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Acordo de Não Persecução Penal…

Acordo de Não Persecução Penal: uma análise crítica quanto à abdicação ao processo – e suas garantias –  com a imposição precoce de sanções penais, bem como à suposta liberdade na formação da vontade de negociar

 

A crescente ampliação do cenário negocial na justiça penal brasileira é uma realidade que desafia a cultura jurídica tradicional, fazendo surgir a necessidade de revisitar os pilares do Processo Penal de estrutura acusatória garantista, erigido como legal e justo.

A despeito da perspectiva processual tradicional, que fundamenta a responsabilidade criminal na “verdade real”, apurada em juízo, mediante o regular trâmite do feito (TOURINHO FILHO, 2013, p.37), tem sido crescente a visibilidade dos procedimentos pré-processuais e processuais que permitem respaldar a responsabilização penal em verdades acordadas pelas partes através da atividade negocial, sem a participação do magistrado, a partir de mecanismos de aceleração procedimental e relaxamento de garantias constitucionais. (BRANDALISE, 2016, p.123)

O Acordo de Não Persecução Penal, enquanto instrumento de efetivação da justiça criminal negociada, tem como escopo a não instauração da ação penal, diante da possibilidade de o Parquet deixar de oferecer a denúncia caso entre em acordo com o autor do delito – que porventura preencha os requisitos previstos na legislação -, o qual se obriga a cumprir as condições ora impostas pelo Ministério Público. Em caso de íntegro cumprimento da avença, declarar-se-á a extinção da punibilidade; em caso de rescisão por não cumprimento, deverá o Parquet oferecer a peça acusatória e o feito prosseguirá sua tramitação.

O artigo 28-A do Código de Processo Penal estipula requisitos de ordem objetiva (vinculados ao fato) e de ordem subjetiva (relacionados à pessoa do investigado), bem como vedações e aspectos procedimentais para a realização do ANPP.

No que concerne aos requisitos de natureza objetiva, depreende-se que estes estão relacionados ao uso de violência ou grave ameaça na infração; à pena mínima cominada ao delito; e à necessidade do cumprimento de funções político criminais. A saber, para a celebração do ANPP faz-se imprescindível que não se trate de caso de arquivamento, devendo a investigação criminal estar suficientemente madura para o oferecimento de denúncia. (CABRAL, 2021, p.93)

Quanto ao requisito subjetivo, tem-se a necessidade da confissão formal e circunstanciada da prática da infração penal, condição a ser cumprida quando da celebração do ANPP. (CABRAL, 2021, p.117)

O cenário atual de ampliação dos espaços de consenso somado à necessidade estatal de colaboração do acusado com a persecução criminal descortina o dilema que permeia toda a sistemática de celebração de acordos penais, qual seja esperar passivamente a confirmação de sua inocência mediante a submissão aos riscos do regular trâmite processual, ou aceitar, de logo, a celebração de um acordo que antecipe uma pena, em tese, “menos gravosa”. Quanto a isso, a problemática reside justamente na suposta voluntariedade na celebração dos acordos, ou seja, se são aceitos de modo livre e consciente pelo acusado, ou se são resultado do medo de punições mais severas em caso de exercício do direito ao julgamento.

Além do ferimento aos princípios do devido processo legal – mediante o evitamento do processo com a aplicação de punições instantâneas – da presunção de inocência – com o deslocamento da carga probatória para o polo passivo – a celebração do ANPP, notadamente pela primazia da confissão incriminadora, representa importante prejuízo ao contraditório, à ampla defesa e ao princípio da não-autoincriminação (nemo tenetur se detegere).

Primeiramente, insta ressaltar que é retirada do réu a possibilidade de contradizer os termos apresentados pela acusação, a qual, ademais, também não figura em seu mesmo patamar (ALMEIDA, 2014, p.225), razão pela qual é ferido o princípio do contraditório em seu duplo viés, uma vez que não se garante ao acusado a possibilidade de confrontar a pretensão acusatória, tampouco lhe é assegurada uma participação em simétrica paridade (par conditio ou paridade de armas), não lhe sendo oportunizado o agir no processo com equilibrada intensidade e extensão, configurando uma situação em que a única voz ativa é a acusação.

Além disso, fala-se na eliminação do contraditório em virtude da preeminência da investigação preliminar, uma vez que “o convencimento do acusador público e a determinação dos termos do acordo se fundamentam naquilo produzido nas inquirições pré-processuais”. (VASCONCELLOS, 2021, p.171)

Quanto à ampla defesa, é sabido que os mecanismos consensuais, ao afastarem o réu de sua posição de resistência, obstaculizam o exercício pleno de sua defesa através do reconhecimento de suposta prática de conduta criminosa. (LOPES JÚNIOR, 2020, p.1239)

Dessa maneira, verifica-se mais uma renúncia a direito quando o réu abre mão, ilegitimamente, da reação às imputações ora impostas pelo Parquet a partir de um consentimento firmado sob coação. De fato, diante da incredulidade quanto à efetividade de sua argumentação para a comprovação de sua inocência, confessa-se a prática delituosa por “medo do pior”.

No que tange ao princípio da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere), novamente a problemática da confissão é trazida à baila, uma vez que, diante da pressuposição dessa postura ativa do acusado, mostra-se necessário que confesse ter cometido a infração penal em questão (LOPES JÚNIOR, 2020, p.1239). Acredita-se, então, que, diante da intimidação de receber uma pena mais gravosa em caso de optar pelo exercício do direito ao julgamento, há cristalina violação ao direito conferido ao réu de não ser compelido a produzir prova contra si mesmo, ao passo que é, flagrantemente, nas situações de consenso, coagido a autoincriminar-se.

Em vista disso, tem-se uma hipervalorização de uma postura ativa do réu no sentido de autoincriminar-se, uma vez que, na sistemática da justiça consensual, admite-se a prolação de uma sentença condenatória fundada, sobretudo, na confissão do réu, enquanto “rainha das provas”, em troca do suposto benefício de uma sanção menos gravosa que a decorrente do regular trâmite processual. (LOPES JÚNIOR, 2020, p.1239)

Sendo assim, o requisito da voluntariedade na aceitação dos acordos mostra-se falacioso, uma vez que o funcionamento de tais mecanismos ocorre mediante uma ameaça “do pior”, ocasionando a impossibilidade de qualquer escolha livre da defesa. Desse modo, o argumento de que ninguém pode ser obrigado a autoincriminar-se é completamente minado, justamente em razão do extremamente provável agravamento da situação de quem não o fizer (LIPPKE, 2011, p.179). Configura-se, portanto, uma situação em que a única voz ativa é a pretensão acusatória, a qual, mediante coação, se sobrepõe a qualquer resistência defensiva (ALMEIDA, 2014, p.225).

Em semelhante perspectiva colocam-se as palavras de Aury Lopes Júnior:

O furor negociador da acusação pode levar à perversão burocrática, em que a parte passiva não disposta ao “acordo” vê o processo penal transformar se em uma complexa e burocrática guerra. Tudo é mais difícil para quem não está disposto a “negociar”. (2020, p.1239)

 

A saber, intensifica-se tal problemática em um sistema de justiça criminal como o brasileiro, diante de todo um panorama de desigualdades sociais, insuficiência de assistência jurídica e condenações “padrão”, onde a realização dos acordos revela-se como expressão da ineficiência estatal em oferecer a adequada prestação jurisdicional, sendo-lhe, portanto, menos “custoso” coagir o imputado, originalmente ocupante de posição inferior no jogo processual, à renúncia ao direito de julgamento em um processo munido de salvaguardas.

Desse modo, diante da intimidação de uma sanção penal mais grave em caso de exercício do direito ao processo, não há falar em liberdade na formação da vontade para negociar. A ameaça de punição mais gravosa faz com que a parte mais frágil aceite o acordo nas condições que lhe são oferecidas; ressalte-se, não por entender mais benéfico, o que, por certo, não o é, mas tão somente pela coação moral irresistível que sofre, mediante a imposição da vontade de quem detém o monopólio do exercício legítimo da força.

Depreende-se, portanto, que, considerando a renúncia ao processo e às garantias a ele inerentes, o Acordo de Não Persecução Penal queda por ferir frontalmente o que há de mais caro em um processo penal democrático, vez que provoca sensíveis tensionamentos a princípios fundamentais do Sistema Acusatório.

Desrespeita-se o devido processo legal, dissipa-se a presunção de inocência – a qual se vê transformada em verdadeira presunção de culpabilidade -, desvirtua-se o contraditório e a ampla defesa – vez que não há espaço para exaurimento da pretensão acusatória com uma real comprovação de culpa ou inocência mediante lastro probatório produzido sob o crivo do contraditório-, e viola-se o direito a não autoincriminação, ante a coação inerente à proposta, que assevera inconteste punição mais gravosa ao acusado caso este opte por exercer seu direito ao devido transcorrer do processo, com ulterior julgamento. Todo esse cenário se mostra ainda mais preocupante quando se leva em consideração as circunstâncias próprias da conjuntura jurídico-penal brasileira, marcada pela seletividade e pelo preconceito, em que não raras são as vezes em que se assume eventual autoria de um delito diante do “medo do pior”, visto que a condenação já é tida como certeza.

 

Notas e Referências:

ALMEIDA, Vera Ribeiro de. Transação penal e penas alternativas.      Uma pesquisa empírica nos Juizados Especiais Criminais do Rio de Janeiro.    Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

BRANDALISE, Rodrigo da Silva. Justiça penal negociada: negociação da sentença criminal e princípios processuais relevantes. Curitiba: Juruá, 2016.

CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira.   Manual   do  acordo de não persecução penal. 2. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2021.

LIPPKE, Richard L. The ethics of plea bargaining. Oxford: Oxford University Press, 2011.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo penal. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2013, vol. 1.

VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. 2 ed., 2. reimp. São Paulo: D´Placido, 2021.

 

Colunista

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Louise Carvalho
Pós-graduada e especialista em Direito Penal com certificação internacional pela USC (FAAP/Universidade de San Tiago de Compostela). LLM Direito Penal Econômico – IDP Brasília (em curso). Graduada em Direito com "láurea acadêmica" pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Integrante da Comissão de Direito Penal da OAB/PE. Sócia do Carvalho & Advogados Associados.

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