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As consequências do reconhecimento da inconstitucionalidade da obrigatoriedade da oferta do plano referência pelas operadoras de planos de saúde pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

A assistência à saúde no Brasil: uma breve introdução

A assistência à saúde no Brasil é prestada de forma direta, complementar e suplementar. A prestação direta se dá quando o próprio Estado realiza o serviço, sendo complementar quando ente estatal terceiriza essa atividade. Isto é, tanto num caso quanto no outro estamos falando do Sistema Único de Saúde (SUS). Já a saúde suplementar é a prestação de serviços de saúde fora do SUS.

A Constituição Federal de 1998 afirma em seu art. 196 que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” com acesso “universal e igualitário”, prevendo ainda no seu art. 197 que sua execução deverá realizada de modo direto, ou por terceiros.

CF/88 – Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

 

Já o art. 199 permite que a iniciativa privada desenvolva também atividades de assistência à saúde.

CF/88 – Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

 

É aí que “entram” os planos de saúde.

Não quero com isso dizer que os planos de saúde não existiam antes da Constituição, pois, eles já operavam sem grande regulação anteriormente desde os anos 1960.

O importante aqui é fixar que além da assistência à saúde de forma pública, nós temos também a assistência à saúde prestada pela iniciativa privada. A chamada saúde suplementar. É nesta saúde suplementar que estão inseridos os planos de saúde.

Em resumo, o sistema prestacional de saúde no Brasil está assim dividido:

  • Prestação direta (SUS)
  • Prestação complementar (entidades privadas no SUS)
  • E prestação suplementar (entidades privadas fora do SUS)

Agora vamos tratar do Sistema de Saúde Suplementar no Brasil e, para tanto, precisamos abordar a Lei dos Planos de Saúde (LPS), a Lei nº 9.656/98, que á a sua pedra angular.

Deste as inúmeras regras e garantias decorrentes desta Lei, que é o principal marco regulatório do setor, encontramos a instituição do chamado Plano Referência (art. 10).

L9656/98 – Art. 10.  É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto: […]

Como se infere do próprio nome do plano, o sistema foi idealizado para ter o plano referência como o seu norteador, de modo que as operadoras foram obrigadas a ofertar esse plano justamente para propiciar a existência da base desse sistema em que os usuários pudessem ter uma forma adequada para comparar os planos entre si.

L9656/98 – Art. 10, § 2º – As pessoas jurídicas que comercializam produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei oferecerão, obrigatoriamente, a partir de 3 de dezembro de 1999, o plano-referência de que trata este artigo a todos os seus atuais e futuros consumidores.

Contudo, essa obrigatoriedade vigorou por 20 (vinte) anos até o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1931, que teve como requerente a CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE – HOSPITAIS ESTABELECIMENTOS E SERVIÇOS – CNS e foi distribuída em 10/12/1998 e julgada pelo plenário do STF em 07/02/2018.

 

A inconstitucionalidade da obrigatoriedade da oferta do Plano referência

Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou parcialmente procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1931 “para declarar a inconstitucionalidade dos arts. 10, § 2º, e 35-E da Lei 9.656/1998, bem como do art. 2º da Medida Provisória n. 2.177-44/2001”.

As redações dos artigos são as seguintes:

L9656/98 – “Art. 35-E.  A partir de 5 de junho de 1998, fica estabelecido para os contratos celebrados anteriormente à data de vigência desta Lei que:  […]”

L9656/98 – “Art. 10, § 2º – As pessoas jurídicas que comercializam produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei oferecerão, obrigatoriamente, a partir de 3 de dezembro de 1999, o plano-referência de que trata este artigo a todos os seus atuais e futuros consumidores.”

 

Assim, a aplicação da norma de modo retroativo aos contratos firmados antes de sua vigência foi considerada inconstitucional. Isto é, a incidência da norma sobre cláusulas contratuais preexistentes, firmadas sob a égide do regime legal anterior foi considerada uma ofensa aos princípios do direito adquirido e do ato jurídico perfeito. Além disto, o plano referência simplesmente deixou de ser obrigatório e este é o grande motivo pelo qual, atualmente, é praticamente impossível que se contrate um plano individual ou familiar.

Então, a partir daí começaram a surgir uma série de “alternativas” para burlar o sistema de proteção dos consumidores de planos de saúde instituído pela Lei dos Planos de Saúde (LPS).

 

As consequências práticas da decisão do STF e a judicialização decorrente

Atualmente, chama bastante atenção um tipo de contratação de plano de saúde em que um grupo familiar (normalmente cinco pessoas, em média) adere a um contrato empresarial.

Noutras palavras, como as operadoras de planos de saúde pararam de ofertar os planos individuais e passaram a ofertar apenas planos empresariais, as famílias foram “forçadas” a constituírem pessoas jurídicas para conseguir contratar um plano de saúde.

Via de regra, paga-se muito mais barato neste tipo de plano do que no plano antigo que a família possui. Contudo, não é habitual que os usuários recebam a informação de que ao aderir a este novo plano irão perder as garantias do plano familiar.

Dentre as garantias trazidas pela LPS, entendo que duas são as principais: a garantia de reajustes anuais regulados efetivamente com autorização da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e a impossibilidade da suspensão ou o encerramento do contrato pela operadora (resilição unilateral), exceto em casos especificados na Lei.

Assim, em virtude desta prática, cada vez menos pessoas possuem planos individuais ou familiares, sendo certo que apenas eles detêm todas as garantias da LPS. Ou seja, ao longo do tempo o sistema foi sendo desestruturado, apesar de toda a regulação desenvolvida, pois a sua “referência” deixou de existir na prática.

Contudo, o Poder Judiciário tem coibido e reconhecido como abusivas práticas desleais das operadoras de planos de saúde, inclusive no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Este tipo de situação vem sendo tratada como planos “Falsos Coletivos”, tendo como consequência a aplicação de todas as garantias dos planos individuais ou familiares, contidas na Lei dos Planos de Saúde (LPS).

O STJ reconheceu a existência de PLANOS FALSOS COLETIVOS ao manter decisão do TJSP em caso em que uma operadora realizou a denúncia unilateral de contrato coletivo, mas o TJSP aplicou o CDC e o art. 13, § único, inciso II da lei 9656/98 ao contrato por considerá-lo com um contrato “falso coletivo” que tem como usuários os membros da mesma família. Eis a ementa da decisão do TJSP:

Segunda Câmara de Direito Privado do TJSP

APELAÇÃO CÍVEL. Plano de Saúde. Denúncia unilateral de contrato coletivo. Aplicação dos ditames do CDC. A aparente proteção exclusiva do art. 13, parágrafo único, inciso II da lei 9656/98, aos contratos individuais, estende-se também ao presente contrato coletivo por adesão, eis que se trata de contrato “falso coletivo”, que tem como usuários membros da mesma família. R. sentença mantida. RECURSO IMPROVIDO.

(Decisão do TJSP mantida no RECURSO ESPECIAL Nº 1889693 – SP monocraticamente pelo Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, 18/05/2021)

Em sua decisão o relator destacou: “Além do mais, cuida-se do chamado plano ´falso coletivo´, que beneficia apenas 06 pessoas, membros da mesma família, de sorte que deve ser dado tratamento análogo aos dos contratos individuais/familiares.” (Excerto de passagem do RECURSO ESPECIAL Nº 1932552 – SP, decidido monocraticamente pelo Ministro MOURA RIBEIRO, 13/05/2021)

Ademais, a aplicação do CDC aos contratos coletivos já vinha sendo aplicada pelo STJ:

Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ)

REsp nº 1.830.065 – SP publicado no DJe de 19/11/2020

Caso de plano coletivo onde discutia-se a relação entre uma pessoa jurídica na condição de empregadora, de um lado, e de outro lado, a operadora do plano de saúde, concluindo que dita relação “[…] não se rege pelo CDC, ressalvada a hipótese em que o contrato conta com menos de 30 (trinta) beneficiários, situação que revela a condição de vulnerabilidade do estipulante”.

É de se destacar ainda a seguinte passagem REsp 1846108/SP:

Conquanto o art. 35-G da Lei 9.656/1998 imponha a aplicação subsidiária da lei consumerista aos contratos celebrados entre usuários e operadoras de plano de saúde, a doutrina especializada defende a sua aplicação complementar àquela lei especial, em diálogo das fontes, considerando que o CDC é norma principiológica e com raiz constitucional, orientação essa que se justifica ainda mais diante da natureza de adesão do contrato de plano de saúde e que se confirma, no âmbito jurisdicional, com a edição da súmula 608 pelo STJ. (Excerto do REsp 1846108/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/02/2021, DJe 05/02/2021)

 

Assim, em que pese a não obrigatoriedade de oferta do plano referência, casuisticamente a LPS vem sendo aplicada a contratos empresariais em que grupos familiares são os beneficiários do plano de saúde, notadamente pelo reconhecimento da vulnerabilidade dos consumidores.

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Vinicius Calado
Doutor (2020), Mestre (2012) e Bacharel (2000) em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Pesquisador dos Grupos de Pesquisa Linguagem & Direito e Direito e Inovação (Unicap/CNPq). . Atua como professor Assistente III de Direito Civil, Direito do Consumidor e Orientação Monográfica na UNICAP (desde 2011). É ainda coordenador do LLM em Direito Médico e da Saúde e coordenador adjunto do MBA em Blockchain e Criptoativos, ambos da Católica Business School (CBS/UNICAP). . Sócio fundador (2010) e ex-vice-presidente (2011-2013) da FEPODI - Federal Nacional dos Pós-graduandos em Direito. Advogado do Sindicato dos Médicos de Pernambuco (desde 2002), além de sócio do escritório Calado & Souza Advogados Associados. . Ex-presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/PE (2013-2015). Ex-presidente da Comissão de Direito e Saúde da OAB/PE (2016-2018). Coordenador do Núcleo de Direito do Consumidor da ESA/OAB/PE (2019).

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