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Regimento Interno de Tribunal: quem deve editá-lo?

Por Eduardo José da Fonseca Costa*

 

Ao Instituto Pan-Americano de Direito Processual

 

I

Se houvesse um selo internacional de respeito à separação de poderes, por certo o Brasil não seria certificado. O País não tem qualquer compromisso com ela. Não apoia, não promove e não vivencia a independência e a harmonia entre os Poderes. Em tempos de ativismo judicial tresloucado, o artigo 2º da Constituição Federal de 1988 se tornou de fato letra morta. Sem embargo, nunca é demais repisar lições basilares sobre o tema. Em linhas gerais, a ideia de separação de poderes pode ser resumida a isto: quem tem o poder de criar uma determinada regra, não deve ter a última palavra sobre a interpretação dela; quem tem a última palavra sobre a interpretação de uma determinada regra, não deve ter o poder criá-la. A razão para essa divisão de funções é simples: quando um órgão do Estado acumula para si os poderes de editar regra e de ter a palavra derradeira sobre como elas devem ser interpretadas, ele tende a criar para si mais poderes do que já tem. Ele tende a se arvorar em competência inexistente, ou a usurpar competência alheia, restringindo, em não raras vezes, a liberdade dos cidadãos que lhe estão assujeitados. Em poucas palavras, ele tende ao arbítrio.

Além disso, incentiva-se o órgão a esquematizar normas de textualidade vaga a fim de que lhe seja possível flexibilizar a interpretação delas e, dessa maneira, maximizar ainda mais o seu poder. Nesse sentido, o poder de prescrever é aumentado, por vias transversas, pelo poder de interpretar. Ora, quem tem o poder de editar normas ruins, tende a submetê-las a uma interpretação ruim. O mesmo «espírito» que está em uma tarefa está nas demais. Daí por que, de um certo modo, como não poderia deixar de ser, o problema não escapou a MONTESQUIEU: «Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente» (O espírito das leis. 2ª Parte, Livro Décimo Primeiro, Capítulo VI).

 

II

Em termos ideais, o Estado-legislador deve ser competente para editar as normas que regem o funcionamento interno dos seus órgãos; contudo, a palavra final sobre a interpretação delas deve competir ao Estado-juiz. De igual forma, o Estado-administrador deve ser competente para editar as normas que regem o funcionamento interno dos seus órgãos; porém, deve competir ao Estado-juiz a palavra final sobre a interpretação delas. Entretanto, não se pode admitir que no Estado-juiz estejam reunidas tanto a competência de editar normas sobre o funcionamento interno dos seus órgãos quanto a competência de dar a palavra final sobre a interpretação delas. Para o bem da vida republicana, não é conveniente que o Estado-juiz acumule os dois poderes. Essa inconveniência gera um enorme problema, para o qual existem apenas duas soluções lógicas. A primeira delas é conferir a cada um dos tribunais judiciários a competência para a edição do seu próprio regimento interno, cabendo aos Poderes Legislativo ou Executivo a respectiva interpretação final. A segunda solução viável é conferir aos Poderes Legislativo ou Executivo a competência para a edição dos regimentos internos dos tribunais judiciários, ficando a cargo dos próprios tribunais judiciários a respectiva interpretação final.

Como não poderia deixar de ser, em um Estado democrático-parlamentar de direito legislado, somente é aceitável que esses regimentos sejam editados pelo Legislativo e, portanto, mediante lei. Ao Parlamento cabe regular, após o devido processo legislativo, o funcionamento interno dos tribunais judiciários [heterorregulação democrática]. É perigoso que um tribunal judiciário regule o seu próprio funcionamento interno mediante ato doméstico [autorregulação aristocrática], pois haveria o acúmulo indesejável das funções de prescrever e interpretar. Como se vê, o ideário republicano sugere que os regimentos internos dos tribunais não sejam dados pelo próprio Judiciário; o ideário democrático, que os regimentos internos sejam dados pelo Legislativo.

 

III

Andando na contramão de tudo isso, a Constituição Federal de 1988 atribui aos tribunais brasileiros a competência privativa para «eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos» [art. 96, I, a]. Nota-se de pronto o erro grave de engenharia político-institucional, que afasta o Poder Judiciário dos trilhos do republicanismo democrático, facilitando-lhe uma concentração temerária de poder. Regimentos internos de tribunais têm interferido desproporcionalmente na garantia constitucional da ampla defesa [CF, art. 5º, LV] e na garantia convencional da audição judicial da parte [CADH, artigo 8, 1], estreitando cada vez mais as possibilidades de sustentação oral pelos advogados.

Em um lamentável episódio, o Presidente da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, o Excelentíssimo Ministro Alexandre de Moraes, impediu o defensor de realizar sustentação oral durante o julgamento presencial do HC 233147-AgR (https://youtu.be/qp3tTBsVLQA?si=ugcQ8eirVTgBP3hd); para tanto, invocou o «princípio da especialidade» para sobrepor o Regimento Interno do STF ao Estatuto da Advocacia: o artigo 131, § 2º, do RISTF, proíbe a sustentação oral no julgamento de agravo; em contrapartida, o artigo 7º, § 2º-B, VI, do EOAB, incluído pela Lei 14.365/2022, permite a sustentação oral em agravo interposto contra decisão de relator que julga o mérito ou não conhece de habeas corpus). Como se não fosse suficiente, regimentos internos de tribunais têm limitado a sustentação oral no julgamento de agravo em matéria criminal a humilhantes 5 (cinco) minutos (!!!) [ex.: RISTJ, art. 160; RITJSP, art. 146, § 4º-A]. Em breve, os defensores criminais aprenderão a falar de afogadilho, em um ritmo rápido e peculiar, que lembrará locutores de rodeio, narradores de turfe ou políticos com curto espaço no horário eleitoral.

 

IV

O uso do regimento interno para a concentração judiciária de poder tem raízes na tradição luso-brasileira. Em uma monarquia absoluta, todo poder emana do rei. Nela, assim, os exercentes do poder jurisdicional – juízes e tribunais – são meros delegatários do monarca. Nessa hipótese, cabe ao rei dar regimento interno às suas cortes judiciárias. Todavia, no Portugal medieval, a Coroa aproveitava o mesmo ato para outorgar regimento interno aos seus tribunais e também legislar sobre diferentes temas (crimes, penas, posse, herança etc.) (sobre o tema: MENDONÇA, Manuela. O Regimento da Casa da Suplicação. O primeiro instrumento regulador da justiça em Portugal. História (São Paulo). v. 34, n. 1, p. 35-59, jan./jun. 2015). Enfim, nos regimentos internos das cortes lusitanas eram embutidas ações legiferantes. Por conseguinte, eles eram um compósito <conteúdo regimental ortotópico + conteúdo legislativo heterotópico>

No curso dos séculos, o costume se enraizou de tal modo na cultura forense que, malgrado o fim do absolutismo monárquico e o advento do republicanismo democrático, os tribunais até hoje ressoam o vício secular e, uma vez por outra, legislam por meio dos seus regimentos, não se cingindo a dispor sobre a competência e o funcionamento dos seus órgãos. Exemplo de usurpação de função legislativa foi a criação da reclamação (que é um genuíno remédio processual): após se consolidar na jurisprudência como derivação da «teoria dos poderes implícitos» (que no Brasil virou um abracadabra para se angariar ao Estado poderes extraconstitucionais), o instituto foi inserido em 02/10/1957 no RISTF dentro da competência dada pelo art. 97, II, da CF/1946. Outro exemplo são as corriqueiras previsões regimentais de correição parcial contra omissão judicial inescusável: é típico remédio processual, cuja instituição deveria caber ao legislador federal [CF/1988, art. 22, I], embora seja tratado como um exótico «remédio administrativo com repercussão processual» ou um «remédio administrativo-judiciário».

 

V

Outrossim, às vezes se assiste à usurpação regimental de funções executivas. O exemplo mais conhecido é o artigo 43 do RISTF («Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro»). Percebe-se que o STF conferiu a si uma atribuição administrativo-policial, extrapolando as competências taxativas previstas no artigo 102 da CF/1988. Na verdade, a Constituição atribui poder de investigação criminal exclusivamente à Polícia Federal [art. 144, § 1º, I], à Polícia Civil [art. 144, § 1º], às comissões parlamentares de inquérito [art. 58, § 3º] e, quanto aos crimes militares, ao oficial da ativa de posto superior ao do indiciado [art. 124, parágrafo único; CPPM, art. 7º]. Como já visto, quando um órgão acumula os poderes de editar uma norma e de ter a última palavra sobre a sua interpretação, ele tende a uma interpretação flexível para alargar os seus poderes.

Ora, no caso do artigo 43 do RISTF, a tendência se fez realidade. Sob o pretexto originário de apurar fake news sobre membros da Corte, o Inquérito 4781 tem colecionado afrontas a liberdades: a) o Presidente do STF deveria ter requisitado a instauração de inquérito à autoridade competente [RISTF, art. 43, § 1º]; b) o inquérito tem tido duração irrazoável [CF/1988, art. art. 5º, LXXVIII; CPP, art. 10; Lei 5.010/1966, art. 66; Lei 11.343/2006, art. 51]; c) só se pode indiciar quem seja autoridade com prerrogativa de foro no próprio Supremo [RISTF, art. 43, caput]; d) o relator do inquérito deveria ter sido sorteado, não designado [CF/1988, art. 5º, XXXVII]; e) tem se afrontado a SV 14, visto que as defesas não têm tido acesso amplo a provas já documentadas; f) não se está apurando crime ocorrido na sede ou dependência do STF [RISTF, art. 43, caput]; g) se após a conclusão do inquérito o PGR não promover a ação penal, um Ministro poderá ser – ao mesmo tempo – vítima, investigador, denunciador [CF/1988, art. 5º, LIX; CP, art. 100, § 3º; CPP, art. 29], recebedor da denúncia, processador e julgador.

 

VI

Perante todo o exposto, é conveniente e oportuno de constitutione ferenda que a disciplina operacional interna corporis dos tribunais seja in toto regida por lei em sentido material e formal, ou seja, por texto normativo geral e abstrato editado pelo Poder Legislativo. Os tribunais das Justiças dos Estados deveriam ser regidos por leis ordinárias estaduais; os tribunais da Justiça da União, por leis ordinárias federais (obs.: tendo em vista a multiplicidade de TREs e TRTs espalhados pelo território nacional, poderiam eles ter regimentos internos padronizados em blocos de legalidade). Em regra, o projeto de lei seria de iniciativa do respectivo tribunal. Dessa maneira, permitir-se-ia que no processo legislativo se abrissem audiências públicas para a participação de entidades representativas – OAB, associações de classe, associações de juristas etc. – com legitimidade para a apresentação de críticas ao projeto de lei, bem como para a proposição de adições, alterações e supressões. Ademais, permitir-se-ia às comissões de constituição (mediante parecer negativo) e aos chefes de poder executivo (mediante veto) o exercício de um controle preventivo sobre as eventuais inconstitucionalidades e ilegalidades do projeto (usurpações de competências legislativas e executivas, apoucamento de garantias constitucionais do cidadão em juízo, inobservância das normas procedimentais penais e extrapenais, etc.).

De uma vez para sempre, a intimidade funcional dos tribunais brasileiros precisa ser aberta ao debate público e, destarte, regida pela legalidade. A economia interna de um tribunal judiciária não é matéria de alta complexidade técnica cuja estruturação dependa de uma «expertise especial» que apenas os integrantes do próprio tribunal têm. Tampouco se trata de matéria de puro interesse interno, insondável pelo público externo. Governando-se por lei, os tribunais se republicanizam; havendo participação social no processo legislativo, eles se democratizam. Ao fim e ao cabo, é isto que se pretende jogar para dentro das cortes do País: um pouco mais de luz.

 

*Juiz Federal em Ribeirão Preto/SP. Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor de Mestrado e Doutorado da Universidade de Ribeirão Preto. Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (triênio 2016-2018). Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual. Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual

 

 

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