Por uma estilística contratual participante da redação jurídica estratégica
Por Otávio Henrique Baumgarten Arrabal*
«No entanto, pela péssima redação do contrato não há como se aferir se a citada ré figurou apenas como representante da empresa compradora ou responsável, também, pelas obrigações decorrentes do contrato» [1]
«Infelizmente a péssima redação do contrato dificulta a sua interpretação e, por conseguinte, a aferição do valor devido a título de comissão. […]. Contudo, em que pese a obscura cláusula contratual (que impediu até mesmo que o contrato fosse considerado título executivo extrajudicial, motivando o acolhimento dos embargos à execução promovida pelos ora autores), não se pode olvidar que segundo dispõe o artigo 126 do CPC/73, o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei» [2]
* * *
Lendo alguns textos do dileto advogado norte-americano Ken Adams sobre estilística no direto (legal style/legal writing) e redação contratual (contract drafting) [3], indagamo-nos se há obras florescidas em civil law que também se ocupam dessas questões, possivelmente com estatura doutrinária.
Chamou nossa atenção em primeiro lugar uma obra coletiva de 2022 intitulada La stylistique contractuelle, correspondente às contribuições oriundas de ciclo de seminários realizado pelo Centre de recherche Droits et perspectives du droit da Universidade de Lille, sob a organização dos professores Gaël Chantepie e Nicolas Dissaux.
Uma das arguentes é a professora de Lille, Malvina Mille-Delattre, que debatendo sobre a decisão de escrever ou, em nossa compreensão, redigir um instrumento contratual (la décision d’écrire un contrat), num diálogo literário com o romance literário epistolar do general francês Choderlos de Laclos, pontua de maneira muito rica a seguinte consideração, dentre várias outras:
«O texto do contrato é, em si, uma fonte. Mais precisamente, ele é tanto uma fonte de inspiração quanto uma fonte histórica. Os contratos escritos formam uma literatura que reflete um saber-fazer. Essa literatura é útil para o redator [au redacteur] noviço que aprende a redigir um contrato observando como os outros o fazem. O aprendizado é inevitavelmente baseado na imitação. O jovem redator é inspirado pelo trabalho de seus predecessores antes de conseguir libertar-se dele. […]. Antes dos formulários, dos ementários de cláusulas e dos manuais de técnica contratual, é sobretudo o texto do contrato que serve de modelo. Além disso, não é apenas uma fonte para o redator principiante, mas também para o redator experimentado. Uma vez comprovada a eficácia de uma cláusula, esta é reutilizada e, por conseguinte, copiada. […].» [4]
Em segundo lugar, chamou nossa atenção a tese de Malvina publicada comercialmente no ano seguinte, orientada por Gaël e defendida em Lille, que inclusive faz referência a outras contribuições da obra coletiva mencionada.
L’écriture du contrat é, de modo genial (e, ao nosso entender, pioneiro) uma defesa da redação ou da escrita do instrumento contratual enquanto técnica e enquanto poder.
Por escassez de espaço não cabe aqui uma abordagem aprofundada nesta refinada tese, mas vale a leitura de um fragmento do plano de estudo enfatizado pela professora na introdução:
«Explicar em que consiste a escrita de um contrato não é tão simples quanto parece. Nem é assim tão fácil descrever em palavras essa operação, mesmo que ela seja muito familiar para o jurista. Para isso, consideraremos a redação de contratos como uma técnica e um poder. A afirmação de que se trata de uma técnica é, antes de tudo, intuitiva. É inegável que o contrato não é um ato trivial de comunicação, como uma troca de correspondências. Na busca por uma qualificação, também somos rapidamente levados a excluir a hipótese da criação literária, bem como a do discurso científico. Assim, por um processo de eliminação, chegamos à hipótese da técnica. […]. Os juristas também associam escrita e poder. Michel Villey, por exemplo, levantou a questão do ‘poder dos textos’, que era a sua forma de chamar a atenção para a necessidade e a insuficiência do direito positivo. Por vezes, o poder está no próprio cerne da definição do direito. […]. Estas diferentes leituras suscitaram a ideia de que a redação do contrato também poderia ser entendida desta forma, como uma técnica e um poder. Entender a escrita como uma técnica permite explicar o que ela é […]. Considerá-la como um poder leva-nos a precisar o que ela é apta a realizar […].» [5]
O terceiro lugar que despertou atenção não trabalha questões contratuais em específico, mas pode muito bem vir a lidar com elas em edições futuras.
Redação Jurídica Estratégica do advogado paranaense Thomé Sabbag Neto, com humildade e plena consciência de método, sugere ser disciplina. E tem todo fôlego para sê-la.
Não trata de inovações disruptivas para o Direito nem de quaisquer outros rompantes ocos e quebradiços: compõe lições de vertente clássica com a virtude da simplicidade para galgar objetivos de contorno nítido.
Especialmente o que Thomé expõe ser e não ser aplicações de estilo, e consequentemente ser e não ser práxis de estilística, em tudo encontra guarida na redação de instrumentos contratuais para além de muitas outras peças.
Não alcançamos outra conclusão: técnica e poder (obviamente, não no sentido autoritarista) também permeiam a haute couture dos argumentos de Thomé em prol da redação jurídica estratégica. O adjetivo «estratégica» implica, por sua vez, técnica e poder.
Se o estilo se destina «a organizar e expressar ideias da melhor forma possível» [6], não se poderia ignorar que «o contrato escrito, desprendido da mente das partes contratantes, está se desenvolvendo, expandindo e se tornando mais complexo». [7]
A nossa indagação inicial se cumpriu.
Notas e Referências:
*Advogado em Santa Catarina. Bacharel em Direito pela Fundação Universidade Regional de Blumenau
[1] Decisão interlocutória em Procedimento Comum Cível, DJE TJSP 11/04/2018
[2] Sentença em Procedimento Comum Cível, DJE TJSP 02/09/2014
[3] Cfr. os variados posts em seu site Adams Drafting e em seu Linkedin. Sabemos também de sua obra de referência A Manual of Style for Contract Drafting, mas não conseguimos adquiri-la.
[4] Malvina Mille-Delattre. La décision d’écrire un contrat. In: Gaël Chantepie/ Nicolas Dissaux (orgs.). La stylistique contractuelle. Paris: Dalloz, 2022. (no ponto II, item C) [tradução livre; erros de tradução são de nossa responsabilidade]
[5] Malvina Mille-Delattre. L’écriture du contrat. Paris: mare et martin, 2023. (em Introduction; Plan de l’étude) [tradução livre]
[6] Thomé Sabbag Neto. Redação jurídica estratégica. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2024. (na Parte III)
[7] Malvina Mille-Delattre. L’écriture du contrat. Paris: mare et martin, 2023. (em Le contrat affranchi de la mémorisation) [tradução livre]