Transformação do Contraditório: além da bilateralidade
Por Deborah Larissa Afonso de Arruda[1], Maria Fernanda Ramos de Melo[2] e Nathaly Kaminski Marques Vieira[3].
Segundo o brocardo em latim nemo inauditus damnari potest – ninguém deve ser condenado sem ser ouvido. É com as raízes nesse entendimento que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso LV, põe o contraditório como direito. O Código de Processo Civil, em 2015, ratifica e o coloca como princípio fundamental do processo, como pode ser notado nos arts. 9 e 10, do Código. Inicialmente o contraditório surge revestido de formalidade e se resumia em “conceder às partes o conhecimento da existência de um processo e de seus atos subsequentes”, conforme aponta Santos (2011), com o passar do tempo, evoluiu para o entendimento de que o contraditório se relaciona principalmente à colaboração das partes.
Apesar de parte da doutrina utilizar contraditório e bilateralidade da audiência como sinônimos, a bilateralidade da audiência pode fazer parte do contraditório – ao se relacionar com a escuta igualitária entre as partes, mas este não se esgota nela – principalmente ao levar em conta a discussão doutrinária que envolve o conceito de bilateralidade. Por isso, no primeiro instante é preciso estabelecer o entendimento sobre “bilateralidade da audiência”, bem como o que é o “contraditório”. Apesar de não esgotar as discussões, a fixação prévia dos conceitos permite uma análise mais fluida da temática tratada.
Dessa forma, a bilateralidade da audiência refere-se ao princípio de que as partes envolvidas em um processo judicial têm o direito de serem ouvidas. Levando em conta essa perspectiva, ela se torna uma forma de manifestação do princípio do contraditório. Já o princípio do contraditório em si, busca, conforme o entendimento mais abrangente do princípio, garantir igualdade de tratamento entre as partes, assegurar que as partes envolvidas participem ativamente do processo, bem como a paridade de armas, como ressalta Castro (2024), fazendo com que influencie o curso processual. Pode-se notar a importância desse direito em decisões como a seguinte:
Com o advento do novo Código de Processo Civil, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n. 1.676.027/PR, firmou a orientação de que ‘a proibição de decisão surpresa, com obediência ao princípio do contraditório, assegura às partes o direito de serem ouvidas de maneira antecipada sobre todas as questões relevantes do processo, ainda que passíveis de conhecimento de ofício pelo magistrado. O contraditório se manifesta pela bilateralidade do binômio ciência/influência. Um sem o outro esvazia o princípio. A inovação do art. 10 do CPC/2015 está em tornar objetivamente obrigatória a intimação das partes para que se manifestem previamente à decisão judicial. A consequência da inobservância do dispositivo é a nulidade da decisão surpresa, ou decisão de terceira via, na medida em que fere a característica fundamental do novo modelo de processualística pautado na colaboração entre as partes e no diálogo com o julgador’. 3. Na hipótese há de ser aplicada tal orientação jurisprudencial tendo em vista que o art. 10 do novo Código de Processo Civil estabelece que o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício (Brasil, 2020).
Castro (2024) pontua que o princípio do contraditório pode ser denominado de outras formas, como: ampla defesa, igualdade entre as partes, bilateralidade do processo, ou audiência bilateral Tendo em mente a bilateralidade como a escuta das partes processuais, ela se torna uma manifestação do contraditório, uma vez que ninguém pode ser julgado sem ser ouvido. Entretanto, existe uma divergência doutrinária em relação ao termo “bilateralidade” como sinônimo de direito ao contraditório. Essa divergência está relacionada à limitação da existência do contraditório levando em conta apenas duas partes processuais (sentido literal da bilateralidade).
Destaca-se ainda o voto da Ministra Nancy Andrighi do Superior Tribunal de justiça perante o agravo interno nos embargos de declaração no agravo em recurso especial n.º1998603/SP, cujo relatório aborda um recurso especial interposto por HUB SERVIÇOS DE MARKETING LTDA face decisão que conheceu do agravo para dar provimento a LEMEIRA GASTRONOMIA – EIRELI. Em suma, surgiu uma ausência de intimação do réu, ocasionando uma ofensa ao contraditório, cujo voto da Ministra:
Da leitura, verifica-se que, ao contrário do disposto no acórdão, os documentos juntados às fls. 409/411 e 421/429 foram utilizadas para formar o convencimento do magistrado de origem, sendo, inclusive, julgada antecipadamente a lide, ao fundamento de que o agravante não se desincumbiu de demonstrar qualquer fato extintivo, impeditivo ou modificativo do direito da autora.
Assim, demonstrado o prejuízo, em razão da juntada de documento sem abertura de prazo para manifestação, e a ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa, ante a ausência de intimação adequada do réu para se manifestar sobre os documentos juntados pela parte contrária, os quais integraram a fundamentação do decisum (Brasil, 2022).
A doutrina atual acredita que colocar o contraditório como sinônimo de direito à bilateralidade da audiência vai está levando em consideração que as partes são apenas os sujeitos parciais (autor e réu) e assim enevoa a figura do juiz e de outros sujeitos processuais. Autores como Gentile (2009) tem esse entendimento por acreditar que o processo é “trialético”, ou seja, que o processo deve envolver o juiz de maneira não apenas arbitrária, mas coprotagonista. Santos (2011, p. 74) reforça essa mesma posição ao dizer que o magistrado tem abertura dialética para ouvir, refletir e discutir com as partes, expondo sua posição de maneira pública e fundamentada, fazendo com que não ocorram julgamentos parciais ou imotivados.
Nesse sentido, o contraditório ganha dois aspectos essenciais: o da participação e o da ciência das partes – que também pode ser chamado de princípio da vedação às decisões surpresas. É válido pontuar que o contraditório não é absoluto e existem casos de excepcionalidade, como os casos de tutelas de urgência, em que o contraditório é postergado (Santos, 2011).
O princípio do contraditório é um dos pilares do processo legal, busca garantir a igualdade entre as partes em um processo judicial (também conhecido como “paridade de armas”). Assegurando-se de que todas as partes envolvidas tenham a oportunidade de se manifestar, apresentar provas, contestar as provas da parte contrária e influenciar no entendimento do juiz responsável.
Está ligado ao direito de ampla defesa, pois atua na garantia de que as partes tenham conhecimento de todos os atos e diligências do processo, garantindo assim seu direito de resposta de uma forma eficaz. Ou seja, o contraditório vai além da realização de audiências, já que abrange todas as formas de participação das partes no processo, como a apresentação de documentos, requerimento de provas e interposição de recursos. Também está relacionado com a ideia de equilíbrio entre os poderes. Garantindo que as partes possam contestar as decisões do poder judiciário, o contraditório contribui para o controle do poder judicial e a garantia dos direitos individuais dos cidadãos. Pois quando as partes têm a oportunidade de se manifestar e de influenciar a decisão judicial, contribui para que as decisões sejam mais fundamentadas, garantindo a segurança jurídica e a confiança na justiça (Magalhães, 1999).
O contraditório também se relaciona à ideia de publicidade que é um dos princípios do direito público, já que busca assegurar que o processo seja conduzido de forma transparente e acessível ao público, permitindo que a sociedade acompanhe e fiscalize a atuação do Poder Judiciário, com ressalvas em relação a processos que ocorrem em segredo de justiça já que estes buscam preservar o direito de uma das partes envolvidas (Silveira, 2015). O princípio do contraditório apresenta diversos aspectos e concepções:
Em relação ao aspecto formal: Se pauta na necessidade de determinados procedimentos e formalidades ao longo do processo. Desde o direito de ser intimado em relação aos atos processuais, apresentar alegações, produzir provas e de recorrer das decisões. Esse aspecto formal busca garantir que as partes tenham pleno conhecimento do andamento do processo e possibilitando a participação efetiva e a paridade de armas entre elas (Araújo, 2018).
Em relação ao aspecto subjetivo: É a participação efetiva das partes no processo, exercendo seu direito de influenciar a decisão judicial. Se manifestando e influenciando o convencimento do juiz dentro dos limites legais. Ou seja, o aspecto subjetivo busca assegurar que as partes tenham não apenas a oportunidade de se manifestar, mas também a capacidade de influenciar o resultado processual.
Em relação à concepção dialética: O princípio do contraditório é um diálogo entre as partes e o juiz, no qual cada uma pode apresentar suas razões e argumentos, buscando convencer o juiz da veracidade de suas alegações. Nessa concepção, o contraditório é entendido como uma série de procedimentos que garante um diálogo para se chegar a uma decisão justa.
Em relação à concepção cooperativa: As partes são vistas como colaboradoras do processo judicial, e não como uma competição entre partes opostas. O contraditório é entendido como uma forma de contribuição das partes para a descoberta da verdade, possibilitando a formação de uma decisão justa, através da apresentação de fatos e argumentos.
Em relação à concepção instrumental: O contraditório é visto como um instrumento para garantir a eficácia das decisões judiciais. Funcionando como um meio para o controle do poder estatal, assegurando-se de que as partes tenham a mesma oportunidade de influenciar a decisão que afeta seus direitos e interesses (Machado, 2014).
Outrossim, Castro (2024) pontua que o contraditório precisa ir além da bilateralidade e baseia seus argumentos não apenas na figura do juiz, mas no próprio entendimento de partes processuais. Uma vez que ao se pensar o processo contando com fatores como a intervenção de terceiros e demais atores sociais que impactam nas decisões processuais, romper-se-ia com a ideia de que existem apenas duas partes processuais.
Como recurso argumentativo que corrobora com o entendimento de que o contraditório é não apenas a bilateralidade da audiência, tem-se o modelo cooperativo do processo, proposto por Mitidiero (2015) e citado por Castro (2024, p.6) ou ainda o policentrismo que encara o contraditório como uma forma participativa dos sujeitos processuais – que ultrapassa apenas as partes consagradas do processo.
O modelo cooperativo do processo representa uma abordagem contemporânea e consensualista do processo, indo de encontro com o modelo tradicional e bilateral do processo. O modelo colaborativo baseia-se na ideia de que o processo deve ser encarado como uma de colaboração entre as partes e o juiz. Ele propõe um terceiro que facilite a resolução do litígio e que faça parte da discussão, bem como que a cooperação é um requisito fundamental para o pleno desenvolvimento do contraditório (Luengo e Rodrigues, 2015).
Já a ideia de policentrismo processual diz respeito à retirada dos sujeitos (autor e réu) como centro processual exclusivo. Essa abordagem tem em mente que o processo é um espaço de colaboração, onde interesses divergentes podem ser reconciliados; ele está relacionado com a autonomia das vontades das partes, a cooperação entre os envolvidos no processo e a efetividade na resolução de litígios.
Outro argumento utilizado pela doutrina é a crescente participação no processualismo brasileiro. Essa abordagem refere-se à valorização e promoção da participação ativa das partes no processo judicial. Essa teoria diz respeito à concepção de que o processo não deve ser conduzido apenas pelo juiz, mas que deve ser um espaço em que as partes possam influenciar o processo. Segundo Castro (2024), as partes também incluem o amicus curiae (previsto no art. 138 do CPC), bem como terceiros não interessados (art. 966, V e art. 967, II do CPC), ele ainda complementa que:
Por fim, o art. 1.038, II, dispõe que o relator poderá designar audiência pública e ouvir pessoas com experiência e conhecimento da matéria a ser julgado pelo procedimento de recursos especiais e extraordinários repetitivos. O direito de participação disposto no CPC deve ser interpretado sistematicamente a partir da cláusula geral de participação do art. 138. Assim, nas hipóteses em que o código dispõe que o relator “poderá” ouvir, prepondera o direito de participação se a demanda tiver objeto matéria relevante e com forte repercussão social. Embora o direito de participação não tenha sólido lastro teórico e prático em nossa cultura jurídica, é certo que há evidências, na prática judiciária, que o direito de participação vem sendo utilizado pela sociedade civil e pelas instituições jurídicas, o que indica que há uma transformação em curso no processualismo brasileiro (Castro, 2024, p. 9 – grifo nosso).
Do trecho acima retira-se o entendimento de que o processo visto sob a perspectiva de bilateralidade de audiência, contando apenas com a oitiva do autor e do réu, não será sempre suficiente. Atualmente, o Direito Processual também encara a chamada multiparidade processual que muito se relaciona a participação no processualismo ao reconhecer que além do autor e réu (no sentido bilateral), outras partes existem e podem ser afetadas pelo resultado do processo, ou ter interesse na questão. Ela reconhece a complexidade das questões jurídicas e os múltiplos interesses envolvidos (Eid, 2019).
Dessa maneira conclui-se que o Direito Processual Brasileiro abrange o entendimento, dando ao contraditório um sentido mais amplo e democrático – o de ciência e o de participação de todos os envolvidos processualmente, incluindo amicus curiae, terceiros não interessados, técnicos, especialistas, etc. Não sendo apenas o direito da bilateralidade de audiência – apesar dela ser uma manifestação do contraditório.
Notas e Referências:
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[1] Deborah Arruda, bacharelanda em Direito pela Universidade Frassinetti do Recife. E-mail para contato: deborahlarissafonso@grad.fafire.br.
[2] Maria Melo, bacharelanda em Direito pela Universidade Frassinetti do Recife. E-mail para contato: mariafernandaramos@grad.fafire.br.
[3] Nathaly Vieira, bacharelanda em Direito pela Universidade Frassinetti do Recife. E-mail para contato: nathalykaminskimarques@grad.fafire.br