Quando a Ideologia Promete o Céu e Entrega o Inferno
Por Lúcio Delfino*
“There is a line you must draw between your dream world and reality.”
— Death, The Philosopher
Nas seduções mais bem adornadas de certos tipos de ideologias, costuma ocultar-se o germe da ruína civilizacional. Conquanto alardeiem o paraíso, o percurso é pavimentado por cadáveres. Erguem-se como promessas de redenção coletiva, mas entregam desertos morais e destroços do espírito. A centúria passada, cenário de horrores inauditos, legou ao nosso tempo uma advertência que muitos persistem em ignorar: ao render-se ao dogma, o pensamento abandona sua tarefa legítima e converte-se em instrumento de delírio institucionalizado.
Não por obra do acaso, projetos erguidos sob a bandeira da igualdade — princípio tão nobre quanto instável — produziram o ápice da ignomínia: a igualdade diante da morte. De acordo com estimativas, ao menos 80 milhões pereceram sob a égide de um programa de poder que, no papel, anunciava libertação (COURTOIS, Stéphane et al. O livro negro do comunismo: crimes, terror e repressão. Tradução de Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999). Que explicação pode haver para tamanho descompasso entre intenção e resultado?
O equívoco parece residir na rigidez com que algumas formulações teóricas se impõem. Marx, confiante, traçou uma cosmovisão determinista sobre a história e o corpo social, porém não percebeu – ou não quis perceber — que nenhuma construção mental, por mais engenhosa, é capaz de tomar o lugar da vida tal como ela é: imprevisível, inesgotável e indomável. Ao tentar moldar os homens ao esquema – e não o contrário –, selou o destino de multidões anônimas.
O Holodomor não representou um acidente. Foi consequência inevitável de uma engenharia totalitária fundada a partir de um edifício conceitual divorciado do solo da experiência viva. A fome que dizimou camponeses na Ucrânia — assim como na China sob Mao — não resultou de erros administrativos, sendo, ao revés, o tributo exigido pela fidelidade a uma narrativa messiânica impermeável aos fatos. Daí o método bizarro: o mundo, quando desmente a doutrina, acaba negado – e até eliminado. Pouco importa que corpos tombem: em nome de uma sociedade “perfeita”, suprime-se qualquer imperfeição – que, invariavelmente, é identificada no outro. A violência se mascara de justiça arquetípica e se arroga a função de suposta regeneração moral.
Nos debates ardentes que atravessam as democracias contemporâneas, é possível ouvir ecos dessa herança sombria. Há quem veja nas ideologias totalizantes (como o marxismo) espécie de religião secular: um credo rígido, dogmático, encerrado na imanência, mas que replica as estruturas de culpa, expiação e salvação (ARON, Raymond. O ópio dos intelectuais. Tradução de Yvonne Jean. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980). Proclama-se o advento do novo homem — ao preço, todavia, da aniquilação daquele feito de carne, osso e singularidades, que não se ajusta à matriz da utopia.
Nesse horizonte, é chegada a hora de recordar o que tantos negligenciaram: a realidade não se curva à vontade. Ela se insurge, fala, interpela. Exige humildade. Idealizações e devaneios voluntaristas que se recusam a escutá-la conduzem, quando nada, ao fracasso — ou à deformação. Não se faz aqui apologia do conformismo, tampouco se propõe renúncia à crítica. O desafio, antes, consiste em restaurar o exercício supremo da consciência reflexiva: discernir — esse gesto de lucidez que acolhe o dado em sua densidade irredutível, sem constrangê-lo aos moldes estreitos do abstracionismo.
Segundo ensinava Lavelle, a verdade não se alcança pelo rigor de construções intelectuais que aspiram ao absoluto, mas pela intimidade com o ser — movimento interior que, nas suas palavras, “envolve em luz as menores coisas e confere um caráter divino às tarefas mais mesquinhas” (LAVELLE, Louis. A consciência de si. Tradução de Lara Christina de Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2014). Reconhecer aquilo que resiste a sistemas fantasiosos não é resignação, mas forma serena de resistência – é submeter as ideias ao crivo do que se impõe fora da teoria, cultivar a dúvida como virtude cívica e repudiar o fanatismo travestido de ciência.
A tragédia ideológica de outrora — cujos efeitos nefastos seguem reverberando intensamente — não constitui apenas uma chaga aberta, desgraçada e purulenta no arquivo sangrento da memória histórica. É, sobretudo, um espelho. E o que nele se mostra, ainda hoje, é a face desfigurada da razão, quando ela renega sua vocação originária: interpretar sem deturpar, compreender sem subjugar.
*Advogado. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPro.