Obra sem autor, bem com valor. Fundamentos jurídicos da proteção de imagens criadas por inteligência artificial
No capítulo “Obra sem autor, bem com valor: fundamentos jurídicos da proteção de imagens criadas por inteligência artificial”, publicado na coletânea Estudios sobre Ética e Inteligencia Artificial,[1] obra coletiva coordenada por Álvaro Sanchez Bravo (Universidade de Sevilha, Espanha) e Liton Lanes Pilau Sobrinho (Universidade do Vale do Itajaí, Brasil) , procurei examinar os fundamentos jurídicos para a proteção patrimonial de produtos gerados por sistemas de IA, especialmente imagens criadas a partir de descrições humanas. O ponto de partida foi um experimento conceitual realizado com minha assistente virtual, Judite, a quem perguntei se seria capaz de criar uma imagem que expressasse sua personalidade. O resultado, uma cena digital de uma figura feminina em uma biblioteca futurista, deu ensejo a questões mais densas: essa imagem tem autor? Pode ser protegida juridicamente?
A resposta negativa quanto à autoria, com base na ausência de subjetividade criadora por parte da IA, não resolve o problema. Mesmo sem autor humano, essas imagens existem, circulam, são licenciadas e disputadas judicialmente, como evidenciam os casos Zarya of the Dawn e Getty Images v. Stability AI. Por isso, o texto propõe um deslocamento conceitual: se não há autoria, ainda é possível falar em titularidade? E, em caso positivo, quem seria o titular do bem gerado?
A legislação brasileira de Direitos Autorais (Lei n.º 9.610/1998, LDA), herdeira do paradigma “autorcentrista”, exige a figura humana como elemento indispensável para a proteção da obra intelectual. O artigo 11 é claro: autor é a pessoa física criadora da obra. Essa concepção é coerente com a tradição continental e com o modelo da Convenção de Berna. Contudo, mostra-se limitada diante da nova realidade dos produtos gerados por IA. Ainda que esses produtos não se enquadrem como “obras” nos termos clássicos, não estão fora do Direito. Pelo contrário: operam no mercado digital, demandam segurança jurídica e exigem novos instrumentos conceituais.
Foi nesse ponto que encontrei, na proposta de Pamela Samuelson, um referencial útil. Já em 1986, Samuelson havia sugerido cinco alternativas para a alocação de titularidade sobre produtos criados por computador: o próprio computador, o usuário, o programador, ambos conjuntamente, ou ninguém. Quase quatro décadas depois, reafirma que o usuário do sistema deve ser considerado titular dos direitos patrimoniais. Trata-se de quem aciona o sistema, fornece os comandos, identifica valor de mercado e edita o conteúdo final. Ou seja, mesmo sem autoria, há uma apropriação intencional e uma operação funcional que justificam a titularidade jurídica.
Essa posição é compatível com o direito brasileiro, que já admite a separação entre autor e titular, como nos casos de obras por encomenda ou com cessão contratual. No caso da IA, o usuário realiza um investimento, intelectual, estético e financeiro, e assume os riscos e responsabilidades da produção. Mesmo que não haja originalidade no sentido subjetivo, há um processo técnico e de curadoria que justifica o reconhecimento de um direito patrimonial.
Com base nesse deslocamento para a titularidade, propus uma segunda linha argumentativa: a requalificação jurídica da imagem gerada por IA como bem incorpóreo, nos moldes das res incorporales da tradição jurídica gaiana. Recuperando o itinerário dogmático que vai de Gaio a Windscheid, passando por Teixeira de Freitas e Clóvis Beviláqua, argumento que tais produtos digitais são suscetíveis de apropriação, têm valor econômico e podem ser juridicamente descritos. São bens jurídicos, ainda que desprovidos de suporte material ou autoria reconhecida.
Para isso, utilizei a noção de corpus electronicum: uma manifestação digital, economicamente apreciável, tecnicamente acessível, e passível de integração ao patrimônio de um sujeito. Assim como os direitos de crédito, os fundos de empresa ou os programas de computador, as imagens geradas por IA podem ser tratadas como bens imateriais do ponto de vista jurídico. Essa qualificação permite a sua inserção no tráfego jurídico, por meio de contratos, licenças, cessões ou restrições de uso.
Por fim, recorri à experiência espanhola com a figura da “mera fotografía” como modelo normativo comparado. Segundo a jurisprudência do Tribunal Supremo da Espanha, a fotografia que não atinge os requisitos de originalidade e criatividade exigidos pela Lei de Propriedade Intelectual (art. 10.1) não será considerada “obra”, mas ainda assim pode receber tutela patrimonial limitada. Trata-se da “mera fotografia”, protegida nos termos do art. 128 da LPI espanhola. Essa categoria jurídica dissocia a proteção econômica da exigência de autoria criativa. O sujeito que organiza, dirige ou realiza a fotografia, mesmo sem criar artisticamente, ainda assim recebe proteção limitada.
Esse modelo pode ser transportado para o caso da IA. As imagens geradas por inteligência artificial tampouco derivam de originalidade criadora em sentido estrito, mas resultam de um esforço técnico, de uma curadoria estética e de uma finalidade comunicacional definida por um sujeito humano. Nesse caso, não haveria direitos morais (pois não há autor), mas seria possível reconhecer um direito de uso exclusivo, nos moldes do direito conexo ou de uma proteção sui generis.
Concluo, assim, que embora o regime atual de direitos autorais não comporte a autoria de produtos de IA, isso não significa que tais produtos estejam fora do Direito. Pelo contrário: podem e devem ser reconhecidos como bens jurídicos, desde que deslocado o foco da análise para a titularidade e para a natureza patrimonial do resultado. As imagens geradas por IA são res incorporales digitais, suscetíveis de apropriação, uso exclusivo e circulação contratual. A proposta do corpus electronicum permite reconfigurar a tutela jurídica desses produtos, promovendo segurança nas relações jurídicas e coerência no tratamento dos novos bens da era digital.
Notas e Referências:
[1] LIMA, Éfren Paulo Porfírio de Sá. Obra sem autor, bem com valor: fundamentos jurídicos da proteção de imagens criadas por inteligência artificial. In SÁNCHEZ BRAVO, Álvaro e PILAU SOBRINHO, Liton Lanes (Org.). Estudios Sobre Ética e Inteligencia Artificial. Madrid: Editorial Alma Mater, 2025, p. 243-271.