O tal do nexo de causalidade na Responsabilidade Civil Extrapatrimonial do Estado
Embora seja predominante a adoção da teoria do risco administrativo na responsabilização civil do Estado brasileiro, em certas circunstâncias, aplica-se a teoria do risco integral. Esta última se baseia no papel do Estado como garantidor universal contra certos riscos ou na obrigação de reparar certos danos específicos, tais como: danos oriundos de atividades nucleares (conforme art. 21, XXIII, ‘d’, da Constituição Federal de 1988); danos ambientais (segundo art. 225, §§2º e 3º da CF/88 combinado com o art. 14, §1º, da Lei nº 6.938/81 – Política Nacional do Meio Ambiente); danos resultantes de acidentes de trânsito cobertos pelo seguro DPVAT (art. 5º da Lei nº 6.194/74); e danos decorrentes de atos terroristas, atos de guerra ou eventos similares envolvendo aeronaves brasileiras de transporte aéreo público, com exceção das empresas de táxi aéreo (Leis nº 10.309/2001 e nº10.744/2003).
No entanto, o regime de responsabilidade civil do direito público não se distingue simplesmente do direito privado pela aplicação da responsabilidade objetiva. Quando a conduta estatal é omissiva, a responsabilização geralmente se dá de forma subjetiva, visto que não todas as omissões do Estado resultam em um dever automático de indenizar, já que o Estado não pode ser considerado o garantidor universal de todos os aspectos da sociedade.
É importante destacar que, nos casos de omissão estatal, a teoria da responsabilidade subjetiva não é aplicada da mesma maneira que na teoria civil clássica de responsabilidade civil, ou seja, não se exige a comprovação de dolo ou culpa específica de um agente público. Ao invés disso, baseia-se na ideia da Culpa Anônima ou da Omissão Específica, caracterizada pela ausência ou pela prestação inadequada do serviço diante de uma situação específica, isto é, frente a um “dano concretamente evitável”.
Adicionalmente, em certas ocasiões, a obrigação de indenizar surge de um risco criado pelo próprio Estado ao realizar obras ou fornecer serviços públicos. Existem, ainda, situações excepcionais onde a indenização por atos do Estado deve ser avaliada sob a ótica da responsabilidade objetiva, como a única maneira de corrigir a injustiça de uma proteção jurídica ineficaz, evitando-se, assim, premiar a ineficiência estatal. Nesses casos, a reparação é independente da comprovação de culpa, necessitando apenas da demonstração do nexo causal entre o dano e a ação ou omissão estatal, seja ela lícita ou não.
Mas, como deve ser interpretado o nexo causal?
Em profícua decisão, a 3ª Câmara do TJPR resgata a jurisprudência dos Tribunais Superiores sobre o tema, no julgamento do recurso de apelação cível nº 0000821-87.2017.8.16.0001.
No contexto da jurisprudência nacional, predominam principalmente duas teorias que explicam a conexão causal. A primeira é conhecida como teoria da causalidade direta e imediata, estabelecida no artigo 403 do Código Civil.
Apesar de originalmente aplicada no contexto da Responsabilidade Negocial, essa teoria exige a compensação por danos que sejam diretamente e imediatamente ligados à ação, sem ignorar o que é estabelecido pela legislação processual. Essa concepção de causalidade direta e imediata tem suas raízes em um importante precedente do Supremo Tribunal Federal, durante a análise de um caso significativo sobre a responsabilidade extracontratual do Estado, sob a relatoria do Ministro Moreira Alves:
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DANO DECORRENTE DE ASSALTO POR QUADRILHA DE QUE FAZIA PARTE PRESO FORAGIDO VARIOS MESES ANTES.
– A responsabilidade do Estado, embora objetiva por força do disposto no artigo 107 da Emenda Constitucional n. 1/69 (e, atualmente, no parágrafo 6. do artigo 37 da Carta Magna), não dispensa, obviamente, o requisito, também objetivo, do nexo de causalidade entre a ação ou a omissão atribuída a seus agentes e o dano causado a terceiros.
– Em nosso sistema jurídico, como resulta do disposto no artigo 1.060 do Código Civil, a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade e a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal. Não obstante aquele dispositivo da codificação civil diga respeito a impropriamente denominada responsabilidade contratual, aplica-se ele também a responsabilidade extracontratual, inclusive a objetiva, até por ser aquela que, sem quaisquer considerações de ordem subjetiva, afasta os inconvenientes das outras duas teorias existentes: a da equivalência das condições e a da causalidade adequada;
– (…) Com efeito, o dano decorrente do assalto por uma quadrilha de que participava um dos evadidos da prisão não foi o efeito necessário da omissão da autoridade pública que o acórdão recorrido teve como causa da fuga dele, mas resultou de concausas, como a formação da quadrilha, e o assalto ocorrido cerca de vinte e um meses após a evasão. Recurso extraordinário conhecido e provido.(RE 130764, Relator(a): MOREIRA ALVES, Primeira Turma, julgado em 12/05/1992)
Referida teoria é expressamente adotada nos precedentes nº 0030251-54.2022.8.16.0019 e 0000659-87.2016.8.16.0014.
A segunda teoria sobre o nexo causal, conhecida como teoria da causalidade adequada, busca determinar se o prejuízo sofrido pela vítima decorre diretamente da ação executada pelo responsável pela conduta, seja por ato próprio ou por ato de terceiros. Essa teoria encontra fundamento na lógica presente no artigo 375 do Código de Processo Civil:
“o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e, ainda, as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial.”
Sobre a teoria da Causalidade Adequada, comenta a doutrina:
“Para esta teoria, um fato é causa de um dano, quando este seja consequência normalmente previsível daquele. E para sabermos se ele deve ser considerado consequência normalmente previsível, devemos fazer uma ‘prognose retrospectiva’: devemo-nos colocar no momento anterior àquele em que o fato ocorreu e tentar prognosticar, de acordo com as regras da experiência comum, se era normalmente previsível que o dano viesse a ocorrer. Se no nosso prognóstico retrospectivo concluirmos que o dano era imprevisível, a causalidade ficará excluída. Se concluirmos que ele era previsível, como consequência do fato praticado, mesmo que estatisticamente não fosse muito provável que viesse a ocorrer, a causalidade será adequada.” (NORONHA, Fernando. Responsabilidade civil: uma tentativa de ressistematização. In: Nery, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria. Doutrinas Essenciais Responsabilidade Civil Volume I – Teoria Geral. São Paulo: RT, 2010.)
Referida teoria é expressamente adotada nos precedentes nº 0000659-87.2016.8.16.0014 e 0000038-72.2022.8.16.0146.
Com efeito, ambas as teorias se conjugam na jurisprudência nacional, vide o conteúdo do Informativo de Jurisprudência nº 450/2010, por intermédio do precedente selecionado, REsp 1.198.829-MS, de Relatoria do Ministro Teori Albino Zavascki, julgado em 5/10/2010:
”(…) Para o Min. Relator, o tribunal de origem decidiu acertadamente, pois o evento danoso descrito na exordial não decorreu direta e imediatamente do registro de imóvel inexistente, mas da conduta da parceira, que não cumpriu o que foi acordado com a recorrente. Explicitou ainda que, relativamente ao elemento normativo do nexo causal, em matéria de responsabilidade civil, no Direito pátrio, vigora o princípio da causalidade adequada, podendo ele ser decomposto em duas partes: a primeira (decorrente, a contrario sensu, dos arts. 159 do CC/1916 e 927 do CC/2002, que fixam a indispensabilidade do nexo causal), segundo a qual ninguém pode ser responsabilizado por aquilo a que não tiver dado causa; e a segunda (advinda dos arts. 1.060 do CC/1916 e 403 do CC/2002, que determinam o conteúdo e os limites do nexo causal), segundo a qual somente se considera causa o evento que produziu direta e concretamente o resultado danoso. (…) Precedentes citados do STF: RE 130.764-PR, DJ 7/8/1992; do STJ: REsp 858.511-DF, DJe 15/9/2008. REsp 1.198.829-MS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 5/10/2010.
Destarte, imprime-se reconhecer que ambas as teorias não são excludentes, mas sim complementares.
Ementas e informações sobre os julgados citados no texto:
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE EXTRAPATRIMONIAL DO ESTADO. SENTENÇA DE EXTINÇÃO PARCIAL DA AÇÃO PROPOSTA EM FACE DO PRESTADOR E IMPROCEDENTE EM FACE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. RECURSO DA PARTE AUTORA. ILEGITIMIDADE PASSIVA DO PRESTADOR DO SERVIÇO. EXEGESE DO TEMA 940/STF. SENTENÇA MANTIDA NESSA PARTE. ERRO MÉDICO. CONFIGURADO. DISTRIBUIÇÃO DINÂMICA DA PROVA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. PROVA TÉCNICA DOS AUTOS QUE DEMONSTRA A EXISTÊNCIA DE NEXO CAUSAL DIRETO E ADEQUADO ENTRE O PROCEDIMENTO DE EXTRAÇÃO DE DENTE E FRATURA DA MANDÍBULA. SENTENÇA REFORMADA NESSA PARTE. ARBITRAMENTO EM R$10.000,00 OBSERVADAS AS PECULIARES DO CASO CONCRETO. ADEQUAÇÃO DA CONDENAÇÃO AO PAGAMENTO DAS DESPESAS DE SUCUMBÊNCIA. SENTENÇA REFORMADA.RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. (TJPR – 3ª Câmara Cível – 0000821-87.2017.8.16.0001 – Curitiba – J. 02.10.2023)
RECURSO INOMINADO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. DESNECESSIDADE DE PERÍCIA. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL. CAUSA MADURA PARA JULGAMENTO. PROCESSO INSTRUÍDO. TEORIA DO DANO DIRETO E IMEDIATO. AUSÊNCIA DE PROVA DE OUTROS PREJUÍZOS CAUSADOS PELA PARTE RÉ. IMPROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. (TJPR – 1ª Turma Recursal – 0030251-54.2022.8.16.0019 – Ponta Grossa – J. 09.11.2023)
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. PEDIDO DE JUSTIÇA GRATUITA NÃO CONHECIDO. BENESSE JÁ DEFERIDA NO PRIMEIRO GRAU DE JURISDIÇÃO. ERRO MÉDICO. NEXO DE CAUSALIDADE NÃO DEMONSTRADO. LAUDO PERICIAL CONCLUSIVO NO SENTIDO DE QUE OS ATENDIMENTOS OCORRERAM DE FORMA ADEQUADA. SÍNDROMES SUPORTADAS PELO REQUERENTE QUE DECORREM DE FATORES GENÉTICOS E AMBIENTAIS. DEVER DE INDENIZAR NÃO CONFIGURADO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, DESPROVIDO. a. “A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça dispõe no sentido de que, uma vez concedida a gratuidade da justiça, tal benesse conserva-se em todas as instâncias e para todos os atos do processo, salvo se expressamente revogada” (STJ. AgInt nos EDcl no REsp n. 1.988.913/MG, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 8/8/2022, DJe de 10/8/2022). b. O laudo pericial foi conclusivo no sentido de que a conduta dos profissionais de saúde ocorreu de forma adequada e as síndromes suportadas pelo requerente decorrem de fatores genéticos e ambientais, o que afasta o nexo de causalidade e o dever de indenizar. (TJPR – 2ª Câmara Cível – 0000659-87.2016.8.16.0014 – Londrina – J. 30.10.2023)
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. PEDIDO DE JUSTIÇA GRATUITA NÃO CONHECIDO. BENESSE JÁ DEFERIDA NO PRIMEIRO GRAU DE JURISDIÇÃO. ERRO MÉDICO. NEXO DE CAUSALIDADE NÃO DEMONSTRADO. LAUDO PERICIAL CONCLUSIVO NO SENTIDO DE QUE OS ATENDIMENTOS OCORRERAM DE FORMA ADEQUADA. SÍNDROMES SUPORTADAS PELO REQUERENTE QUE DECORREM DE FATORES GENÉTICOS E AMBIENTAIS. DEVER DE INDENIZAR NÃO CONFIGURADO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, DESPROVIDO. a. “A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça dispõe no sentido de que, uma vez concedida a gratuidade da justiça, tal benesse conserva-se em todas as instâncias e para todos os atos do processo, salvo se expressamente revogada” (STJ. AgInt nos EDcl no REsp n. 1.988.913/MG, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 8/8/2022, DJe de 10/8/2022). b. O laudo pericial foi conclusivo no sentido de que a conduta dos profissionais de saúde ocorreu de forma adequada e as síndromes suportadas pelo requerente decorrem de fatores genéticos e ambientais, o que afasta o nexo de causalidade e o dever de indenizar. (TJPR – 2ª Câmara Cível – 0000659-87.2016.8.16.0014 – Londrina – J. 30.10.2023)
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAL. ACIDENTE DE TRÂNSITO EM RODOVIA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA. VEÍCULO OFICIAL CONDUZIDO POR SERVIDOR PÚBLICO MUNICIPAL. INVASÃO DA PISTA POR FURGÃO CONDUZIDO POR TERCEIRO, CAUSANDO COLISÃO FRONTAL COM O VEÍCULO OFICIAL. LESÕES NA AUTORA E ÓBITO DE SUA GENITORA. ALEGAÇÃO DE POSSÍVEL CANSAÇO DO CONDUTOR DO VEÍCULO DA PREFEITURA, PELA SOBRECARGA DE TRABALHO, ANTE A REDUÇÃO DO QUADRO DE SERVIDORES EM RAZÃO DA PANDEMIA DE COVID-19. MERA PRESUNÇÃO DA PARTE. EVIDÊNCIA NOS AUTOS DE FATO OCASIONADO POR TERCEIRO. BOLETIM DE OCORRÊNCIA CONCLUSIVO ACERCA DA INVASÃO DO FURGÃO NA CONTRAMÃO. FATOR DETERMINANTE PARA A OCORRÊNCIA DO EVENTO. EXCLUSÃO DO NEXO DE CAUSALIDADE. AUSÊNCIA DO DEVER DE INDENIZAR. SENTENÇA MANTIDA. HONORÁRIOS RECURSAIS. ART. 85, § 11, DO CPC. MAJORAÇÃO.RECURSO DE APELAÇÃO NÃO PROVIDO. (TJPR – 2ª Câmara Cível – 0000038-72.2022.8.16.0146 – Rio Negro 11.07.2023)