontos dessa proposta, com base nas reflexões desenvolvidas na obra, detalhando sua fundamentação teórica, suas críticas ao modelo atual e sua aplicação prática, com foco no caso paradigmático da Bacia do Paraopeba, em Minas Gerais.

Crítica à democracia representativa e o fundamento da democracia ativa

A crítica à democracia representativa constitui o ponto de partida da proposta. Parte-se da constatação de que os mecanismos tradicionais de representação política e jurídica, por mais bem intencionados que sejam, reproduzem estruturas hierárquicas e excludentes. Autores como Wendy Brown (2019) denunciam que a captura da democracia pelas lógicas de mercado e o enfraquecimento dos direitos sociais esvaziam o poder do povo, transformando-o em espectador da política. Segundo a autora, o demos está sendo despojado de sua capacidade de autogoverno por uma combinação de neoliberalismo econômico e tecnocracia jurídica (Brown, 2019).

A esse diagnóstico soma-se a crítica de Boaventura de Sousa Santos (2011), para quem a democracia liberal ocidental sempre foi um projeto incompleto, atravessado por exclusões estruturais. Para Santos (2011), a democratização da democracia exige a incorporação de práticas participativas que desafiem as formas tradicionais de autoridade e saber. A noção de democracia ativa, central na proposta do processo coletivo em rede, alinha-se a esse movimento. A democracia ativa não é apenas a ampliação formal do direito ao voto ou à informação, mas uma transformação substantiva das relações de poder entre cidadãos e instituições. Ela pressupõe que os sujeitos afetados por decisões públicas tenham o direito de participar da sua formulação, execução e avaliação.

Nesse sentido, torna-se necessário deslocar o eixo da democracia da representação para a participação. Esse deslocamento não implica rejeição das instituições representativas, mas a sua reconfiguração a partir da inclusão de mecanismos de escuta, deliberação e coautoria das decisões. A democracia ativa é, portanto, um projeto contra-hegemônico, que busca romper com o monopólio das elites políticas, jurídicas e econômicas sobre os destinos coletivos. Trata-se de uma reconstrução radical do conceito de cidadania, que deixa de ser um status passivo e se transforma em prática cotidiana de construção do comum.

A centralidade da cidadania participativa

O núcleo da democracia ativa, segundo proposta desta autora, é a cidadania participativa. Em contraposição à concepção liberal de cidadania como mero gozo de direitos civis e políticos, a cidadania participativa pressupõe o engajamento ativo dos sujeitos na vida pública. Pedro Demo (2009) define o cidadão como aquele que participa e transforma, rompendo com a lógica da subordinação e da dependência institucional. A cidadania é, nesse contexto, uma construção social e política permanente, alimentada por processos de empoderamento e apropriação dos espaços públicos.

José Alfredo Baracho (1995) reforça essa ideia ao afirmar que não há democracia sem cidadãos ativos e conscientes de seus direitos e deveres. A participação, nesse modelo, não é apenas um direito, mas um dever ético-político, que permite o surgimento de comunidades políticas autênticas. A proposta do processo coletivo em rede se ancora nesse paradigma de cidadania. A coletividade atingida por um dano não deve ser tratada como massa homogênea a ser tutelada, mas como sujeitos plurais com capacidade de deliberar, disputar sentidos e construir soluções.

Essa concepção de cidadania dialoga com perspectivas críticas da modernidade, como a proposta de Walter Mignolo (2015), que denuncia a colonialidade do saber e do poder nas estruturas ocidentais. A decolonização do processo passa pela valorização dos saberes locais, das experiências populares e dos modos de vida silenciados pelo discurso jurídico hegemônico. O processo coletivo em rede, ao abrir espaço para a participação direta dos titulares dos direitos coletivos[1], constitui uma ferramenta de decolonização epistemológica e política.

Limitações do modelo representativo no processo coletivo

A crítica ao modelo representativo no processo coletivo é fundamentada em uma análise comparativa entre os sistemas norte-americano, italiano e brasileiro. As class actions estadunidenses, apesar de terem desempenhado papel relevante na tutela de direitos difusos, foram progressivamente esvaziadas por reformas legislativas e decisões judiciais que restringiram seu alcance. Joanne Doroshow (2018) denuncia os ataques legislativos as class actions, com destaque para os obstáculos criados para a certificação das classes e a imposição de cláusulas de arbitragem compulsória que retiram os litígios da esfera judicial.

Na Itália, a tentativa de transplantar o modelo americano fracassou diante de uma cultura jurídica avessa à coletivização dos litígios e de um arcabouço normativo que demorou a ser produzido. Em síntese, a Itália foi incapaz de replicar as condições sociopolíticas que sustentaram a expansão das class actions nos Estados Unidos, quando da criação da ação coletiva norte-americana.

No Brasil, o modelo representativo instaurado com a Lei da Ação Civil Pública (1985) e o Código de Defesa do Consumidor (1990) atribuiu legitimidade ativa a entes institucionais, como Ministério Público e associações civis, para ajuizar ações em nome de uma coletividade. Apesar de avanços importantes, esse modelo manteve os sujeitos titulares dos direitos coletivos à margem do processo. Como apontam Guimarães e Soares (2020), a lógica representativa brasileira reproduz uma “encriptação do saber e do poder”, em que apenas atores legitimados podem falar em juízo, silenciando os verdadeiros afetados.

Essa estrutura reforça a verticalização do processo e perpetua uma concepção tecnocrática da justiça, em que o povo é excluído sob o pretexto de sua suposta incompetência técnica. A consequência é a reprodução de desigualdades e a ausência de soluções sensíveis às especificidades locais[2]. A crítica é, portanto, estrutural e exige a superação do modelo vigente.

O caso da Bacia do Paraopeba e a farsa da participação

O rompimento da barragem da mineradora Vale em Brumadinho (MG), em janeiro de 2019, oferece um exemplo concreto das falhas do modelo representativo. O desastre provocou a morte de 270 pessoas e impactos ambientais e sociais irreversíveis na Bacia do Paraopeba. A atuação do Ministério Público, da Defensoria Pública e do Governo do Estado buscou estruturar uma resposta coletiva, incluindo a criação de Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) para garantir o direito dos atingidos à informação e à participação.

No entanto, a experiência revelou-se insuficiente para garantir uma participação efetiva. A homologação do acordo judicial de reparação, no valor de R$ 37 bilhões, foi feita sem a presença dos atingidos ou a possibilidade de sua manifestação sobre os termos do acordo. A participação foi reduzida a uma formalidade e as decisões foram tomadas nos bastidores das instituições, sem escuta qualificada das comunidades afetadas.

Esse episódio escancara a assimetria de poder e a ausência de canais reais de deliberação coletiva. Mesmo com instrumentos como as ATIs, a lógica do processo permaneceu verticalizada, reforçando a desconfiança das comunidades em relação ao sistema de justiça. A lição extraída do caso é clara: sem transformação estrutural dos mecanismos de participação, qualquer tentativa de inclusão cidadã será simbólica e inefetiva.

A proposta do Processo Coletivo em Rede

Diante desse diagnóstico crítico, apresenta-se o modelo do processo coletivo em rede como alternativa viável e necessária. Trata-se de uma reorganização do processo coletivo baseada em três pilares: (i) a participação direta dos interessados (titulares dos direitos coletivos), (ii) a utilização de tecnologias digitais e (iii) a atuação estruturada e permanente das Assessorias Técnicas Independentes.

O modelo propõe a construção de uma plataforma digital pública e acessível em que os sujeitos atingidos possam se cadastrar, acessar informações, apresentar demandas, sugerir soluções, votar em propostas e acompanhar o andamento processual. Essa arquitetura em rede rompe com a lógica hierárquica do processo tradicional e se alinha à estrutura horizontal das redes digitais. A plataforma funcionaria como espaço de deliberação pública e construção de inteligência coletiva, conforme os princípios enunciados por Pierre Lévy (1998).

A atuação das ATIs seria institucionalizada e garantida desde o início do processo. Essas assessorias desempenhariam o papel de tradutoras dos conteúdos técnicos e jurídicos, permitindo que os cidadãos compreendam e participem de forma qualificada. O financiamento das ATIs ficaria a cargo do causador do dano, conforme o princípio do poluidor-pagador, o que garantiria sua sustentabilidade e independência.

Por fim, o uso de ferramentas de inteligência artificial (IA)[3] seria incorporado ao processo como instrumento auxiliar de gestão de dados, análise de padrões e organização da informação. A IA não substituiria os atores humanos, mas atuaria como suporte à deliberação cidadã. A transparência e a ética no uso da IA seriam princípios fundamentais do modelo.

Conclusão

O processo coletivo em rede representa um avanço significativo na busca por um processo mais democrático, inclusivo e efetivo. Ao romper com as amarras do modelo representativo, a proposta oferece uma via de reconstrução do processo coletivo a partir da escuta, da deliberação e da coautoria das decisões. Trata-se de uma aposta na democracia ativa e na cidadania participativa como antídotos à crise de legitimidade que atravessa o sistema político e jurídico contemporâneo.

A proposta alia crítica teórica, análise empírica e inovação institucional, constituindo uma contribuição original ao debate jurídico. Para acadêmicos e estudantes de Direito, a obra que sustenta essa proposta oferece não apenas uma reflexão profunda, mas também um convite à ação. É preciso repensar as formas de participação no processo coletivo e reimaginar o processo como espaço comum, aberto, acessível e construído por todos.

 

Notas e Referências:

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral da Cidadania – a plenitude da cidadania e as garantias constitucionais e processuais. São Paulo: Saraiva, 1995.

BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. Tradução de Mario A. Marino e Eduardo Altheman C. Santos. São Paulo: Filosofica Politeia, 2019.

DEMO, Pedro. Participação é conquista: noções de política social participativa. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2009.

DOROSHOW, Joanne. Federal Legislative Attacks on Class Actions. Loyola Consumer Law Review, v. 3, n. 1, p. 22-46, 2018.

GUIMARÃES, Natália C.; SOARES, Mário Lúcio Q. Participação dos atingidos como forma de desencriptação do poder no processo coletivo. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica de Minas Gerais – IHJ, Belo Horizonte, ano 18, n. 28, p. 221-240, jul./dez. 2020.

LÉVY, Pierre. Inteligência Coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. Trad. Luiz Paulo Rouanet. 10. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2015.

MIGNOLO, Walter D. The Darker Side of Western Modernity: Global Futures, Decolonial Options. Durham: Duke University Press, 2011.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011

ZUBOFF, Shoshana. The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power. New York: Public Affairs, 2018.

*Doutora em Direito Processual pela PUC-Minas. Professor Adjunta da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Advogada.

[1] A autora utiliza a expressão direitos coletivos como gênero, do qual fazem parte, segundo previsão do Código de Defesa do Consumidor (CDC) brasileiro, os direito difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos.

[2] Comprova a tese da autora, a existência das atuais repactuações dos acordos da tragédia do Rio Doce, ocorrida em 5 de novembro de 2015. Caso o processo e os acordos celebrados anteriormente tivessem concedido um papel central à escuta dos atingidos, não seria necessária esta repactuação.

[3] A inserção da inteligência artificial no modelo proposto ocorre de forma cuidadosa, levando em consideração as advertências trabalhadas por Zuboff (2018).

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