A relativização do enunciado n. 385 da Súmula de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
A relativização do enunciado n. 385 da Súmula de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em razão de múltiplas inscrições indevidas do consumidor nos cadastros de proteção ao crédito: dano moral in re ipsa, desvio produtivo do consumidor e litisconsórcio passivo facultativo.
De acordo com a reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a inscrição indevida do nome do consumidor em cadastro de inadimplentes configura dano moral in re ipsa.[1] A caracterização do dano moral in re ipsa “prevê a dispensa de prova do efetivo prejuízo a depender da comprovação do direito violado. A partir da aplicação dessa teoria, definiu-se que o efeito da presunção ocorreria normalmente com a violação de direitos da personalidade”.[2] Assim, em razão da violação a direitos da personalidade do consumidor pessoa física (direito ao nome, direito a honra, direito a imagem, etc) causada pela inscrição indevida promovida por determinados fornecedores, resta presumido o dano moral, dispensando-se a dilação probatória em relação a esta questão.
Ademais, o dano moral pode também ser agravado em razão do chamado desvio produtivo do consumidor infligido ao consumidor negativado indevidamente. Sabe-se que os bens jurídicos são caracterizados como coisas que podem integrar o objeto de direitos. Nesta toada, a doutrina contemporânea considera que:
o tempo, conectado aos substratos da liberdade individual e da solidariedade social, constitui-se em bem juridicamente tutelado na sociedade contemporânea, irradiando-se diretamente da dignidade da pessoa humana. Em consequência, sua lesão pode gerar efeitos patrimoniais ou morais, passíveis de reconhecimento à luz do balanceamento das circunstâncias aferíveis em concreto pelo intérprete.[3]
Para o consumidor, o tempo representa sua vida e deve ser empregado em atividades de sua preferência, e não para a “resolução de problemas de consumo aos quais não deu causa”. [4] Ora, o dano que decorre da injusta e indevida privação do tempo útil do consumidor reside na restrição da faculdade do consumidor decidir como utilizará seu tempo útil. Destarte, o consumidor que foi levado pelo fornecedor a “afastar-se das suas atividades de preferência para solucionar um problema de consumo é privado dessa liberdade. E nessa privação, quando abusiva, reside o dano”. [5]
Ora, evidencia-se o dano moral em razão do desvio produtivo do consumidor em razão de todo o tempo despendido pelos consumidores ao procurar órgãos de proteção ao crédito (SPC, SERASA, etc) para obter a certidão da negativação indevida, reuniões com os advogados, contatos com as empresas demandadas, etc.
Contudo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou entendimento em sua Súmula de jurisprudência dominante (enunciado n. 385) no seguinte sentido: “Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento”.
A leitura apressada do enunciado n. 385 da Súmula do STJ poderia levar a conclusão equivocada no sentido de que o fato de existir mais de uma anotação indevida de determinado consumidor constitui impedimento à concessão da indenização por danos morais. Tal compreensão pode levar a julgamentos teratológicos, que denegam indenização por danos morais em situações nas quais se demonstra que as diversas anotações realizadas tem origem fraudulenta; inexistindo dívida que autorize o registro do consumidor no cadastro de inadimplentes.
Neste sentido, é de se louvar a atual jurisprudência do STJ no sentido de flexibilizar a aplicação do enunciado n. 385 da Súmula do STJ. Veja-se neste sentido os seguintes precedentes: a) Recurso Especial n. 1.704.002 – SP, Terceira Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgamento em 11.02.2020; b) Recurso Especial-RO 1.647.795/RO, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 05.10.2017.
O Recurso Especial n. 1.704.002 – SP, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, trata de ação declaratória de inexistência de débitos com pedido de compensação por danos morais em face de Banco Bradesco Cartões S/A. No primeiro grau, o juízo julgou parcialmente procedente o pedido; reconhecendo a inexistência do débito e denegando indenização por danos morais em face da preexistência de anotações no cadastro de inadimplentes. Mas, em razão da preexistência de anotações, o Tribunal de Justiça de São Paulo negou provimento a apelação interposta. Em razão disto, a parte autora interpôs recurso especial alegando que o enunciado n. 385 da Súmula do STJ é inaplicável ao caso, vez que as outras inscrições preexistentes são indevidas e estão sob questionamento em juízo. Alegou ainda que o dano moral é in re ipsa; e que é da instituição financeira o ônus da prova de que as anotações preexistentes são devidas.
De acordo com a Ministra Nancy Andrighi, está correta a compreensão do TJSP no sentido de presumir legítima a inscrição realizada pelo credor junto aos cadastros de inadimplentes até o reconhecimento judicial definitivo. Contudo, reconhece também que este entendimento pode colocar o consumidor em situação desfavorável e de difícil solução, especialmente quando há o ajuizamento de ações simultâneas ou em curto espaço de tempo; posto que o reconhecimento do dano moral em cada uma das ações dependeria do trânsito em julgado das demais, não sendo possível a imposição do dever de indenizar por danos morais até o deslinde definitivo das demandas em que a regularidade das inscrições está sendo debatida.
Para a Ministra Nancy Andrighi, a situação poderia ter sido evitada com o ajuizamento de única ação contra os diversos réus em litisconsórcio passivo, nos termos do art. 113, III do Código de Processo Civil, em vista da “afinidade das questões por pontos comuns de fato e de direito. Nessa circunstância, as demandas teriam sido julgadas conjuntamente, evitando-se o imbróglio que ora se descreve”.
Assim, a fim de não criar ônus excessivo ao consumidor impondo como regra absoluta o trânsito em julgado de todas as sentenças declaratórias de inexigibilidade dos débitos e de reconhecimento da ilegitimidade das inscrições como condição necessária para a condenação em danos morais, a Ministra Nancy Andrighi pontua que: “a Terceira Turma, ao julgar o REsp 1.647.795/RO, de minha relatoria, admitiu a flexibilização da orientação contida na Súmula 385/STJ para reconhecer o dano moral decorrente da inscrição indevida do nome da consumidora em cadastro restritivo, ainda que não tenha havido o trânsito em julgado das outras demandas em que se apontava a irregularidade das anotações preexistentes (julgado em 05/10/2017, DJe 13/10/2017)”.
Assevera também que o contexto apresentado nos autos evidencia que “os outros registros desabonadores constantes em nome da recorrente apresentam o mesmo contexto fático subjacente ao presente processo, qual seja, a contratação realizada por terceiros, de forma fraudulenta, mediante a utilização de documentos pessoais da consumidora que foram extraviados’, circunstância essa suficiente para inverter a presunção de legitimidade das inscrições”.
É interessante notar que as múltiplas inscrições fraudulentas do consumidor nos serviços de proteção ao crédito podem autorizar que se lance mão do litisconsórcio passivo facultativo, nos termos do art. 113, III do Código de Processo Civil vigente: “Art. 113. Duas ou mais pessoas podem litigar, no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente, quando: III – ocorrer afinidade de questões por ponto comum de fato ou de direito”.
O litisconsórcio também é admitido nas ações ajuizadas perante os Juizados Especiais, nos termos do art. 10 da Lei n. 9.099/1995. Por outro lado, o regramento do Código de Processo Civil é de aplicação supletiva, nos termos do § 2º do art. 1.046 do Código de Processo Civil: “§ 2º Permanecem em vigor as disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis, aos quais se aplicará supletivamente este Código”.
Sem dúvida, verifica-se a presença de questão comum de fato, tendo em vista eventual negativa do crédito decorrer das diversas anotações indevidamente realizadas contra determinado consumidor. Daí porque é recomendável o ajuizamento de ação declaratória de inexistência de débito com pedido de indenização por danos morais em face dos fornecedores responsáveis pelas inscrições fraudulentas em litisconsórcio passivo facultativo.
Por fim, é de se presumir como regra a legitimidade da inscrição do consumidor inadimplente nos cadastros de proteção ao crédito. Conforme a lição de Marcelo Marques Cabral, culto magistrado pernambucano e doutorando em direito pela UFPE, o Código de Defesa do Consumidor admite tal inscrição “desde que respeitadas as regras essenciais determinadas pelos arts. 43 e 50 deste mesmo diploma legal”.[6] Daí porque tal presunção de legitimidade só cessa após a prolação de decisão judicial que reconheça a inexigibilidade do débito e a irregularidade da inscrição.
Referências:
[1] Precedentes: AgRg no AREsp 821839/SP, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 26/04/2016, DJe 03/05/2016; AgRg no AREsp 838709/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 17/03/2016, DJe 13/04/2016; REsp 1550509/RJ, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 03/03/2016, DJe 14/03/2016; AgRg no AREsp 796447/ RS, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 02/02/2016, DJe 16/02/2016; AgRg no REsp 1435412/MA, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/12/2015, DJe 03/02/2016; AgRg no AREsp 729678/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/11/2015, DJe 30/11/2015.
[2]COSTA FILHO, Venceslau Tavares; FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. STJ exige comprovação do dano como pressuposto do dever de indenizar. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-mar-26/direito-civil-atual-stj-exige-comprovacao-dano-indenizacao Acesso em: 15 de maio de 2020.
[3] TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia. Novos bens jurídicos, novos danos ressarcíveis: análise dos danos decorrentes da privação do uso. Revista de Direito do Consumidor, v. 129 (mai.-jun./2020). São Paulo: RT, p. 133-156.
[4] MARQUES, Cláudia Lima; BERGSTEIN, Laís. A valorização e a tutela do tempo do consumidor: a nova posição do STJ sobre responsabilidade do comerciante por vícios. Revista dos Tribunais, v. 997 (nov./2018). São Paulo: RT, p. 211-226.
[5] MARQUES, Cláudia Lima; BERGSTEIN, Laís. A valorização e a tutela do tempo do consumidor: a nova posição do STJ sobre responsabilidade do comerciante por vícios. Revista dos Tribunais, v. 997 (nov./2018). São Paulo: RT, p. 211-226.
[6]CABRAL, Marcelo Marques. Responsabilidade Civil por acidente de consumo: a proteção do consumidor e o direito à reparação por danos. Curitiba: Juruá, 2016, p. 276.