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Reflexões sobre as origens dos marcos etários da maioridade civil por ocasião da Festa da Sagrada Família (29.12.2024) na Oitava de Natal.

No contexto das festividades do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Igreja Católica celebrou também a Festa da Sagrada Família no primeiro domingo após o dia 25 de dezembro. O Evangelho lido na Missa foi o de São Lucas, Capítulo 2, versículos 41 a 52; que trata da situação na qual Jesus Cristo (já com 12 anos) é perdido e reencontrado no Templo de Jerusalém em meio aos Doutores da Lei.

“Cristo entre os Doutores” (1504),

de Giovanni Batista Cima da Conegliano.

Museu Nacional de Varsóvia.

 

Os versículos 42 e 43 do segundo capítulo do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas consignam: “Quando chegou aos doze anos, indo eles a Jerusalém segundo o costume daquela festa, acabados os dias que ela durava, quando voltaram, ficou o Menino Jesus em Jerusalém, sem que os pais o advertissem” (et cum factus esset annorum duodecim ascendentibus illis in Hierosolymam secundum consuetudinem diei festi consummatisque diebus cum redirent remansit puer Jesus in Hierusalem et non cognoverunt parentes ejus).

Esta parte da Sagrada Escritura é relevante por fazer alusão à passagem de Jesus Cristo à “maioridade” e serve para refletir sobre a dicotomia adulto-criança na atualidade. Na religião Judaica, existem registros do segundo século depois de Cristo que indicam a idade de 13 anos como o marco da “maioridade” entre os hebreus. Contudo, a cerimônia do Bar Mitzvah só irá ganhar os contornos atuais na Idade Média.[1]

De acordo com o Comentário Exegético do Padre Ignácio (da Congregação dos Padres Escolápios), aos 13 anos o rapaz passava a ser contado entre os homens adultos e a se sujeitar aos 613 mandatos da Lei. Mas, antes disso, o jovem passava a estudar as tradições e os costumes judaicos, as orações e as questões da fé judaica. Tendo em vista a expressão utilizada no texto original em aramaico, as idades de 12 e 13 anos se confundem, e é provável que Jesus já tivesse 13 anos, ou que já estivesse se preparando para tal rito de passagem, e é por isso que diz a Maria que deve se ocupar das coisas de seu Pai (Lc 2,49).[2]

Por outro lado, é de se notar que São Jerônimo traduz esta passagem referente a Cristo na Vulgata com a expressão “Puer Iesus”, ou seja, “Menino Jesus”. Puer Iesus é também o nome de um dos mais belos Sermões de Santo Tomás de Aquino, que chama a atenção para o fato de que o Filho do Deus Eterno (que existe fora do tempo) desejou tornar-se temporal, para que pudesse avançar conforme as idades: “Si natus est ut parvulus, quare ergo non cresceret ut parvulus?”[3]

Assim, não obstante o fato de já estar cheio de sabedoria e graça desde a concepção, Cristo só manifestou tal sabedoria pela primeira vez quando tinha doze anos, pois é neste período (de acordo com Santo Tomás de Aquino) que o juízo de sabedoria costuma aparecer nos seres humanos a primeira vez. Neste sentido, para reafirmar sua natureza humana, Cristo desejou revelar sua sabedoria paulatinamente (e não repentinamente), como costuma acontecer com a generalidade dos seres humanos.[4]

A definição de tal marco etário para a maioridade civil aos 13 anos não discrepa substancialmente das regras do antigo direito romano, que considerava infantes (do latim in = não, + fari = falar; o que pode se traduzir como aqueles que não falam) as pessoas de 0 a 7 anos. Em termos atuais, os infantes seriam equiparados aos absolutamente incapazes. As mulheres dos 7 aos 12 anos, e os homens dos 7 aos 14 anos eram considerados impúberes, “relativamente incapazes, sujeitas à tutela, se fossem sui juris”.[5] Assim, a puberdade (maturidade física) coincidia com a maioridade jurídica no direito romano.

Michel Villey noticia a disputa entre os Sabinianos e Proculianos em relação a esta questão da capacidade civil. Para os Sabinianos, não seria recomendável prefixar uma idade, mas verificar se de fato o indivíduo já amadureceu de fato. Já os Proculianos defendiam a fixação da idade de 12 anos para as mulheres e 14 anos para os homens, e terminaram por vencer esta disputa.[6] Parece que a linha de argumentação dos Proculianos era no sentido de considerar que as meninas costumam alcançar a puberdade aos 12 anos, e os rapazes aos 14 anos. Ademais, não custa lembrar que a Judeia se encontrava sob ocupação romana ao tempo de Jesus, e que não é improvável considerar que tal proximidade entre os dois povos possa ter influenciado nas leis costumeiras dos judeus.

Não obstante o fato do direito brasileiro atual considerar os 18 anos como o marco definidor da maioridade civil e penal, é interessante notar que o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal n. 8.069/1990) determina que deve ser obtido o consentimento do maior de 12 anos para a colocação em família substituta (art. 28, § 2º) e para a adoção (art. 45, § 2º). Já o direito alemão parece se aproximar mais dos marcos etários estabelecidos pelo antigo direito romano. Apesar de seguir a regra da maioridade civil aos 18 anos (BGB, § 2), o Código Civil alemão reputa absolutamente incapazes as pessoas que ainda não completaram a idade de 07 (sete) anos (BGB, § 104), de modo que as pessoas com sete anos completos passam a ser relativamente incapazes (BGB, § 106).

O Livro IV das Ordenações Filipinas prescreve em seu Título CIV que se deve dar tutor aos órfãos “em quanto não chegam a idade de quatorze annos, se são varões, ou até doze annos, se são fêmeas”. Já em uma das notas ao Título XCIX das Ordenações Filipinas diz-se que a obrigação do tutor sustentar as crianças menores se estende apenas até os sete anos, que seria a idade “em que o filho possa merecer serviço ou soldada”; destacando que em outros países esta idade pode chegar a doze anos. É interessante notar não apenas uma proximidade maior com as antigas regras de direito romano, mas também a discrepância em relação a percepção que temos hoje em relação a idade adequada para a inserção das pessoas no mercado de trabalho.

A associação entre a capacidade para a prática de certos atos jurídicos e uma idade mínima parece ser uma constante entre os ordenamentos jurídicos de diversos países, que terminam por reconhecer tal aptidão apenas para as pessoas em relação às quais acreditam poder supor certo grau mínimo de discernimento. O fato do jovem haver atingido determinada idade parece ser um critério facilmente verificável e largamente utilizado por diversos sistemas jurídicos.[7]

Ademais, alguns autores identificam também nestas regras de direito romano a influência da filosofia estóica na antiguidade greco-romana, onde era corrente a ideia de que cada período de sete anos imprime uma marca na vida (septimus quisque annus aetati signum imprimat), conforme ensinou Sêneca.[8] Neste sentido, o direito civil alemão considerava absolutamente incapazes as pessoas com até 07 anos, relativamente incapazes até os 14 anos, e atingia-se a maioridade civil aos 21 anos; múltiplos de 07, portanto. Contudo, a maioridade civil foi reduzida de 21 para 18 anos em virtude de Lei aprovada em março de 1974 pelo Bundestag. No Brasil, o Código Civil de 1916 também previa a maioridade civil aos 21 anos para as pessoas do sexo masculino.

Entretanto, é notável que a escolha de tais marcos etários não assegura que as pessoas tenham de fato maturidade para tomar decisões sobre aspectos relevantes de sua vida civil simplesmente porque alcançaram a maioridade civil. No caso do Menino Jesus, pode-se contemplar seu processo de busca da sabedoria no versículo 46 do Evangelho segundo São Lucas: “Aconteceu que, três dias depois, o encontraram no templo sentado no meio dos doutores, ouvindo-os e interrogando-os” (et factum est post triduum invenerunt illum in templo sedentem in medio doctorum audientem illos et interrogantem). A partir desta passagem da Sagrada Escritura, Santo Tomás de Aquino indica quatro pressupostos que devem ser observados para que uma pessoa se torne mais sábia: a) que ouça de bom grado; b) que busque diligentemente; c) que responda com prudência; e d) que medite com atenção.[9]

Penso que esta reflexão sobre o caminho para a sabedoria, conforme apontado por Santo Tomás de Aquino, merece maior aprofundamento em outro texto, por ser uma reflexão útil para professores e estudantes universitários. Por ora, despeço-me dos leitores que acompanharam nossas reflexões em 2024, desejando Feliz Natal (sim, ainda estamos na oitava de Natal!) e um próspero ano novo!

 

Notas e Referências:

[1] Conferir verbete da tradicional Encyclopaedia Britannica disponível em: https://www.britannica.com/topic/Bar-Mitzvah Acesso em: 29 de dezembro de 2024.

[2] IGNÁCIO, Padre. Comentário Exegético – Sagrada Família.  Disponível em: https://presbiteros.org.br/comentario-exegetico-sagrada-familia/ Acesso em: 29 de dezembro de 2024.

[3] Tradução livre: “Se nasceu como menino, porque não cresceria como menino?” AQUINO, Sancti Thomae de. Sermo Puer Jesus. Disponível em: https://www.corpusthomisticum.org/hpj.html Acesso em: 29 de dezembro de 2024.

[4] AQUINO, Sancti Thomae de. Sermo Puer Jesus. Disponível em: https://www.corpusthomisticum.org/hpj.html Acesso em: 29 de dezembro de 2024.

[5] TABOSA, Agerson. Direito Romano. 3 ed. Fortaleza: FA7, 2007, p. 137.

[6]    VILLEY, Michel. Direito Romano. Tradução de Fernando Couto. Porto: Rés, 1991, p. 106.

[7] LARENZ, Karl. Derecho Civil – Parte General. Traducción y notas de Miguel Izquierdo y Macías-Picavea.  Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1978, p. 120.

[8] KASER, Max; KNÜTEL, Rolf; LOHSSE, Sebastian. Derecho Privado Romano. Madrid: BOE, 2022, p. 191.

[9] AQUINO, S. Tomás de. Puer Iesus – O Menino Jesus: Sermão para o primeiro domingo depois da Epifania, do Frei Tomás de Aquino. Tradução de Felipe de Azevedo Ramos, EP. Lumen Veritatis, v. 11 (3-4), n. 44-45, julho a dezembro de 2018, p. 435. Disponível em: https://lumenveritatis.org/ojs/index.php/lv/issue/view/45 Acesso em: 30 de dezembro de 2024.

Colunista

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Venceslau Tavares Costa Filho
Doutor em Direito pela UFPE. Professor dos Cursos de Graduação em Direito da UPE e da FAFIRE. Professor Permanente dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito, e do Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UFPE. Professor convidado do Curso de Especialização em Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco-USP. Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) - Seção Pernambuco. Membro da Academia Iberoamericana de Derecho de Familia y de de las Personas. Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Advogado.

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