Área jurídicaFora da caixa

Cultura e a educação para a paz nas escolas de educação básica: uma questão de currículo escolar?

Por Mônica Piccione Gomes Rios e Thatiane Carneiro Sotano Machado

 

Refletir sobre a cultura de paz no contexto escolar implica compreendê-la não como um tema complementar ou acessório ao currículo, mas como eixo estruturante da formação humana. A crescente visibilidade de episódios de violência nas escolas, bem como a intensificação de conflitos nas relações escolares cotidianas, exige que o currículo seja repensado como espaço privilegiado de construção de valores, sentidos e práticas que favoreçam o diálogo, o respeito mútuo e a justiça social. A abordagem da paz, portanto, deve estar articulada às escolhas curriculares, aos conteúdos ensinados e à forma como esses conteúdos são mediados no cotidiano pedagógico.

A cultura e a educação para a paz têm movido educadores, sobretudo, da Educação Básica, em face das relações de animosidade que têm sido predominantes no espaço escolar e que têm afetado os processos de ensino e aprendizagem. Violências de naturezas diversas têm sido alvo de alerta para a sociedade que tem se sensibilizado com fatos concretos a vitimar vidas. Fatos dessa natureza, têm sido pontuais, e, por vezes, têm sido tratados nas mídias tradicional e digital com sensacionalismo sem o compromisso de mitigá-las.

Defendemos que a escola, na condição de responsável pela educação formal, constitui espaço privilegiado para o desenvolvimento de uma cultura de paz que contribua para uma sociedade mais justa e para a construção de um mundo possível, como aponta Gadotti (2007).

Defendemos, ainda, que o currículo escolar necessita ser problematizado e ser norteado por questões como: que cidadão vamos contribuir para a sociedade? Qual o projeto societário? Nessa linha de pensamento, Santomé (2013, p. 163) acentua que

 

É preciso aceitar a pretensão de que o século XXI deve ser o século da justiça social, da paz, da compreensão e da solidariedade global e trabalhar com isso. Nosso século deve se caracterizar pela empatia e compaixão, mas no sentido etimológico da palavra: sofrer juntos, compreender o estado afetivo e emocional do outro; seguir uma via que facilite aprender a valorização dos demais como iguais e o respeito a eles. Portanto, é preciso dar maior ênfase à educação das emoções, à compaixão como meio de fomentar a ajuda e à compreensão do outro.

 

Nas suas palavras, Santomé (2013) nos convida a colocar em questão o currículo escolar que estamos a praticar, sendo necessário transcender os conteúdos conceituais que estão predominantes em detrimento dos conteúdos emocionais e atitudinais. Nesse contexto, no processo de construção do currículo cabe problematizar o conhecimento escolar que é o seu objeto. Qual conhecimento é importante? Salvaguardando as diferentes respostas que possam advir dessa questão, é necessário que educadores assumam uma postura crítica ancorados teoricamente em especialistas em currículo, e em um esforço coletivo, busquem respondê-la, pois como acentua Young (2013, p. 13) “Se, enquanto especialistas em currículo, não podemos responder a esta pergunta, fica indefinido quem pode e é mais provável que tal indagação seja deixada para as decisões pragmáticas e ideológicas de administradores e políticos.” Para além dos especialistas em currículo, como educadores que atuam na educação básica estão a responder essa questão?

No Brasil, o conhecimento escolar mais importante tem sido definido, sobretudo, pelas políticas públicas de avaliação vigentes, com destaque ao Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) que implica avaliação externa do desempenho escolar dos estudantes em português e matemática, sendo aplicada em nível nacional. O Saeb integra o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) que tem constituído o indicador de qualidade desse nível de educação. Na direção da obtenção dos resultados satisfatórios no Saeb e do alcance de meta nacional estabelecida relacionada ao Ideb, há ações desencadeadas nas unidades escolares para que resultados satisfatórios sejam atingidos.

Tais ações, por vezes, desconsideram o currículo escolar que fica subordinado às avaliações externas e respectivo indicador de qualidade. Voltamos assim a questão anterior: qual conhecimento escolar é importante?

Para resposta a essa questão, entendemos ser relevante considerar a educação formal como propulsora de uma cultura de paz que se opõe a toda e qualquer forma de violência seja nas relações seja na resolução de conflitos que se estabelecem e que emergem no espaço escolar e que afetam os processos de ensino e aprendizagem, para além de marcas indeléveis a marcar vidas. “Sem bater fisicamente no educando, o professor pode golpeá-lo, impor-lhe desgostos e prejudicá-lo no processo de sua aprendizagem” (Freire, 1996, p.138). Assim, acentuamos, o que aprendemos com Freire (1996, p. 16) “Ensinar exige a corporificação das palavras pelo exemplo.” Inspiradas em Freire (1996), afirmamos que apenas discursar sobre respeito, solidariedade, justiça social, empatia, compaixão, equidade, entre outros, não terá efeito educativo se não acompanhado de gestos e ações que assim os demonstrem e ilustrem.

Afirmamos, aqui, a ciência de que “inserir uma cultura de paz nas escolas se constitui uma urgência, que demanda uma Política Pública de Estado para instituir nas escolas projetos permanentes na construção de uma cultura de paz.”

Destarte, o currículo escolar é essencial para o desenvolvimento de uma cultura de paz, pois tem potencial para contribuir com a valorização das diferenças e da diversidade, a tolerância, o respeito e a justiça, de modo que o diálogo seja o marco na resolução de conflitos.

Promover a cultura de paz na escola implica, pois, reconhecer que o currículo não se limita à seleção de conteúdos disciplinares, mas envolve também o modo como esses saberes são apropriados nas interações sociais, afetivas e simbólicas do ambiente escolar. A construção de um currículo comprometido com a paz requer escuta, problematização crítica e valorização da diversidade, de modo que o conhecimento escolar se torne instrumento de transformação das realidades marcadas por desigualdades e exclusões. Trata-se de reafirmar a escola como um território de pertencimento e mediação, no qual a convivência ética e democrática seja vivenciada e experienciada cotidianamente.

 

Notas e Referências:

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Ed. Paz & Terra, 1996.

GADOTTI, Moacir. Educar para um outro mundo possível. São Paulo: Publisher Brasil, 2007.

SILVA, Tânia Roberta da e ARAÚJO, Mônica da Silva Lopes. Proposta para a construção de uma cultura de paz no contexto escolar. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação. São Paulo, v.7.n.1, jan. 2021.

TORRES SANTOMÉ, Jurjo. Currículo escolar e justiça social: o cavalo de Troia da educação. Tradução Alexandre Salvaterra; revisão técnica: Álvaro Hypolito. Porto Alegre: Penso, 2013.

YOUNG, Michael. A superação da crise em estudos curriculares: uma abordagem baseada no conhecimento. In: FAVACHO, A. M.; PACHECO, J. A.; SALES, S. R. (Org.). Currículo: conhecimento e avaliação, divergências e tensões. Curitiba: CRV, 2013. p. 11-31.

Colunista

Avalie o post!

Incrível
1
Legal
0
Amei
3
Hmm...
0
Hahaha
0
Lucas Laurentiis
Professor Titular Categoria A1 da PUC-Campinas. Coordenador e membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito (PPGD), vinculado à linha de pesquisa "Cooperação Internacional e Direitos Humanos". Mestre e doutor em Direito constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi pesquisador visitante com bolsa CAPES sanduíche da Albert Ludwigs Universität Freiburg e do Instituto Max Planck de Freiburg. É especialista em Direito constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. . Foi professor nos cursos de especialização e pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Foi professor e orientador da Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público. Foi pesquisador e professor convidado da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e Membro da comissão de Direito constitucional da OAB-SP. . Atua nas áreas de direito público, liberdade de expressão e proteção de dados

    Você pode gostar...

    Comentários desativados.