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Comentários preliminares sobre a Lei da Telessaúde

Introdução

O Brasil relutou em regulamentar o exercício da telemedicina de modo amplo e definitivo, por meio de legislação própria, ocasionando muitas dúvidas e insegurança quanto a sua prática, levando aqueles que se dispuseram a desenvolver tal atividade, notadamente na área privada, a solicitar ao Conselho Federal de Medicina (CFM) que se manifestasse especificamente sobre o tema, o que ocorreu por meio de pareceres-consultas, os quais, por sua vez, foram consolidando o entendimento sobre o tema ao longo do tempo, resultando na Resolução CFM nº 1.643, de 26 de agosto de 2002.

De lá para cá, o CFM tentou regular a matéria no final de 2019, mas precisou recuar , revogando a Resolução CFM nº 2.227/2018 , de modo a ampliar o debate.

Neste meio tempo, o mundo inteiro foi surpreendido com a pandemia do coronavírus reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e soluções urgentes precisaram ser adotadas.

Nesse sentido, é de se reconhecer que o ponto de partida efetivo para a enfretamento do problema do ponto de visto legislativo foi o Projeto de Lei (PL) nº 696, 18 de março de 2020, visando dispor sobre o uso da telemedicina durante a crise causada pelo coronavírus. Na justificativa do projeto de Lei está grafado: “[…] deve ser dispensável qualquer requisito burocrático para o exercício da telemedicina. O mais importante é assegurar à nossa população a continuidade do atendimento”.

No dia seguinte, o CFM encaminhou o Ofício CFM Nº 1.756/2020 – COJUR ao ministro da Saúde da época, Luiz Henrique Mandetta, reconhecendo “a possibilidade e a eticidade da utilização da telemedicina, além do disposto na Resolução CFM nº 1.643, de 26 de agosto de 2002” apenas para teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta. O Ministério da Saúde (MS), então, editou a Portaria MS nº 467, de 20 de março de 2020, regulando a matéria, indo além da visão restritiva contida no escopo do ofício do Conselho Federal de Medicina (CFM), pois acolheu o atendimento pré-clínico, de suporte assistencial, de consulta, monitoramento e diagnóstico. Mesmo após a publicação da Portaria do Ministério da Saúde e do Projeto de Lei antes mencionado em andamento, o CFM não editou ou modificou suas resoluções que tratam da telemedicina, o que levou os Conselhos Regionais de Medicina estaduais e editarem resoluções sobre o tema, gerando ainda mais insegurança.

Menos de um mês após a sua apresentação, o Projeto de Lei (PL) nº 696, de 18 de março de 2020 foi aprovado, com algumas modificações, e entrou em vigor a Lei nº 13.989, de 15 de abril de 2020, que dispunha sobre o uso da telemedicina durante a crise causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2), autorizando o seu uso, de modo muito amplo, pois abre-se para todas as formas de assistência, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde, embora constitua autorização excepcional e emergencial, enquanto durar a mencionada crise.

Sobre a norma pandêmica e seus aspectos remetemos o leitor interessado para artigo publicado em conjunto com o colega Marcelo Lamy .
Destaque-se que a norma pandêmica teve vetado e depois derrubado o veto do art. 6º, no qual havia a previsão de que “Competirá ao Conselho Federal de Medicina a regulamentação da telemedicina após o período consignado no art. 2º desta Lei”, tendo o CFM continuado a discutir a nova resolução sobre o tema.

Com base na norma legal, em abril de 2022, o CFM aprovou a Resolução nº 2.314/2022 (Publicada no D.O.U. de 05 de maio de 2022), que define e regulamenta a telemedicina no Brasil, como forma de serviços médicos mediados por tecnologias e de comunicação.
E, no final de 2022, foi aprovada e publicada nova Lei versando sobre o tema, a Lei nº 14.510/2022 (de 27.12.2022) que autoriza e disciplina a prática da telessaúde em todo o território nacional.

Telemedicina ou telessaúde?
Diferentemente da Lei pandêmica (Lei nº 13.989, de 15.04. 2020), a Lei nº 14.510, de 27.12.2022 autoriza e disciplina a prática da telessaúde em todo o território nacional (conforme seu art. 1º). Isto é, a nova Lei não trata apenas do exercício da medicina, mas das profissões de saúde regulamentadas, delegando a competência para os conselhos profissionais no tocante a normatização ética relativa à prestação dos serviços (art. 26-D).

Contudo, não é correto afirmar que a telessaúde foi criada com nova Lei ou com a Lei pandêmica, pois a prestação de serviços em saúde por meio da utilização das tecnologias da informação e da comunicação já é amplamente utilizada no Brasil há vários anos.

Como exemplo, podemos referir a Rede Universitária de Telemedicina é uma iniciativa do Ministério da Ciência e Tecnologia, apoiada pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e pela Associação Brasileira de Hospitais Universitários (Abrahue) e coordenada pela Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), que já possui 17 anos de existência, com mais de 140 unidades em operação em todo o país .

Em verdade, em 2020 inaugurou-se um novo marco legal (ainda que temporário) e, agora (2022), temos uma Lei que trata desta prestação de modo amplo, trazendo princípios e regras, inserindo novo título na Lei do SUS (Lei nº8.080/90).

Neste breve texto, trazemos adiante os principais destaques da norma, sendo certos que estudos mais aprofundados precisam ser desenvolvidos, notadamente pelo enlace da nova norma com o conjunto de normas válidas e vigentes que afetam diretamente o exercício da atividade dos profissionais de saúde e, em especial, dos profissionais médicos.

Principais destaques da norma
Como já dito anteriormente, a Lei nº 14.510/2022 (de 27.12.2022) autoriza e disciplina a prática da telessaúde em todo o território nacional (art. 1º), destacando-se o seguinte:

1) Revogação expressa (art. 5º) da Lei nº 13.989, de 15 de abril de 2020 (Lei da telemedicina na pandemia);
2) Inserção de um Título na Lei nº 8.080/1990 (Lei do SUS) sobre Telessaúde, cuja abrangência reconhece o exercício da atividade por todas as profissões regulamentadas da área de saúde (art. 2º);
3) Estabelece os princípios da telessaúde, tendo como base a autonomia do profissional de saúde e o consentimento livre e informado do paciente; (art. 26-A, inserido na Lei nº 8.080/1990)
4) Definição/conceito de telessaúde (art. 26-B, inserido na Lei nº 8.080/1990);
5) Possibilidade de realização da primeira consulta por telessaúde, à critério do profissional de saúde (art. 26-C, inserido na Lei nº 8.080/1990);
6) Competência dos conselhos profissionais para a fiscalização e normatização da telessaúde (art. 26-D, inserido na Lei nº 8.080/1990);
7) Competência do SUS para expedição de normas sobre condições de funcionamento (observada a competência dos demais órgãos reguladores); (art. 26-E, inserido na Lei nº 8.080/1990);
8) Limitação para atos normativos que pretendem restringir o uso da telessaúde, exigindo a demonstração de imprescindibilidade da medida; (art. 26-F, inserido na Lei nº 8.080/1990);
9) Imperativos impostos para a prática da telessaúde:
a) ser realizada por consentimento livre e esclarecido do paciente, ou de seu representante legal, e sob responsabilidade do profissional de saúde;
b) prestar obediência aos ditames das Leis nºs 12.965, de 23 de abril de 2014 (Marco Civil da Internet), 12.842, de 10 de julho de 2013 (Lei do Ato Médico), 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados), 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor) e, nas hipóteses cabíveis, aos ditames da Lei nº 13.787, de 27 de dezembro de 2018 (Lei do Prontuário Eletrônico).
10) Obrigatoriedade do registro no CRM para empresas (onde estiver localizada sua sede) que exerçam telemedicina, bem como registro de diretor técnico médico (Art. 3º)
11) A norma foi publicada no DOU em 28.12.2022, entrando em vigor naquela data (art. 6º).

Observações finais e pontos de atenção

Atualmente no Brasil nós temos uma Lei abrangente que trata da Telessaúde como gênero e uma resolução do CFM que trata especificamente da Telemedicina enquanto espécie, além de inúmeras resoluções de conselhos profissionais também regulando o tema, a exemplo da Psicologia e da Odontologia.

Enquanto a Lei trata de modo amplo do exercício da prestação de serviços de saúde a distância, por meio da utilização das tecnologias da informação e da comunicação, com validade em todo o território nacional (telessaúde), compete ao CFM regular e fiscalizar o exercício da telemedicina, com base em seus atos normativos, conforme delegação da norma.

É de extrema importância frisar que a norma trata como princípios a autonomia do profissional de saúde e o consentimento livre e esclarecido do paciente, inclusive com a possibilidade de recusa, devendo aqueles que realizam a telessaúde observar uma séria de normas legais protetivas do paciente, quais sejam, Leis nºs 12.965, de 23 de abril de 2014 (Marco Civil da Internet), 12.842, de 10 de julho de 2013 (Lei do Ato Médico), 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados), 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor) e, nas hipóteses cabíveis, aos ditames da Lei nº 13.787, de 27 de dezembro de 2018 (Lei do Prontuário Eletrônico).

Como se vê, as pessoas naturais e, principalmente, as pessoas jurídicas que pretendam desenvolver atividades de telemedicina devem assegurar-se de que estão em conformidade com as diversas normas vigentes (expressamente mencionadas e implicitamente vinculadas), sendo necessária uma atuação ainda mais cuidadosa para a obtenção do consentimento ou dissentimento do paciente.

Colunista

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Vinicius Calado
Doutor (2020), Mestre (2012) e Bacharel (2000) em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Pesquisador dos Grupos de Pesquisa Linguagem & Direito e Direito e Inovação (Unicap/CNPq). . Atua como professor Assistente III de Direito Civil, Direito do Consumidor e Orientação Monográfica na UNICAP (desde 2011). É ainda coordenador do LLM em Direito Médico e da Saúde e coordenador adjunto do MBA em Blockchain e Criptoativos, ambos da Católica Business School (CBS/UNICAP). . Sócio fundador (2010) e ex-vice-presidente (2011-2013) da FEPODI - Federal Nacional dos Pós-graduandos em Direito. Advogado do Sindicato dos Médicos de Pernambuco (desde 2002), além de sócio do escritório Calado & Souza Advogados Associados. . Ex-presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/PE (2013-2015). Ex-presidente da Comissão de Direito e Saúde da OAB/PE (2016-2018). Coordenador do Núcleo de Direito do Consumidor da ESA/OAB/PE (2019).

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