Sonhos para Maria Carla
Olá, amigos do Juridicamente!
Após longo período afastado, em virtude do processo de vitaliciamento na carreira de Magistrado, retorno à coluna para confessar meus crimes na tribuna.
Sim, eu confesso! Eu era encrenqueiro e, às vezes, admito, um pouco arrogante. Entretanto, já me perdoei, pois à época era dotado da juventude entusiasmada. Não que isso justifique; um idiota é idiota em qualquer idade, só não deve permanecer como tal. Acredito fortemente que ultrapassei essa fase, mas não se empenhem em me dizer o contrário. Prefiro o senso autocrítico que povoa minha mente enevoada de lamentos.
Não obstante as primeiras confissões, neste júri que irei narrar a seguir, por alguma força inexplicável, tenho certeza de que me despi da túnica de idiota com a qual me ornamentava.
Era uma manhã de domingo, do ano de 2018, dia das eleições gerais. Aquela em que votamos para presidente, governador, senador, deputado federal e estadual. No outro dia, ao fim e ao cabo, não nos lembramos em quem votamos, exceto para presidente e governador. Naquele domingo, entretanto, as eleições passaram a importar menos; a missão da minha vida funcional se direcionou, dali em diante, no sentido de encontrar o assassino de Maria Carla, uma menina de 12 anos de idade desaparecida. Vou modificar alguns nomes, exceto o da vítima, em virtude de minha peroração ter sido publicada no perfil “Tribunal_júri” no Instagram. Ela havia desaparecido misteriosamente e supostamente “publicava” fotos e mensagens em seu perfil do Facebook.
Procurou-me, durante as inspeções da eleição, o Sargento Xavier, respeitado policial na comunidade de APODI/RN, o qual era dotado de memória invejável. Ele relatava, durante as audiências judiciais, detalhadamente, as ocorrências das quais participava em sua função militar. Era uma verdadeira máquina memorista, como diria Odorico Paraguaçu.
Foi esse honrado policial quem me alertou do desaparecimento da jovem vítima e de que estava empreendendo buscas por ela. A polícia civil, capitaneada pelo competente delegado Igor, para quem as “estórias” contadas pelo cunhado da vítima eram contraditórias, apurava com perspicácia os fatos.
A polícia não se contentava com as postagens do Facebook da vítima. Como era possível uma criança de 12 anos ter fugido de casa, sem qualquer apoio, e postar mensagens praticamente motivacionais?
A forma da escrita era completamente diversa de sua pouca capacidade vernacular. Não que fossem mensagens sábias e escorreitas gramaticalmente, nem de longe. Eram peças calcadas em péssimos blogs de internet, daqueles nos quais estrelam os profetas e filósofos do óbvio. Alguns com milhões de seguidores.
No rastro do mistério, o diligente delegado, amparado pela expertise imprescindível do Sargento Xavier – profundo conhecedor dos meandros da cidade –, localizou uma residência cuja câmera de segurança vigiava a rua. Com a permissão do morador, mergulharam nas gravações e ali, num instante congelado no tempo, a vítima surgia, subindo na garupa da motocicleta de seu cunhado. Depois daquela imagem, o silêncio; Maria Carla nunca mais seria vista.
Arrastaram-se trinta longos dias na angustiante busca por Maria Carla. O delegado, então, convocou novamente o réu, o cunhado da vítima, para um novo depoimento, desta vez munido do vídeo revelador. O “filho de Caronte”, como se o destino o marcasse, negou os fatos. Teceu, como é praxe em tais enredos, uma versão esdrúxula: teria deixado a vítima na escola. Contudo, ninguém, absolutamente ninguém, testemunhara sua chegada ao educandário. Diante das contradições que se avolumavam, o delegado confrontou o suspeito, afirmando já ter a certeza de seu ato hediondo; restava apenas que ele apontasse o paradeiro do corpo.
Finalmente, o “proxeneta da morte” cedeu. Confessou o crime e guiou as autoridades – e a mim, que ali estava – ao cenário macabro. A trama, enfim, desvendou-se em sua crueza: ele utilizara o celular da vítima para forjar uma sobrevida, simulando que ela, por vontade própria, resolvera abandonar tudo para “viver a vida
Fomos todos à lápide tenebrosa, construída por aquele proxeneta de Lúcifer, ao ar livre, em um canavial, a céu aberto. Lá estava o corpinho de Maria Carla, em estado de putrefação e a face quase inteiramente carcomida por animais, mas ainda havia ali o olhar da inocência, dos sonhos não vividos. Passei dias tendo pesadelos com aquela cena: o corpo de uma criança lançado aos abutres tal qual um animal abatido.
É preciso respirar. Ainda haverá a família enlutada, a comunidade revoltada e a crença na bondade humana abalada. Recebo, então, em meu gabinete na promotoria, aquela mãe e aquele pai completamente esfacelados em suas existências. Só me cabia prometer empenho e compromisso. Foi neste momento que entendi que não poderia mais ser idiota, encrenqueiro e arrogante. Foi lá que percebi que dependia da minha atuação, como Promotor do Júri, a última voz de esperança daquela família por Justiça.
Findo o sumário de culpa, a primeira fase do procedimento bifásico do Júri, sob a presidência da Juíza de Direito Thatiana Macedo, minha ex-colega de magistratura Baiana, o acusado foi pronunciado. Interposto recurso em sentido estrito contra a pronúncia, o Tribunal de Justiça manteve a decisão. O STJ seguiu no mesmo sentido. Júri confirmado. Quanta alegria em minh’alma.
Marcado o plenário, doravante, sob a presidência do Juiz Antônio Borja. Nem se tivesse me promovido na carreira deixaria o caso. Havia firmado compromisso com aquela família. Só sossegaria quando pudesse tintilar as cordas da minha alma pedindo justiça por Maria Carla.
Tudo naquela tragédia desenhava-se em contornos peculiares: o réu, cunhado da vítima, compartilhava a vida com a irmã desta – sua companheira desde os tenros treze anos de idade, e que, à época, gestava o segundo fruto dessa união.
Nesse mesmo lar, as provas dos autos começavam a descortinar a figura de Maria Carla, a caçula. Era ela quem derramava sonhos e poemas de amor em um singelo caderninho de feira. Das páginas do processo, emergia a imagem de uma menina alegre, conectada ao mundo pela internet. Revelava-se uma jovem que se deixava levar pelo ritmo contagiante do brega e que coloria os lábios de vermelho, num delicado aceno à maturidade do porvir, que nunca veio. Ao que tudo indicava das páginas dos autos, tinha um sorriso doce e alegre, daqueles que gostamos de ouvir por ouvir, só porque aquele som nos enche de felicidade.
O crime de Maria Carla: ser seduzida e enganada por seu cunhado. Ele tinha 26 anos, descolado, até moto tinha, o que para aquela comunidade era sinal de prosperidade. Jovem e atlético, magro, não era bonito nem feio, mas esquisito. O olhar era frio, como o dos peixes congelados, expostos à venda no mercado. Afoito e, ao mesmo tempo, invisível. Não aparecia demais, mas não passava despercebido. Carregava a falta de empatia no peito e na essência da existência.
Ao vê-lo, interrogá-lo e observá-lo, tudo me indicava as lições de Robert Hare: era um psicopata. E era mesmo. Frio, sem empatia, não havia remorso, tampouco arrependimento. Desde muito novo havia maltratado animais. Era promíscuo sexualmente e se relacionava com ambos os sexos, desde que houvesse possibilidade de vantagens em sua cabeça gélida. O coração era, sem dúvidas, empedernido.
Na véspera do plenário, nenhum sono. A inquietação daquela cena violenta, covarde e cruel invadia meu ser, tal qual o morcego de que nos fala Augusto dos Anjos. Tentei dormir mil vezes, o sono dos justos não chegou. Cochilei umas duas horas.
Cheguei ao fórum cheio de energético na cabeça. E minha Beca pesava mais que o normal. E não conseguia vesti-la. Entreguei-a à mãe da vítima antes do júri começar. Pedi àquela senhora que a vestisse e só a pegaria de volta se houvesse a justa condenação daquele amante das trevas.
Aberto o júri, parte da defesa técnica não compareceu sob a alegação de que não houve tempo suficiente para analisar os autos. Neste ponto, abstenho-me, por dever ético e moral, de revelar meus sentimentos mais recônditos acerca dessa argumentação. Só que, por ironia do destino, compareceu ao plenário o nobre doutor William, o qual havia acompanhado toda instrução, patrocinando a defesa do réu. Brilhantemente, Antônio Borja, Juiz Presidente, verifica que o advogado, ético e fiel à causa, ainda estava habilitado nos autos e indefere o pedido de adiamento da sessão.
Feitas as oitivas das testemunhas e o interrogatório do acusado, passou-se aos debates. Fiz os devidos cumprimentos e exaltei a postura ética de Doutor William, combativo e competente advogado, que muitas vezes, em outros julgamentos, tentou me desconcentrar com apartes bem-humorados. Era um mago das manobras diversionistas. Por minha sorte, sempre as percebi e as refutei. Não foi diferente neste plenário. Chegou a dizer que a Globo me perdia como ator, pois até chorar, chorei naquele dia. É, meu caro Doutor William Guerra, o choro foi verdadeiro, não uma encenação de folhetim. E o choro é franqueado aos que pedem justiça!
Comecei minha oração, ressaltando a deslealdade dos defensores que faltaram e pediram adiamento. O réu não estava indefeso, como afirmaram no recurso ao Tribunal. Estava acompanhado do seu defensor primevo e que mais conhecia a causa.
Segui a tradicional divisão de Cícero: exórdio, exposição e peroração. É a fórmula prudente do orador. Em caso de tanta dor, é imperioso senti-la. Carregar o peso das lágrimas e concitar os jurados à coragem de fazer Justiça. Era preciso não ser idiota, pois excesso de acusação absolve, assim como excesso de defesa condena.
As provas pululavam. Havia a confissão do réu. Só que no Júri, estimado leitor, a prova não salta como mágica à cabeça do jurado. Toda confissão, nas bocas das sereias, pode ter sido extraída por métodos pouco republicanos. As imagens, como passe de mágica, verdadeira alquimia, já se tornam imprestáveis. Então, prudência. É que, nos ensina Mougenot Bonfim, no Júri, tudo é fator contributivo e gerador da causa real da decisão, ou seja, tudo concorre para o real convencimento do julgador.
Portanto, há que se ter prudência e evitar os excessos. Assim o fiz.
Ao fim e ao cabo, tocou-me a poesia, o fragor da juventude, a aurora das minhas angústias. Sonhei sonhos que não vivi, muito cedo deste mundo parti! Viva, Maria Carla! Viva, a Tribuna da Vida! A condenação do réu não é mérito, só o remédio vivaz da vida!
P.S.: A peroração deste júri pode ser visualizada no portal “Tribunal_juri” no Instagram.
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