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A imparcialidade subjetiva multidirecional do árbitro

Por Alberto Jonathas Maia

 

Não se trata, aqui, de instaurar uma cruzada moralista ou de promover uma higienização impossível do ambiente arbitral. A proposta não é erguer um tribunal de suspeições, mas consolidar uma cultura institucional em que a imparcialidade seja compreendida como dever de esforço contínuo — não como estado presumido. Reconhecer a complexidade dos vínculos subjetivos, nomear os vieses, discutir as zonas de risco e exigir maior transparência não é subverter o sistema: é fortalecê-lo por dentro, não apenas diante das partes e de seus advogados, mas perante o próprio mercado, que cada vez mais exige integridade procedimental como condição para confiar capital, reputação e estratégia à jurisdição arbitral. Trata-se de deslocar a lógica da confiança tácita para a da confiança construída e auditável.

Pois bem, a imparcialidade subjetiva na arbitragem não se encerra na ausência de interesse financeiro direto ou no cumprimento formal de cláusulas de disclosure. Ela se desdobra em múltiplas direções – verticais, horizontais e oblíquas –, refletindo uma arquitetura relacional complexa entre árbitros, partes, advogados, coárbitros, peritos e instituições. Não se trata apenas de julgar com equidistância, mas de parecer julgar com equidistância em meio a uma rede de significados sociais, acadêmicos e profissionais.

Como falei em outra oportunidade < https://encurtador.com.br/c3e5Q> que o Código de Processo Civil brasileiro, em seus artigos 144 e 145, ainda opera em um modelo binário, que presume imparcialidade salvo prova em contrário, com foco em impedimentos e suspeições tipificados. É um modelo linear, fundado em vínculos identificáveis: parentesco, amizade íntima, relação econômica direta. Mas a arbitragem, por sua própria natureza contratual e transnacional, não se satisfaz com esse modelo.

A realidade do mercado arbitral é marcada por ciclos de nomeações repetidas, coautorias acadêmicas, vínculos institucionais e participações em bancas conjuntas. Esses elos não constituem, por si só, impedimentos formais, mas geram o que a doutrina contemporânea chama de “dúvida razoável” (justifiable doubt) – aquela que um terceiro razoável, informado dos fatos, poderia nutrir.

A multiplicidade de direções a partir das quais a imparcialidade do árbitro pode ser afetada exige uma compreensão relacional do fenômeno. Não é apenas a ligação vertical com as partes que compromete a imparcialidade do julgador. Relações diagonais com os advogados, horizontais com coárbitros, e concêntricas com instituições e ambientes profissionais são igualmente perturbadoras. A imparcialidade, aqui, não reside na ausência de interesse imediato, mas na dissolução de qualquer vetor de influência perceptível.

As IBA Guidelines estruturam os potenciais conflitos de interesse em quatro listas com gradações distintas de risco. A Lista Vermelha de Situações Irrenunciáveis contempla casos em que a parcialidade é manifesta e não pode ser afastada, como quando o árbitro é parte no litígio. Já a Lista Vermelha Renunciável abrange situações graves, mas que podem ser superadas se todas as partes, plenamente informadas, concordarem com a nomeação. A Lista Laranja reúne hipóteses intermediárias, nas quais há uma “dúvida justificável” sobre a imparcialidade, exigindo revelação, mas não impedindo automaticamente a atuação do árbitro. Por fim, a Lista Verde contém casos em que não há necessidade de divulgação, pois os vínculos são tidos como irrelevantes do ponto de vista da independência e da aparência de imparcialidade. Trata-se, em suma, de um sistema de triagem ética baseado na percepção razoável de risco.

A primeira de alguma dessas situações encontra-se na chamada “repetição silente”. Um árbitro que, nos últimos três anos, foi nomeado sucessivas vezes por um mesmo escritório – digamos, oito vezes, sendo quatro para o mesmo cliente – dificilmente se manterá incólume à suspeita. Ainda que não haja vínculo contratual direto, a reincidência cria um laço que transcende a imparcialidade. O CPC, em sua literalidade, não contempla essa hipótese. Já as IBA Guidelines, no item 3.1.3 da Lista Laranja, exigem sua revelação expressa, justamente por reconhecerem que há, nesse padrão, uma forma velada de dependência econômica e simbólica. Trata-se de uma imparcialidade afetada não por ação, mas por frequência.

Em outro vértice da imparcialidade multidirecional, emerge a coparticipação acadêmica. Quando um árbitro e o advogado de uma das partes compartilham, com alguma regularidade, atividades acadêmicas ou intelectuais – coautorias, organização de eventos, participação em mesas redondas ou cursos –, constrói-se um ambiente de afinidade cognitiva que, mesmo sem remuneração, gera assimetria. A percepção de alinhamento doutrinário é tão sensível quanto a de dependência financeira. Conforme a IBA Guidelines (item 3.1.5), tais circunstâncias também devem ser reveladas. Aqui, o risco é o da identificação afetiva, que compromete o distanciamento exigido de um julgador.

A imparcialidade subjetiva também se fragmenta na relação entre os próprios árbitros. Em procedimentos em que dois ou mais membros do tribunal já atuaram juntos em diversos painéis, ou participaram de grupos de trabalho arbitral, surge uma relação de confiança mútua que pode se tornar disfuncional. Essa proximidade gera o risco de efeito cascata: um árbitro hesita em divergir de outro com quem compartilha repetidamente espaços decisórios. O item 3.3.2 das IBA Guidelines orienta que essas situações devem ser reveladas quando reiteradas. No plano multidirecional, a imparcialidade não é contaminada apenas pela parte, mas pelo próprio ambiente deliberativo.

A dimensão performativa da imparcialidade ganha contornos ainda mais complexos nos momentos que escapam ao protocolo formal – como as conversas prévias ou posteriores à audiência. Quando um árbitro, inadvertidamente ou não, estabelece contato informal com apenas um dos advogados fora da sala de audiência, ainda que em tom cordial, compromete a simetria perceptiva. O problema não está no conteúdo do diálogo, mas na exclusividade da interação. A imparcialidade subjetiva é também uma forma de presença. E onde há assimetria na convivência, há, inevitavelmente, ruído institucional. As IBA Guidelines, embora não tipifiquem esse caso, alertam para o risco de contatos pessoais desbalanceados.

Em outro caso típico, um árbitro que foi sócio de um escritório que atualmente representa uma das partes é nomeado para integrar o tribunal. Ele não atua mais na banca e não tem qualquer participação societária ou econômica no atual contrato. Ainda assim, a sua origem profissional – enquanto ex-sócio fundador, por exemplo – carrega consigo um capital simbólico. A separação jurídica não apaga o lastro institucional. A imparcialidade, nesse caso, exige a revelação do vínculo pretérito, como disposto nas IBA Guidelines (itens 2.3.5 e 2.3.6 da Lista Vermelha Renunciável), pois o laço residual entre pertencimento e expectativa persiste, mesmo após a cisão formal.

Nesses casos, a imparcialidade não se abala pela ação, mas pela memória: o que o árbitro representou, com quem compartilhou bancas, quem o convidou reiteradamente, quem o formou profissionalmente. A imparcialidade subjetiva, assim, é também memorial.

A normatividade vigente — seja na LArb, seja no CPC — permanece refratária à dimensão cênica da jurisdição privada. Nenhuma dessas normas dispõe sobre o tom de voz do árbitro, sua expressão facial durante a instrução, ou a cadência das intervenções. A imparcialidade, assim, se dissipa naquilo que as regras não enxergam: o comportamento. A lacuna normativa é eloquente. E é justamente nessa omissão que os vieses inconscientes se instalam com mais desenvoltura.

Algumas câmaras arbitrais, mais sensíveis à sofisticação da função jurisdicional, têm adotado códigos de conduta que orientam sobre posturas, condutas extraprocessuais e até mesmo sobre o “clima” da audiência. Não se trata de fetichismo formalista. Trata-se de reconhecer que a autoridade do árbitro se constrói por camadas: a do conhecimento técnico, a da independência subjetiva, e, por fim, a da imparcialidade estética — aquela que se manifesta na linguagem corporal, na gestão da audiência e na modulação da autoridade.

A imparcialidade subjetiva multidirecional se desfaz por acúmulo de fragmentos. Quando o árbitro demonstra afinidade visível com o estilo retórico de um advogado, quando sua linguagem verbal se alinha com os jargões de uma das bancas, ou quando adota como premissa dogmática o entendimento defendido em parecer por professor com quem partilha seminários, o viés de confirmação se instaura. Não é preciso um vínculo direto para que a suspeita se justifique. Basta a convergência reiterada de microinterações.

O risco é que tais convergências, ao escaparem à regulação, ativem vieses cognitivos profundos. O viés de grupo, por exemplo, conduz o árbitro a confiar mais nos profissionais que compartilham sua formação, sua linguagem e sua experiência institucional. O status quo bias faz com que ele hesite em contrariar decisões anteriores proferidas por colegas com os quais compartilha painéis frequentes. O viés de confirmação cristaliza, desde as alegações iniciais, uma narrativa que se ajusta à sua expectativa de coerência. Contra esses desvios, a única profilaxia é a autovigilância contínua.

A mitigação desses riscos não é monopólio do árbitro. Ela começa na nomeação. Os advogados, ao indicarem árbitros, devem explicitar suas conexões, revelar experiências anteriores, e abster-se de sugerir nomes com os quais partilham afinidades estratégicas não declaradas. A imparcialidade arbitral não é um dado — é um projeto intersubjetivo que se inicia muito antes da audiência inaugural.

O verdadeiro árbitro imparcial não é aquele que nega os vínculos, mas aquele que os reconhece e os expõe. A transparência, aqui, não enfraquece a autoridade — a consolida. O julgador que revela ter atuado como coautor de artigo com o advogado da parte, ou que confessa ter proferido palestra patrocinada por empresa do mesmo grupo econômico, não se desqualifica: demonstra compromisso com a arquitetura institucional da confiança.

Alerto que a imparcialidade subjetiva multidirecional não é um capricho doutrinário, mas uma exigência estrutural de legitimidade. Em um mercado arbitral marcado por assimetrias informacionais, redes de sociabilidade opacas e circulação restrita de julgadores, sua observância tornou-se condição de sobrevivência institucional. Um árbitro que ignora essa lógica talvez ainda sirva à solução de litígios individuais, mas já não serve à sustentação do modelo. A densidade desse imperativo advém da constatação de que o árbitro está imerso em um ecossistema relacional, profissional e econômico altamente interconectado, no qual sua imparcialidade precisa irradiar-se em múltiplos planos simultâneos, e não apenas no eixo vertical tradicional que o opõe às partes. Diferentemente do juiz estatal, que emerge da jurisdição imposta, o árbitro é produto de uma construção consensual e privada, razão pela qual deve ser mais transparente, mais contido e mais vulnerável ao controle simbólico — sob pena de transformar o que deveria ser jurisdição em mera gestão de aparência.

Pois bem.

No plano horizontal, a questão torna-se ainda mais espinhosa. Os coárbitros e os secretários do tribunal compartilham com o julgador um espaço de deliberação institucional contínuo. Quando há vínculos reiterados de atuação conjunta, como em múltiplos painéis arbitrais ou comissões institucionais, é natural o surgimento de deferência implícita, efeitos de alinhamento e redução da dissidência. A confiança construída na convivência repetida pode se converter, sem controle, em cumplicidade decisória. A imparcialidade subjetiva horizontal, nesse contexto, não se compromete pelo desejo de favorecer, mas pela inércia de não contrariar. O viés de grupo, por exemplo, leva o julgador a valorizar mais os argumentos de colegas com os quais compartilha pertencimento institucional ou afinidade profissional. O viés da ancoragem pode fazê-lo aderir prematuramente à visão do presidente do tribunal — especialmente se já tiverem decidido juntos em outros casos. O viés de autoridade reduz a autonomia argumentativa diante de coárbitros com mais senioridade ou reputação. Já o viés da reciprocidade, sutil mas potente, desestimula o dissenso futuro quando houve deferência no passado. A confiança construída na convivência repetida pode se converter, sem controle, em cumplicidade decisória. A imparcialidade subjetiva horizontal, nesse contexto, não se compromete pelo desejo de favorecer, mas pela inércia de não contrariar — uma neutralidade fatigada, rendida à dinâmica relacional.

No plano vertical, a imparcialidade exige do árbitro um distanciamento efetivo em relação às partes e seus advogados. Embora seja intuitivo que o julgador não deva manter vínculos contratuais, afetivos ou econômicos com os litigantes, é nas zonas de ambiguidade relacional que os riscos mais sutis se concentram: consultorias prestadas no passado a empresas do mesmo grupo econômico, pareceres oferecidos em disputas conexas, atuação conjunta em conselhos ou comissões, e até episódios de convivência social reiterada. A alegação recorrente de que ‘não há relação direta com a parte’ revela-se insuficiente, pois ignora que, no plano da subjetividade, a influência raramente se apresenta de forma explícita — e que, na prática, são os advogados que protagonizam as nomeações, moldando com frequência o perfil dos julgadores. É justamente a aparência de equidistância que se vê erodida quando o julgador transita entre campos de familiaridade prévia não revelados.

No plano diagonal, o foco recai sobre os demais sujeitos da arbitragem: peritos, testemunhas e pareceristas. Quando mantém vínculos com peritos técnicos que já participaram de arbitragens anteriores sob sua relatoria, pode naturalizar teses e conclusões como “confiáveis” sem o devido distanciamento crítico. Mesmo no tocante a testemunhas e pareceristas, relações acadêmicas, institucionais ou editoriais podem produzir viés de confirmação, levando o julgador a reforçar expectativas prévias ou a desprezar depoimentos que contrariem sua intuição inicial. O perito pode exercer sobre o árbitro uma influência cognitiva sutil, ativando o viés de autoridade, ao projetar expertise incontestável; o viés de deferência epistêmica, ao oferecer soluções técnicas com linguagem conclusiva; e o viés de familiaridade, quando há histórico de colaboração que reforça a confiabilidade percebida, mesmo sem fundamento crítico. O árbitro, em tais situações, não decide contra as provas — mas a partir de uma predisposição que antecede a prova.

Não se deve negligenciar ainda o papel do secretário do tribunal arbitral, cuja presença costuma ser percebida como neutra, mas que detém enorme poder de organização interna, gerenciamento da dinâmica procedimental e, não raro, acesso privilegiado às minutas. Se esse profissional tiver vínculos com as partes, os advogados ou os coárbitros — seja por trabalho anterior, sociedade desfeita, ou mesmo por afinidade institucional com escritórios envolvidos —, sua atuação pode comprometer não só a estética da imparcialidade, mas o próprio equilíbrio funcional do procedimento. A imparcialidade subjetiva multidirecional, portanto, não se limita ao árbitro: ela se projeta sobre toda a estrutura auxiliar que o cerca.

É precisamente por atuar em um ambiente relacional denso, marcado por múltiplos vetores de influência — com partes, advogados, coárbitros, peritos e demais sujeitos do processo — que a arbitragem exige do julgador essa imparcialidade subjetiva multidirecional. Sem ela, o sistema corre o risco de reproduzir assimetrias invisíveis sob a aparência de imparcialidade formal. Garantir essa vigilância em todas as direções é sustentar a confiança do mercado na arbitragem como um espaço técnico, ético e institucionalmente confiável.

Por fim, essa configuração relacional não é apenas uma questão de fairness contratual, mas de conformidade constitucional mínima. A imparcialidade é o núcleo duro do devido processo legal (art. 5º, incisos XXXV, LIV e LV da Constituição Federal), é garantia de integridade decisória. Ao assumir essa cláusula como norte, a arbitragem brasileira não se aproxima do Judiciário — ela se emancipa enquanto jurisdição alternativa, dotada de confiabilidade própria. Reconhecer e regular esse multidirecionamento não desorganiza a arbitragem; ao contrário, a fortalece como espaço legítimo de julgamento em contextos de assimetria estrutural.

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