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Diferencial de Alíquota do ICMS e a aplicação dos Princípios da Anterioridade após a promulgação da Lei Complementar nº 190/2022

Nosso objetivo neste artigo é analisar como se deve aplicar a cobrança do diferencial de alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e sobre Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e Comunicações (ICMS), diante dos princípios constitucionais da anterioridade do exercício financeiro e da noventena, a partir da alteração feita na Lei Kandir pela Lei Complementar nº 190/2022.

Mas antes de adentrar na problemática do artigo, faz-se necessário introduzir o leitor a alguns conceitos e ideias básicos do Direito Tributário.

O ICMS é um tributo de competência estadual, sendo responsável por boa parte da arrecadação de valores para o Erário, tendo um caráter nitidamente fiscal[1]. De acordo com o Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), no ano de 2018, a Região Sudeste foi responsável por 49% (quarenta e nove por cento) do total da arrecadação do ICMS naquele ano[2]; o que nos leva a refletir, como bem o fez Luciano Coutinho[3], que a Região Sudeste – composta pelos Estados de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo – concentra o grande centro econômico-financeiro do país.

Acredita-se que, atento a esta concentração econômica em determinados Estados, o legislador constituinte determinou que deveriam existir o pagamento de diferencial de alíquota do ICMS quando houvesse circulação de mercadorias entre Estados-Membros diversos.

Mas o que é diferencial de alíquota do ICMS, como acontece a cobrança deste imposto quando há circulação de mercadorias entre Estados diferentes e quais a mudanças ocorridas nesta espécie de cobrança?

Primeiro cabe-nos delimitar como ocorre a cobrança do ICMS, de forma bem simples e didática.

Quando há circulação de mercadoria dentro do mesmo Estado – por exemplo, quando uma empresa adquire mercadorias de uma indústria para revenda, tudo dentro da mesma Unidade da Federação -, não há maiores complicações: aplica-se a alíquota interna do ICMS e o vendedor [contribuinte de direito[4]] recolhe aos cofres públicos o valor do tributo.

Ocorre que, por vezes, os produtos industrializados têm sua produção concentrada em determinados Estados, de modo que os revendedores e consumidores de determinadas mercadorias se veem obrigados a adquirir tais bens em outros Estados que não os de seu domicílio. É o que ocorre, por exemplo, quando uma empresa de Pernambuco precisa adquirir produtos de informática fabricados em grandes empresas de São Paulo, por exemplo. Foi considerando essas situações; bem como considerando a concentração da arrecadação tributária de ICMS; que a Constituição determinou a possibilidade da aplicação de alíquotas interestaduais e do diferencial de alíquota.

De acordo com o art. 155, § 2º, VII, da Constituição Federal de 1988, quando um contribuinte habitual do ICMS adquirisse bens ou serviços de outro Estado, deveria pagar a alíquota interestadual para o Estado de origem do produto, pagando o diferencial de alíquota para o Estado de destino.

Para ilustrar: caso uma empresa X de Pernambuco [contribuinte habitual do ICMS] comprasse um produto de uma empresa Y de São Paulo, deveria pagar a alíquota interestadual para São Paulo, que hoje é de 7% (sete por cento)[5]. Além da alíquota interestadual [paga ao Estado de origem do produto], deveria pagar ainda a diferença entre a alíquota interna de Pernambuco aplicável ao caso, e a alíquota interestadual. Considerando que em Pernambuco a alíquota interna, em regra, é 18%, no caso hipotético, a empresa X deveria pagar uma alíquota de 7% para São Paulo, e uma alíquota de 11% para Pernambuco.

Verifica-se que a finalidade da norma constitucional é redistribuir renda tributária, de modo a minimizar a concentração de arrecadação em determinadas regiões do país, em detrimento das demais; oportunizando o desenvolvimento mais igualitário possível nos diversos lugares do Brasil.

O texto originário da Constituição determinava a aplicação do diferencial de alíquota do ICMS apenas em relação aos adquirentes de bens e serviços que fossem contribuintes habituais do imposto; de modo que, se a mercadoria fosse adquirida por um consumir final, não contribuinte do ICMS, não haveria aplicação de alíquota interestadual e diferencial de alíquota (DIFAL).

Com a Emenda Constitucional nº 87/2015, a sistemática do DIFAL foi estendida aos adquirentes não contribuintes do ICMS, momento em que se inicia uma série de conflitos e irregularidades legislativas em relação ao instituto. O inciso VII, do § 2º, do art. 155, da CF/88 passou a ter a seguinte redação:

 

VII – nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual;[6]   

Referida emenda trouxe também regras de transição para melhor aplicação da sistemática, buscando evitar impactos financeiros pela mudança abrupta na arrecadação, determinando a repartição dos valores arrecadados com a aplicação do DIFAL:

 

ADCT – CF/88

Art. 99. Para efeito do disposto no inciso VII do § 2º do art. 155, no caso de operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final não contribuinte localizado em outro Estado, o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual será partilhado entre os Estados de origem e de destino, na seguinte proporção:         (Incluído pela Emenda Constitucional nº 87, de 2015)

I – para o ano de 2015: 20% (vinte por cento) para o Estado de destino e 80% (oitenta por cento) para o Estado de origem;         (Incluído pela Emenda Constitucional nº 87, de 2015)

II – para o ano de 2016: 40% (quarenta por cento) para o Estado de destino e 60% (sessenta por cento) para o Estado de origem;         (Incluído pela Emenda Constitucional nº 87, de 2015)

III – para o ano de 2017: 60% (sessenta por cento) para o Estado de destino e 40% (quarenta por cento) para o Estado de origem;         (Incluído pela Emenda Constitucional nº 87, de 2015)

IV – para o ano de 2018: 80% (oitenta por cento) para o Estado de destino e 20% (vinte por cento) para o Estado de origem;         (Incluído pela Emenda Constitucional nº 87, de 2015)

V – a partir do ano de 2019: 100% (cem por cento) para o Estado de destino.         (Incluído pela Emenda Constitucional nº 87, de 2015)

 

A partir desta modificação realizada em 2015, os Estados começaram a aplicar a cobrança da DIFAL na aquisição de bens e serviços interestaduais por consumidores finais, baseados na regulamentação feita por convênio do CONFAZ (Convênio nº 93/2015[7]).

No entanto, em fevereiro de 2021, o Supremo Tribunal Federal foi instado a se manifestar acerca da constitucionalidade do referido Convênio, julgando conjuntamente o Recurso Extraordinário nº 1.287.019/DF e a ADI nº 5.469/DF; momento em que declarou a inconstitucionalidade do ato normativo impugnado, usando como ratio decidendi a impossibilidade da exigência do Diferencial de Alíquota de ICMS (DIFAL) para operações e prestações interestaduais que destinem bens e serviços a consumidor final não contribuinte do ICMS por meio de convênio. De acordo com o STF, o DIFAL só poderia ser cobrado se o texto constitucional (modificado através da EC nº 87/2015) fosse regulamentado por meio de lei complementar.

O Supremo Tribunal Federal modulou os efeitos da decisão judicial, ressalvando as ações judiciais que requeriam a anulação do lançamento tributário propostas até a data de 24/02/2021, da seguinte forma:

    1. Até o final de 2021 => deveria ser mantido o recolhimento do DIFAL nas operações e prestações interestaduais destinadas a consumidor final não contribuinte do ICMS;
    2. A partir de 1º de janeiro de 2022 => a cobrança do DIFAL nas operações e prestações interestaduais destinadas a consumidor final não contribuinte do ICMS, dependeria da vigência de lei complementar disciplinando as regras gerais sobre o imposto nesta hipótese.

A fim de legitimar a cobrança do DIFAL nas operações retratadas acimas, foi promulgada a Lei Complementar nº 190, na data de 04 de janeiro de 2022, regulamentada pelo Convênio CONFAZ nº 236/2021, publicado no Diário Oficial da União em 06 de janeiro de 2022[8].

Agora o leitor pode pensar: estão resolvidos todos os problemas em relação a esta cobrança do diferencial de alíquota do ICMS nas circulações interestaduais para consumidor final não contribuinte do ICMS.

Infelizmente esta afirmação não corresponde à realidade.

A promulgação da LC nº 190/2022 encerrou as discussões acerca da possibilidade da aplicação do DIFAL nas operações acima referidas; mas iniciou uma outra discussão: a partir de que momento o Estado de destino pode cobrar o diferencial de alíquota, quando o consumidor não for contribuinte do ICMS?

A LC nº 190/2022

 

REFERÊNCIAS

 AINHOA, Uribe Otalora. El populismo como vanguardia del desencanto político en Europa: el fenómeno  Podemos» en España. Revista de Estudio Políticos, 2017, 177, 213-255. doi:  ttps://doi.org/10.18042/cepc/rep.177.07.

AZZONI, C. R. Indústria e reversão da polarização no Brasil. São Paulo: USP, 1986.

CASTELLS, Manuel. Ruptura: A crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

FAHRENHEIT 9/11. Direção: Michael Moore, Produção: Michael Moore; Jim Czarnecki e Kathleen Glynn. Estados Unidos: Lions Gate Films, 2004, 1 DVD.

GALINDO, Bruno. IMPEACHMENT EN BRASIL POS-DILMA: ¿ULISES DESATADO POR HERMES? EL “CANTO DE LAS SIRENAS” HERMENÉUTICO-CONSTITUCIONAL. Revista Videre. Dourados, MS, v.10, n.19, jan./jun. 2018, p. 385-418 – ISSN 2177-7837.

ROSANVALLON, Pierre. O século do populismo: história, teoria e crítica. Tradução: Diogo Cunha. 1. ed. Rio de Janeiro: Ateliê das Humanidades Editorial, 2021.

SANCHES, J. L. Saldanha. Justiça Fiscal. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2010.

 

Notas:

[1] Tributo de caráter fiscal é aquele cuja finalidade precípua é a arrecadação; em contraposição aos tributos de caráter extrafiscal, que, não obstante arrecadem valores para os cofres públicos, tem como finalidade principal interferir em questões econômicas e sociais, como os impostos de importação e exportação.

[2] Conselho Nacional de Política Fazendária. (2018). Comissão técnica permanente do ICMS. Disponível em: https://www.confaz.fazenda.gov.br/noticias-do-confaz/confaz-publica-boletim-de-arrecadacao-dos-tributos-estaduais-relativos-ao-ano-2018#:~:text=7%2C85%25.-,Principal%20imposto%20estadual%2C%20o%20ICMS%20teve%20uma%20evolu%C3%A7%C3%A3o%20de%207,R%24%20445%2C653%20bilh%C3%B5es%20de%202017. Acesso em 22 fev. 2022.

[3] COUTINHO, L. (2015). Prefácio: O BNDS e a missão de promover o desenvolvimento regional. In C.F.C.Leal, L.Linhares, C.Lemos, M.M. da Silva, & H.M.M. Lastres. Um olhar territorial para o desenvolvimento: Sudeste (prefácio, 5-12). Rio de janeiro: BNDS.

[4] Fez-se esta ressalva porque o ICMS é entendido como um tributo indireto, de modo que o ônus do valor do tributo é suportado, na verdade, pelo adquirente da mercadoria, que acaba se tornando o contribuinte de fato do imposto; pois o valor do ICMS é embutido no valor da venda.

[5] Vide Resolução nº 22/1989 do Senado Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/congresso/rsf/rsf%2022-89.htm. Acesso em 22 Fev. 2022.

[6] CONSTITUIÇÃO

[7] Conselho Nacional de Política Fazendária. (2015). Convênio nº 93. Disponível em: https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2015/CV093_15. Acesso em: 22 Fev. 2022.

[8] Conselho Nacional de Política Fazendária. (2022). Convênio nº 236. Disponível em: https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2021/CV236_21. Acesso em: 22 Fev. 2022.

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Larissa Pinheiro
Mestra em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Professora na Faculdade do Sertão do Pajeú (AEDAI-FASP), lecionando as disciplinas de Direito Tributário e Direito Processual Civil. Participante do grupo de estudo Moinho Jurídico / UFPE. Membra da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Advogada no Escritório Larissa Pinheiro Advocacia, onde atua nas áreas de Tributação, Sucessão e Regularização Imobiliária.

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