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Advocacia Tributária como ofício garantístico

Por Eduardo José da Fonseca Costa*

 

Aos Doutores

Rodrigo Dalla Pria e Eduardo Perez Salusse

 

Em um modelo puro de monarquismo absoluto, no qual todo poder emana do rei, o ciclo de positivação tributária se resume a uma soma simples de atos oficiais abruptos. Mediante atos unissubsistentes expeditos, a dignidade real promove de forma unilateral a criação, o lançamento e a cobrança do tributo. A Coroa logra simpliciter et de plano: 1) editar a regra impositiva; 2) acertar a dívida; 2) arrancar a fórceps bem do patrimônio do devedor para saldá-la. Desse modo, o exercício do poder real de tributação tende a ser marcado pelos signos da irrupção, do descomedimento e da incontrastabilidade. Em contrapartida, em um modelo puro de republicanismo democrático, o ciclo se faz de uma sucessão de processos: 1) entre o Estado e o cidadão se interpõe um processo legislativo para a edição da regra  impositiva; 2) entre o Estado e o cidadão se interpõe um processo administrativo para o acertamento da dívida; 3) entre o Estado e o cidadão se interpõe um processo judicial para a cobrança da dívida. Como se percebe, nesse modelo, o ciclo de positivação tributária é permeado de A a Z, de ponta a ponta, do alfa ao ômega, do início do fim, pela ideia de processualidade. É importante frisar que o processual é o antônimo perfeito de abrupto, brusco, rápido, repentino, súbito, inopinado, inesperado, instantâneo. Portanto, uma vez processualizado, o exercício do poder de tributar tende a ser marcado pelos signos salutares da reflexão, do comedimento e da contrastabilidade. O processo cadencia o exercício do poder, inibindo o desempenho arbitrário das funções legislativo-tributária, administrativo-tributário e jurisdicional-tributária. Pudera: basta o exercício puro e simples do poder para que ele assujeite incontinênti, interferindo na esfera jurídica alheia; logo, o processo interessa menos ao titular do poder do que aos destinatários do exercício do poder, ou seja, aos titulares do estado de sujeição.

Isso posto, inserido no ciclo de positivação, o processo desempenha uma tarefa contraexacional. Sublinhe-se: contra-exacional, não «anti-exacional», pois não serve para a eliminação ou a erradicação do ciclo, senão para o seu controle e a sua fiscalização (para uma distinção semântica entre os prefixos anti– e contra-, v. nosso Processo: garantia antijurisdicional ou contrajurisdicional. <https://encurtador.com.br/xdOsX>). Nesse sentido, o processo – que é «procedimento em contraditório» (Fazzalari) – engata o ciclo de positivação tributária nos trilhos rígidos do republicanismo democrático, permitindo que a decisão do Estado tributante seja construída desde elementos fáticos e jurídicos aportados dialeticamente pelos próprios cidadãos tributados. Uma coisa é indiscutível: o processo não tem força pró-exacional. Não serve para favorecer ou otimizar o ciclo. Logo, não se trata de utensílio, ferramenta, instrumento ou método a serviço do Estado. Na realidade, em qualquer das suas facetas (legislativa, administrativa ou jurisdicional), o processo serve aos contribuintes, não ao Fisco. Na melhor das hipóteses se admite o processo desservir o Fisco quando este comete arbítrio. Assim, quando se fala em processo legislativo, processo administrativo e processo judicial, os adjetivos legislativo, administrativo e judicial não expressam pertencimento (processo «do» legislador, processo «do» administrador e processo «do» juiz), mas localização (processo perante o legislador, processo perante o administrador e processo perante o juiz) (sobre o tema, v. nosso A garanticidade dos processos jurisdicional, administrativo e legislativo. <https://encurtador.com.br/BZags>). Tudo se passa como se o processo fosse um «bem público de uso comum do povo», cuja função axial não é atender às necessidades do Estado, mas dos cidadãos. Destarte, processo não é uma «coisa pública do Estado» [= estrutura pública + função pública], nem uma «coisa privada dos cidadãos» [= estrutura privada + função privada], mas uma coisa pública para os cidadãos [= estrutura pública + função privada] (para um aprofundamento, v. nosso Processo como coisa. <https://encurtador.com.br/zzZbR>). Enfim, o processo é uma «praça pública» onde os cidadãos se reúnem para o debate legalmente organizado, desimpedido e, por conseguinte, civilizado dos seus problemas.

Diante de tudo isso, pode-se dizer que o advogado tributarista é um observador deveras privilegiado. Ele sabe como poucos que a regra-matriz de incidência, o lançamento do crédito tributário e a sua cobrança seriam fatalmente escorchantes sem as garantias dos processos legislativo, administrativo e judicial (que se enfeixam na garantia constitucional do devido processo legal). Ele sabe como ninguém que o processo existe para proteger os cidadãos em geral e os contribuintes em particular. Em suma, ele sabe que o processo é garantia contra os eventuais arbítrios do Estado. Sem o processo, a regra seria usurpatória; o lançamento, hiperbólico; a cobrança, policiesca. Não sem motivo, são os advogados tributaristas os mais permeáveis à doutrina do garantismo processual (sobre as bases fundamentais dessa doutrina, v., p. ex., nosso O processo como instituição de garantia. <https://encurtador.com.br/01ASU>). A propósito, jamais despendi muito esforço para convencê-los de que o processo é uma garantia de liberdade do cidadão, não um instrumento do poder do Estado. Afinal, geralmente, já estão convencidos pelo seu próprio saber de experiência feito. A rotina profissional lhes permite ter essa sensação, malgrado não raro essa sensação esteja desacompanhada de um suporte teórico consciente.

Em contraposição, talvez a maior resistência ao insight garantístico-processual seja dos advogados privatistas. De ordinário, eles lidam unicamente com relações jurídicas interindividuais, os seus clientes não são vitimados pelos efeitos nocivos do exercício arbitrário do poder público e, por isso, não conseguem enxergar o processo como um anteparo contraestatal. Falta-lhes, assim, a visão global panorâmica da processualidade estremando os exercícios das atividades legislativa, administrativa e judicial. A rotina funcional da advocacia privatista somente lhe permite atentar, quando muito, ao processo judicial. Com isso, engaiolado nesse pequeno quadrante, o jurista do direito privado tende a ver o processo como um âmbito de realização de direitos subjetivos individuais, confundindo jurisdição (cuja função é aplicar o direito) com processo (cuja função é zelar para que essa aplicação não se faça de maneira arbitrária). Por esse ângulo, o advogado privatista sofre amiúde de um viés de insulamento, por força do qual o seu limiar de percepção se prende aos horizontes estreitos do seu específico nicho de atuação profissional. Ele tende a reduzir o fenômeno processual ao processo judicial e o processo judicial a um direito adjetivo do direito civil, chamando o processo extrapenal subsidiário de processo «civil» e fazendo dele o reino de um juiz com amplos poderes para a realização de direitos à tout prix. De acordo com essa perspectiva, ser processualista é ser tão apenas o jurista de um processo em juízo instrumentalizável pelo juiz para a tutela do direito material. Aliás, essa miopia é a nota característica dos primórdios da ciência processual na Alemanha do século XIX, que até hoje reverberam na Europa Continental e na América Latina (para um aprofundamento tema, v. RAATZ, Igor e ANCHIETA, Natascha. Uma teoria do processo sem processo?… Belo Horizonte: Letramento, 2021). No entanto, com absoluta razão, essa perspectiva não faz o menor sentido para o advogado tributarista, que no seu quotidiano necessita lutar contra a ideia de um processo de execução fiscal que sirva de instrumento jurisdicional para a satisfação draconiana do crédito fiscal. Ninguém como ele sente na pele os desacertos metodológico-conceituais de uma teoria do «processo civil do autor». Ninguém como ele entende que o caráter garantístico do processo decorre não só da «natureza das coisas», como também do art. 5º, LIV, da CF/1988, que prevê o processo – o «devido processo legal» – como uma liberdade pública, um direito fundamental de primeira dimensão ou geração, um direito subjetivo fundamental de liberdade, um direito de defesa ou resistência do cidadão contra o Estado (sobre a ideia do processo como um Abwehrrecht, v. DALLA BARBA, Rafael Giorgio. Se o processo é uma garantia de liberdade, ele é um direito de defesa. <https://encurtador.com.br/ul1bP>).

Mas há algo insuspeito muitas vezes para os próprios advogados tributaristas: eles são uma garantia per se. 1) O processo legislativo tributário, 2) o processo administrativo tributário, 3) o processo judicial tributário e 4) a advocacia tributária constituem o quadrilátero mágico contraexacional. De um lado está o processo, que se intromete no desempenho das funções legislativo-tributária, administrativo-tributária e jurisdicional-tributária para distendê-lo e, por via de consequência, contê-las, impedindo que o exercício do poder estatal se faça de afogadilho, de uma única vez, de um só jato, breviter, apressadamente, precipitadamente. De outro lado está o advogado tributarista, que, nada obstante tenha uma ocupação profissional liberal privada, exerce um papel público essencial no refreamento de arbítrios eventuais cometidos pelos exercentes das funções legislativo-tributária, administrativo-tributário e judicial-tributária. Em outras palavras, na advocacia (tributária) há o exercício privado de um múnus público (contraexacional). A representação especializada do contribuinte por um letrado legalmente habilitado permite que os atos do legislador, do administrador e do magistrado praticados ao longo do ciclo de positivação tributária sofram uma fiscalização técnico-jurídica e, se acaso errôneos, sejam impugnados por meio de ações e recursos de índoles administrativa e jurisdicional. Nesse sentido, a advocacia tributária é – a um só tempo – uma garantia contralegislativa, uma garantia contra-administrativa e uma garantia contrajudicial, servindo de barreira de contenção anti-arbitrária à sanha arrecadatória do Estado em todas as etapas do ciclo de positivação tributária. Daí por que a advocacia em geral e a advocacia tributária em especial [CF/1988, art. 133] adentram o catálogo seleto das garantias constitucionais individuais [CF/1988, art. 5º, § 2º] (para um aprofundamento do tema, v. nosso A advocacia como garantia de liberdade dos jurisdicionados. <https://encurtador.com.br/nkmAb>).

É necessário lembrar, porém, que a máquina arrecadatória do Estado intimida, mormente quando ela se utiliza da persecução penal de crimes contra a ordem tributária para forçar o pagamento ou o parcelamento de créditos tributários. Por isso, para enfrentar todo esse enorme poderio, a garantia da advocacia precisa municiar-se das suas próprias garantias, que são as suas prerrogativas profissionais [EOAB, art. 7º], sem as quais ela se despotencia em uma quase inutilidade e pelas quais, portanto, deve lugar renhidamente. O advogado tributarista deve ser «inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei» [CF/1988, art. 133]. Não deve haver hierarquia nem subordinação entre ele e qualquer agende público implicado no ciclo de positivação tributária (agentes fiscais, agentes retentores, procuradores fazendários, magistrados, membros do Ministério Público etc.), «devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos» [EOAB, art. 6º]. Além do mais, pois que não existe exercício de garantia sem coragem, a advocacia tributária não deve descair em pusilanimidades; desse modo, «nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão» [EOAB, art. 31, § 2º]. Como se não bastasse, para enfrentar o poderio fiscal com altivez, o advogado tributarista deve instruir-se em um saber polipericial, que entrelaça disciplinas como direito constitucional, direito administrativo, direito financeiro, direito tributário, direito civil, direito empresarial, direito penal tributário, processo penal, processo civil e noções de contabilidade. Last but not least, ele deve ter fôlego intelectual e resignação para dominar uma legislação tributária caudalosa e babélica em constante mutação. Esse incomparável feixe de atributos funcionais torna a advocacia tributária bastante inusitada e singular. Não existe, decerto, um ofício jurídico tão desafiador.

 

*Juiz Federal em Ribeirão Preto/SP. Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor de Mestrado e Doutorado da Universidade de Ribeirão Preto. Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (triênio 2016-2018). Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual. Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual.

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