O projeto de novo Código Civil é coerente com a defesa da constitucionalização do direito civil?
Estou longe de ser um entusiasta do movimento de “constitucionalização do direito civil”. Mas, não podemos deixar de reconhecer que a supremacia da Constituição é um pressuposto necessário para a adequada compreensão do direito brasileiro contemporâneo. Contudo, isto não significa que compactuamos com teses panconstitucionalistas, a defender que a Constituição contém a cura para todos os males. A legislação infraconstitucional cumpre funções específicas que não podem e não devem ser cumpridas pela Constituição, sob pena de eliminação da autonomia do legislador infraconstitucional, sem falar no incremento na politização do judiciário..
O movimento de “constitucionalização do direito civil” ou do “direito civil-constitucional” constitui uma importante corrente doutrinária, liderada por civilistas do quilate de Paulo Lobo, Luiz Edson Fachin, Maria Rita Holanda, Joyceane Bezerra e Gustavo Tepedino. Todavia, pode-se dizer que tal linha de pensamento não constitui unanimidade entre os civilistas, de modo que causa certa estranheza ver que as razões do Projeto de Lei n. 4/2025, de autoria do Senador Rodrigo Pacheco, parecem indicar uma adesão dos projetistas a esta corrente.
Conforme se pode ler das razões do referido projeto, a comissão de redação adotou a orientação de corrigir “falhas” do texto atual, e adicionar novas disposições adequadas “à realidade constitucional atual”. Afirma-se também que “o Direito Privado é guiado pela Constituição e pelos direitos humanos, que têm aplicação imediata a todas as relações. A constitucionalização do direito civil, cada vez mais estruturada pela doutrina e jurisprudência, não é necessariamente acompanhada pelo ordenamento civil”.
Ora, se as razões do PL n. 4/2025 reconhecem que as disposições constitucionais devem ter aplicação imediata, isto tornaria completamente dispensável a edição de lei infraconstitucional para implementar o programa constitucional. No julgamento da ADI 2259 pelo Supremo Tribunal Federal, o Ministro Dias Toffoli explicou o que significa dizer que uma garantia constitucional tem aplicação imediata: “Essa garantia fundamental não depende de concretização ou regulamentação legal, uma vez que se trata de garantia fundamental dotada de eficácia plena e aplicabilidade imediata”.
Além de ser um dos expoentes da Escola do Direito Civil-Constitucional, o Professor Gustavo Tepedino também integrou a Comissão que redigiu o Projeto de Novo Código Civil (PL n. 4/2025). O ilustre civilista carioca defende que houve um deslocamento do ponto de referência do sistema de direito privado do Código Civil para a Constituição e sua “tábua axiológica”. Nesta toada, defende que o Código Civil “se tornou incapaz – até mesmo por sua posição hierárquica – de informar, com princípios estáveis, as regras contidas nos diversos estatutos”, cabendo à Constituição o papel de reunificar o sistema.[1]
Ora, se o Código Civil é incapaz de regular adequadamente as relações de direito privado, porque aprovar um novo Código Civil em vez de modificar a Constituição? Se a Constituição já regula adequadamente as relações privadas e é dispensável a interposição do legislador ordinário, porque fazer um novo Código Civil? As premissas teóricas adotadas pela Comissão não são coerentes com a proposta de Novo Código Civil ou até mesmo uma proposta mais modesta de atualização do Código Civil.
Até mesmo porque os próprios membros da Comissão defendem que a tarefa de compatibilização da legislação ordinária à Constituição cabe aos intérpretes e não mais ao legislador: “No panorama brasileiro contemporâneo, cabe ao intérprete, não mais ao legislador, a obra de integração do sistema jurídico; e esta tarefa há de ser realizada em consonância com a legalidade constitucional”.[2] Nesta toada, por exemplo, Gustavo Tepedino e Milena Donato Oliva também defendem ser inócua a atualização do rol de direitos da personalidade previsto no Código Civil: “A superação dos chamados direitos da personalidade típicos em prol de uma tutela integral da dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º, III, da Constituição como um dos fundamentos da República, mostra-se, nesse sentido, imperativa na interpretação do limitado e antiquado rol dos direitos previstos pelo codificador de 2002”.[3]
Por fim, é interessante fazer uma comparação entre o texto da Constituição Federal de 1988, do Código Civil vigente e do PL n. 4/2025:
Ora, se a diretriz adotada pela Comissão que elaborou o PL n. 4/2025 foi a de adaptar o texto do Código Civil ao texto da Constituição Federal, nota-se nos dois exemplos acima um evidente desvio da Comissão em relação a tal direcionamento. Ora, se o texto constitucional utiliza literalmente a expressão “entre o homem e a mulher” o que justifica a eliminação das referências à dualidade de sexos do texto do Código Civil? Estaria errado o texto constitucional? Cabe o Código Civil corrigir a Constituição? Eis a curiosa visão da Comissão no tocante a ideia de supremacia da Constituição.
Notas e Referências:
[1]TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Fundamentos do Direito Civil: teoria geral do direito civil. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 50.
[2]TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Fundamentos do Direito Civil: teoria geral do direito civil. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 50.
[3]TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Fundamentos do Direito Civil: teoria geral do direito civil. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 50.