Área jurídicaDestaques recentesPrática em direito da saúdeSaúde

Reajustes anuais em planos de saúde coletivos – insustentabilidade do setor e necessárias alterações no âmbito da saúde suplementar.

Inicialmente, é crucial definirmos o que é um plano de saúde coletivo – antes de adentrarmos verdadeiramente no mérito da controvérsia.

 

No que tange ao regime de contratação dos planos de saúde, temos três espécies: a) planos individuais e familiares, b) planos empresariais e c) planos coletivos por adesão[1].

 

Na modalidade individual e familiar, já há diversos anos (especialmente após a vigência da Lei dos Planos de Saúde, Lei 9.656/98) e com a regulação dos reajustes anuais pela ANS (o que se iniciou em 2002), vem sendo extinta e, igualmente há muitos anos, a enorme maioria das operadoras de saúde não mais realiza contratações nesta modalidade. Esta espécie de contratação – especialmente para planos contratados após 1999 – não possui grandes divergências no que tange ao reajuste anual. A ANS, anualmente, fixa um percentual de reajuste a ser aplicado a todos os planos desta modalidade, nacionalmente, baseado na variação de custos médico-hospitalares e na sinistralidade observada nacionalmente.

 

Maiores controvérsias, contudo, pairam sobre os planos coletivos. Estes podem ser empresariais (contratados por meio de uma empresa interposta em benefício de seus colaboradores – sejam sócios, associados ou funcionários) e os planos coletivos por adesão (estes, contratados por meio de um sindicato, associação ou órgão de classe, no qual a pessoa participante tem contato com uma administradora de benefícios para contratação de um seguro ou plano de saúde. A administradora de benefícios tem o papel de reger pelos interesses dos segurados).

 

Aqui, nos limitaremos à insustentabilidade no que tange aos coletivos por adesão.

 

Nesta situação, figuram como parte do contrato: a pessoa física, segurada. De outro lado, intermediando a contratação e zelando pelos interesses dessa pessoa física, temos a administradora de benefícios. E, na outra ponta, temos a operadora de saúde.

 

Nesse tipo de contratação não há interferência da ANS – esta não regula e nem acompanha os reajustes anuais. Isso, por que, entende-se que a administradora de benefícios zelaria pelos interesses dos segurados e, com isso, inexistiria hipossuficiência que justificasse a ingerência da ANS nesse tipo de situação.

 

Contudo, referida liberdade conferida às operadoras de saúde termina tornando o setor em questão – na modalidade de coletivo por adesão – insustentável a longo prazo. Especialmente em virtude dos altos reajustes anuais[2] aplicados pelas operadoras de saúde.

 

As principais discussões, portanto, nos coletivos por adesão tratam dos altos reajustes anuais aplicados – formando valores altos e insustentáveis pelos segurados a longo prazo, especialmente pensando que, quando falamos em reajustes de planos de saúde, devemos ter em mente o princípio da solidariedade intergeracional – ou seja, quem é mais jovem, possivelmente, tem menos sinistros e termina por fazer frente aos sinistros de todo o grupo, incluindo os mais idosos.

 

Os percentuais de referidos reajustes anuais em planos coletivos por adesão, com frequência, chegam aos 30% e em várias situações atingem patamares altíssimos, de mais de 70% em um único ano. É preocupante o cenário do setor. Mais: quem advoga há mais tempo nesta modalidade de reajuste termina por entender que inexiste qualquer comprovação de que o requisito de negociação entre a operadora de saúde e a administradora de benefícios exista no mundo dos fatos. A larga maioria das administradoras, neste cenário, não consegue comprovar que negociou os percentuais aplicados à título de reajustes anuais. Existe, no mundo dos fatos, verdadeira hipossuficiência do consumidor na maioria dos casos nessa espécie de plano. Isso por que, como dito, quem deveria zelar pelos seus interesses – a administradora de benefícios – negociando ditos reajustes, não o faz.

 

Outro ponto que chama atenção é a própria sinistralidade; nem a administradora de benefícios e nem a operadora de saúde conseguem comprovar sequer a existência da sinistralidade – e, muito menos, qual foi a verdadeira utilização que ultrapassasse o corte.

 

Com base na corriqueira ausência de informação dos segurados, em 2022, a ANS editou Resolução Normativa que traz a obrigatoriedade de comunicação dos segurados e apresentação de extratos sobre os reajustes anuais aplicados[3]. Mesmo isso não foi capaz, ainda, de compelir a operadora ao fornecimento das informações que necessitam os segurados.

 

A conclusão de quem se atualiza na área não poderia ser outra: dificilmente a operadora de saúde e a administradora de benefícios conseguem comprovar a contento a necessidade de tão altos reajustes anuais aplicados. O que leva a crer, em muitos casos, que os (altos) percentuais definidos e aplicados à título de reajuste anual são aleatórios e sem base de cálculo atuarial. Essa é a única conclusão possível para a ausência de informações e comprovações que permeiam o setor.

 

A jurisprudência (seja do Tribunal de Justiça de Pernambuco[4], seja do STJ[5]), atenta a tantas controvérsias e identificando a insustentabilidade deste setor específico da saúde suplementar, vêm flexibilizando o entendimento e admitindo que, em casos que a operadora de saúde e a administradora de benefícios não consigam comprovar a necessidade dos altos reajustes anuais aplicados, deve o reajuste anual ser substituído pelo reajuste anual determinado pela ANS para planos individuais e familiares.

 

Necessário se faz, individualmente, assim, que o usuário nesta modalidade de plano que possui dúvidas sobre a legalidade dos reajustes anuais aplicados em seu plano de saúde busque a orientação de profissionais especialistas para verificar e resguardar o seu direito. Mais: a longo prazo, diante da evidente insustentabilidade dos altos reajustes anuais aplicados, indispensável se faz uma regulação efetiva no setor, de modo a evitar, a contento, a aplicação dos reajustes anuais nos percentuais atualmente vistos – no mais das vezes aplicados aleatoriamente e sem comprovação contábil, atuarial ou embasamento de cálculo para sua aplicação.

 

Notas:

[1] O art. 16 da Lei n. 9.656/98 traz o rol de cláusulas obrigatórias em todos os contratos de plano de saúde, sendo que, em seu inciso VII, há a menção sobre a cláusula de regime ou tipo de contratação, a qual pode ser de três espécies: a) individual ou familiar; b) coletivo empresarial e c) coletivo por adesão. A regulamentação dessas modalidades de contratação é feita, atualmente, pela Resolução Normativa n. 195, de 14/07/2009. GOMES, Josiane Araújo. Contratos de planos de saúde. 3ª ed. São Paulo: Ed. Mizuno, 2023, p. 106.

 

[2] O reajuste anual é formado pelo VCMH (variação de custos médico-hospitalares), que é, por exemplo, a variação dos custos de diárias hospitalares, honorários médicos, custos de medicamentos etc acrescido da sinistralidade (que é definido como a diferença financeira entre os valores pagos pelo Segurado e o custo dos sinistros suportados pela Operadora de Saúde num certo período, objetivando manter o equilíbrio contratual. A soma de gastos do grupo não pode ser superior a uma porcentagem, que deveria ter sido definida no contrato). Assim, no momento em que os gastos ultrapassam esse percentual (definido contratualmente) ocorre a chamada SINISTRALIDADE ou desequilíbrio técnico financeiro.

 

[3] Art. 14. A operadora deverá disponibilizar à pessoa jurídica contratante de plano coletivo empresarial ou por adesão, com formação de preço pré-estabelecido, assim definidos na Resolução Normativa nº 85, de 7 de dezembro de 2004, um extrato pormenorizado contendo os itens considerados para o cálculo do reajuste conforme cláusula contratual ou estabelecido em negociação.

§ 1º O extrato pormenorizado de que trata o caput deverá ser disponibilizado com o mínimo de 30 (trinta) dias de antecedência da data prevista para a aplicação do reajuste.

(…)

Art. 15. O extrato pormenorizado de que trata o art. 14 deverá conter, ao menos:

I – o critério técnico adotado para o reajuste e a definição dos parâmetros e das variáveis utilizados no cálculo;

II – a demonstração da memória de cálculo realizada para a definição do percentual de reajuste e o período de observação; e

III – o canal de atendimento da operadora para esclarecimento de dúvidas quanto ao extrato apresentado.

Art. 16. Após a efetiva aplicação do reajuste, os beneficiários, titulares ou dependentes, poderão solicitar formalmente o extrato pormenorizado para a administradora de benefícios ou operadora, que terão o prazo máximo de 10 (dez) dias para seu fornecimento.

 

[4] Apelação cível. Plano de Saúde. Contrato Coletivo. Reajuste anual. Desrespeito ao dever de informação previsto pelo CDC. Cláusulas contratuais abusivas. Ausência de previsão da forma de cálculos dos reajustes. Cabimento da devolução simples dos valores pagos a maior. Recurso apelatório não provido por unanimidade.

I – Embora os planos coletivos não se submetam aos reajustes definidos pela ANS, eventuais aumentos por sinistralidade devem ser comprovados de forma clara, em razão do dever de informação previsto pelo Código de Defesa do Consumidor (arts. 6º, III, e 46 do CDC) e da boa-fé que deve nortear as relações contratuais, sob pena de restar caracterizada sua abusividade.

II – Restou configurado o desrespeito ao dever de informação previsto pelo art. 6°, III, do CDC, pois o contrato em questão prevê formas de reajuste totalmente obscuras, de modo a impedir a exata compreensão por parte do consumidor.

III – Não há nos autos estudos técnicos ou outros documentos capazes de justificar o reajuste anual que implicaram no aumento de 19,80% do valor do prêmio.

IV – Devidamente reconhecida a ocorrência de pagamento a maior em virtude de reajustes abusivos na mensalidade do plano de saúde da segurada, é evidente a necessidade de restituição simples dos valores indevidamente pagos, sob pena de enriquecimento sem causa por parte da operadora.

V – Recurso não provido por unanimidade.

(Apelação Cível 485234-80043317-80.2012.8.17.0001, Rel. Francisco Eduardo Goncalves Sertorio Canto, 3ª Câmara Cível, julgado em 01/02/2018, DJe 26/02/2018, grifou-se)

 

PLANO DE SAÚDE COLETIVO POR ADESÃO. CONTRATO ADAPTADO À LEI Nº 9.656/98. ESTATUTO DO IDOSO VIGENTE À ÉPOCA DA CONTRATAÇÃO. REAJUSTE FINANCEIRO. ÍNDICES ESTABELECIDOS PELA ANS PARA OS CONTRATOS INDIVIDUAIS. PARÂMETRO COMPARATIVO DE RAZOABILIDADE. USUÁRIO COM IDADE EXCEDENTE AO ÚLTIMO EXTRATO ETÁRIO. REAJUSTE POR MUDANÇA DE FAIXA ETÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE INFORMAÇÃO CLARA E ADEQUADA SOBRE A REGULARIDADE DOS AUMENTOS IMPLEMENTADOS. INAPLICABILIDADE. INCIDÊNCIA APENAS DOS REAJUSTES FINANCEIROS AUTORIZADOS PELA ANS. RECURSO DESPROVIDO.

Conquanto os reajustes dos contratos coletivos não estejam vinculados aos índices estabelecidos pela ANS para os contratos individuais e familiares, nada obsta que estes sirvam de parâmetro comparativo de razoabilidade aos aumentos praticados naquela modalidade.

No caso em apreço, além dos índices de reajustes anuais já serem nitidamente superiores aos índices aplicados para os contratos individuais/familiares no período em questão, como se pode verificar das planilhas ilustrativas e do histórico de reajuste por variação de custo pessoa física trazidos a cotejo, ainda houve em 2012 a incidência cumulativa do reajuste por mudança de faixa etária no percentual de 131,59% (maio), com o reajuste anual no percentual de 19,80% (julho), o que fez o valor total da mensalidade do plano de saúde do recorrido quase triplicar. Observa-se, ainda, da carteira de identidade do beneficiário, que à época da incidência do reajuste por mudança de faixa etária (maio/2012) este já contava com 68 anos, já tendo, portanto, ultrapassado o último extrato etário previsto nas condições gerais da apólice, correspondente a 59 anos ou mais, restando assim inaplicável o aumento, o que se torna ainda mais grave se considerado o percentual expressivamente alto imposto a tal título, seguido do reajuste anual dois meses depois. A atitude da apelante vai de encontro não só aos termos expressamente pactuados, mas sobretudo ao Estatuto do Idoso, já em vigor quando da formalização da avença, o qual rechaça os aumentos abusivos, discriminatórios, que instituam verdadeira cláusula de barreira à manutenção do vínculo contratual. Da mesma forma, a norma consumerista veda ao fornecedor de produtos ou serviços exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva e/ou elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços. De se ressaltar, ademais, não se extrair das peças processuais trazidas pela recorrente qualquer demonstração de dados numéricos como base atuarial para a majoração perpetrada no período questionado, o que sujeita a imputação dos reajustes ao puro arbítrio da seguradora, configurando-se a vulnerabilidade técnica do consumidor nesse particular, o que permite uma interpretação contratual que lhe seja mais favorável (CDC, Art. 47).

A falta de informação consistente sobre a regularidade dos acréscimos implementados impede a sua incidência ao valor das mensalidades, devendo ser mantido o entendimento esposado no texto sentencial, no sentido da aplicabilidade ao contrato exclusivamente dos reajustes financeiros anuais autorizados pela ANS.

(Apelação Cível 482064-40066879-50.2014.8.17.0001, Rel. Alberto Nogueira Virgínio, 2ª Câmara Cível, julgado em 13/03/2019, DJe 04/04/2019, grifou-se)

 

[5] RECURSO ESPECIAL Nº 1989062 – SP (2022/0062782-6) DECISÃO Trata-se de recurso especial interposto contra acórdão do TJSP assim ementado (e-STJ fl. 250): APELAÇÃO. REAJUSTE POR SINISTRALIDADE/VCMH – Plano de saúde coletivo – Reajuste do plano acima dos índices autorizados pela ANS para planos de saúde individuais e familiares – Sinistralidade/Variação dos custos médicos e hospitalares que devem ser comprovados para possibilitar a aplicação de reajuste superior àquele autorizado – Reajuste abusivo – Restituição dos valores pagos a maior – Recurso desprovido. No recurso especial (e-STJ fls. 257/275), interposto com fundamento no art. 105, III, a e c, da CF, a recorrente sustentou, além de dissídio jurisprudencial, violação dos arts. 35-E, § 2º, da Lei n. 9.656/1998, 20 da LINDB, 421 e 478 do CC/2002, argumentando que o reajuste, por sinistralidade, do plano de saúde coletivo, no presente caso, teria observado os requisitos legais para sua validade, sendo lícito. Apontou, ainda, ofensa aos arts. 489, § 1º, IV, e 1.022, II, do CPC/2015. Foram apresentadas contrarrazões (e-STJ fls. 287/294). É o relatório. Decido. Inicialmente, não há falar em contrariedade aos arts. 489, § 1º, IV, e 1.022, II, do CPC/2015, pois o Tribunal a quo pronunciou-se, de forma clara e suficiente, acerca da questão suscitada nos autos. Ao apreciar o caso, entendeu o Tribunal de origem que “afigura-se legítimo e equânime que o contrato seja reajustado de acordo com os percentuais indicados pela ANS para contratos individuais, não porque o reajuste anual para planos coletivos seja indevido, mas porque não houve demonstração clara de como se chegou aos percentuais eleitos” (e-STJ fls. 252 /253). Seria necessário o reexame dos fatos e das provas dos autos, bem como nova interpretação das cláusulas contratuais, para modificar o entendimento do TJSP e concluir que os aumentos aplicados pela empresa de saúde, em função da sinistralidade, foram devidamente justificados ante a natureza coletiva do pacto assinado. Nesse contexto, inafastáveis as Súmulas n. 5 e 7 do STJ. Além disso, o fundamento do acórdão recorrido, no sentido de que não houve comprovação da correção dos cálculos dos aumentos implementados, não foi impugnado especificamente, o que atrai o óbice da Súmula n. 283 do STF. Diante do exposto, NÃO CONHEÇO do recurso. Publique-se e intimem-se. Brasília, 30 de março de 2022. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA Relator (STJ – REsp: 1989062 SP 2022/0062782-6, Relator: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Publicação: DJ 01/04/2022)

 

 

Colunista

Avalie o post!

Incrível
4
Legal
0
Amei
3
Hmm...
0
Hahaha
0
Iris Novaes
Bacharela em Direito pela Unicap (2012). Advogada com atuação com Direito da Saúde desde 2013. Com 4 pós graduações no currículo e centenas de ações na área, além de advogar, dedico-me a ensinar estudantes e advogados a aprenderem a prática na área de direito da saúde (que considero uma das melhores para atuar).

    Você pode gostar...

    Leave a reply

    O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *