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Dispensa do adiantamento das custas processuais para cobrar honorários advocatícios em juízo (Lei nº 15.109/25): garantia ou privilégio?

Por Alexandre de Paula Filho*

 

Não está errado quem diz que ser advogado no Brasil não é fácil. Ainda se trata de uma profissão muito maltratada em diversos ambientes e aspectos. Taxada de adjetivos que remetem à esperteza no sentido ardiloso e desonesto da palavra, a classe ainda vê garantias diariamente vilipendiadas ou sonegadas nos tribunais e repartições públicas e privadas, tendo ainda muitos integrantes (mormente aqueles vinculados aos grandes escritórios) recebendo remunerações e condições de trabalho injustas – quiçá indignas – para uma formação tão exigente, sem contar com a luta contra a desvalorização do próprio ofício, que exige tantas vezes demonstrar aos clientes a complexidade do trabalho que se empreende a fim de esclarecer que é justo o que se cobra.

Muito se luta por garantias para a classe. Garantias essas que servem como escudos que protegem a classe face a abusos de poder que mitiguem o exercício da profissão ou obriguem o advogado a exercê-la em condições que firam a sua dignidade enquanto pessoa e profissional. Um exemplo de garantia do advogado é o direito à sustentação oral – uso propositalmente este exemplo num contexto de virtualização dos julgamentos e previsão de sustentações orais assíncronas pelo STJ e diversos tribunais[1].

A pretexto de se criar mais uma garantia à classe, em 13 de março deste ano, foi sancionada a Lei nº 15.109/25. A lei altera o Código de Processo Civil em vigor para acrescentar o §3º ao art. 82, com a seguinte redação:

§ 3º Nas ações de cobrança por qualquer procedimento, comum ou especial, bem como nas execuções ou cumprimentos de sentença de honorários advocatícios, o advogado ficará dispensado de adiantar o pagamento de custas processuais, e caberá ao réu ou executado suprir, ao final do processo, o seu pagamento, se tiver dado causa ao processo.

Inserido na seção destinada às despesas processuais, a nova disposição determina que, desde a vigência da lei, a classe advocatícia não mais precisa adiantar custas processuais para cobrar judicialmente seus honorários. Trata-se, de fato, de uma garantia?

Festejada por alguns, criticada por outros, tem-se visto as seccionais movimentando-se para garantir a plena observância da regra. Não poderia ser diferente: por mais oportunas que sejam, as críticas cabíveis a um dispositivo legal não podem dar azo ao seu descumprimento, ao menos enquanto estiver vigente no ordenamento jurídico. No entanto, quando há críticas pertinentes, elas precisam ser enfrentadas, a fim de que o debate não se dilua perante interesses corporativistas.

Sobre o novo §3º do art. 82 do CPC, surge o questionamento quanto à sua constitucionalidade. A norma em questão estaria a ferir a garantia de isonomia, prevista no caput do art. 5º da nossa Carta Magna ao fazer uma indevida distinção entre a classe dos advogados em relação aos demais profissionais? Reflitamos a respeito.

Como se sabe, o direito fundamental à isonomia comporta suas dimensões formal e material. A dimensão material enuncia a possibilidade de tratamentos desiguais entre pessoas ou grupos desiguais, a fim de resguardar direitos cujo gozo resta maculado por tais desigualdades identificadas no caso concreto.

No direito processual, a isonomia em seu sentido material comporta a promoção de tratamentos distintos, a fim de viabilizar o exercício de direitos e faculdades no processo. Um exemplo disso é o direito à gratuidade judiciária, previsto nos arts. 98 a 101 do CPC, que, a propósito, emana do direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita, enunciado no mesmo art. 5º (inciso LXXIV).

Vejamos como o CPC estatui a gratuidade judiciária:

Art. 98. A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei.

Com essa regra, pode-se tratar de modo desigual pessoas a partir de uma situação específica a ser verificada no caso concreto: a insuficiência de recursos. Isto é, algumas pessoas deverão pagar as despesas processuais para provocar a atuação do Judiciário enquanto outras não. Eis a isonomia material: o tratamento desigual para igualar (leia-se: garantir o direito a todos). A distinção que se faz por meio da gratuidade judiciária parece bastante razoável na medida em que se destina a corrigir desigualdade material (financeira) que pode impedir o acesso a direitos.

Nesse sentido, cumpre relembrar a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello acerca do que deve o legislador observar a fim de que um discrímen legal seja convivente com a isonomia:

(a) Que a desequiparação não atinja, de modo atual e absoluto, um só indivíduo.

(b) Que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de Direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas residentes, diferençados.

(c) Que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles estabelecida pela norma jurídica.

(d) Que, in concreto, o vínculo de correlação suprarreferido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem público.[2]

Quanto ao último ponto, o autor ainda faz a ressalva de que “não é qualquer diferença, conquanto real e logicamente explicável, que possui suficiência para discriminações legais”. Nesse sentido, não basta haver nexo entre a diferença e o tratamento diferenciado; exige-se, além disso, que a distinção seja constitucionalmente pertinente[3].

Percebe-se que o direito à gratuidade judiciária visa enfrentar situação fática que efetivamente prejudica o gozo de um direito (ausência de recursos financeiros identificável no caso concreto), fazendo uma distinção ampla, não constituindo privilégio de pessoa ou grupo específico. Ademais, a distinção é ajustável para corrigir mais efetivamente a desigualdade, uma vez que pode ser concedida parcialmente[4].

Difere desse perfil a nova disposição do CPC. O tratamento dado parece não corrigir problema de isonomia, por dois simples motivos: a) a ausência de isonomia não se verifica em abstrato, e; b) o tratamento diferenciado não tem nexo de causalidade com a suposta distinção.

Em a), tem-se que, abstratamente, não há desigualdade entre os advogados e demais profissionais ao gozo do direito fundamental de acesso à justiça por razões econômicas. No caso concreto, essas desigualdades podem existir, e já se tem um antídoto para isso: a gratuidade judiciária e suas derivações (gratuidade parcial e parcelamento de despesas). Ademais, eventuais desigualdades não guardariam pertinência com a classe profissional, mas com a insuficiência de recursos de cada pessoa. Portanto, se inexiste desigualdade, também não subsistem razões para que se proceda a tratamentos diferenciais.

Em b), considerando-se que a) não procede (isto é, que há desigualdade entre advogados e demais classes profissionais), o tratamento dispensado na nova lei não corrige essa desigualdade, por qualquer motivo que seja. Por exemplo, se pensarmos que o fundamento é que o advogado é essencial à Justiça (art. 133, CF), o que se supõe autorizar tratamento distinto em relação a outros profissionais liberais, é de se questionar: a medida legislativa corrige problema relacionado a isso? Sem ela, verifica-se (empiricamente) haver prejuízos à classe? Há, efetivamente, advogados que deixaram de cobrar judicialmente seus honorários em razão de entraves legais anteriores? Tem-se negado a gratuidade judiciária a advogados em estado de insuficiência de recursos nas ações de cobrança de honorários? A resposta positiva a esses questionamentos poderia autorizar medidas legislativas corretivas de uma suposta desigualdade.

O caráter essencial do advogado se garante conferindo-lhe as ferramentas necessárias ao exercício de sua profissão. Observação de todas as garantias do Estatuto e voz ativa perante os tribunais e demais instituições onde atuar, remuneração justa, formação e capacitação de qualidade contínuas.

Portanto, não se visualiza no art. 82, §3º, CPC uma garantia. Verifica-se, em verdade, um privilégio, uma vez que, ou não há uma desigualdade (leia-se violação ao art. 5º, caput, da CF), ou, se houver, ela não é corrigida por meio da regra em questão.

 

Notas e Referências:

*Doutor e Mestre em direito pela Unicap, advogado, professor universitário e diretor de Comunicação Social da ABDPro.

[1] Nesse sentido, temos a Resolução STJ/GP nº 03, de 15 de janeiro de 2025. Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/server/api/core/bitstreams/8c2ed26c-e6f4-48bf-9c01-9d0380913a44/content. Acesso em 11 abr. 2025.

[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 4. ed. Salvador, JusPODIVM, São Paulo, Malheiros, 2021, p. 41.

[3] Ibidem, p. 42.

[4] “Art. 98. § 5º A gratuidade poderá ser concedida em relação a algum ou a todos os atos processuais, ou consistir na redução percentual de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.” Ainda existe a possibilidade de se parcelar as despesas processuais, o que possibilita a adaptabilidade da correção da isonomia, desfazendo um juízo binário (concede ou nega): “§ 6º Conforme o caso, o juiz poderá conceder direito ao parcelamento de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.”

 

 

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