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Considerações sobre a ADPF 787 em julgamento pelo STF: quando é que “mãe” passou a ser uma palavra obscena?

Por mais surpreendente que pareça, ainda existe no direito penal brasileiro o crime de escrito ou objeto obsceno, conforme se pode verificar do art. 234 do Código Penal nacional: “Fazer, importar, exportar, adquirir ou ter sob sua guarda, para fim de comércio, de distribuição ou de exposição pública, escrito, desenho, pintura, estampa ou qualquer objeto obsceno: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa”. Trata-se de verdadeira velharia legislativa que já deveria ter sido eliminada do ordenamento jurídico brasileiro desde a Constituição Federal de 1988, que pretendeu extirpar toda forma de censura às manifestações artísticas e culturais.

Para além da mudança de costumes, é de se registrar também que se trata de conduta amplamente admitida pelo Estado, que não se constrange em cobrar taxas e impostos sobre vídeos de sexo explícito, de modo a encher os cofres públicos com total indiferença a suposta imoralidade dos atos. Pecunia non olet, ou seja, o dinheiro não tem cheiro, teria dito o Imperador Vespasiano a seu filho Tito ao ser indagado sobre a natureza imoral da instituição de taxa pelo uso de latrinas ou banheiros públicos, que já eram conhecidos pelo mau odor.

Se outrora a menção a relações sexuais era suficiente para justificar o clamor popular pela censura a escritos ou objetos supostamente obscenos, é a palavra “mãe” que parece causar verdadeiro furor e justificar o clamor de movimentos sociais para que ela seja extirpada de documentos públicos. Tramita perante do Supremo Tribunal Federal a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 787, ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores, que questionou o uso da palavra “mãe” nas Declarações de Nascido Vivo (DNV), em razão de suposta discriminação a pessoas transsexuais e travestis. Neste aspecto, o Ministro Relator, Gilmar Ferreira Mendes, concedeu medida cautelar em 28.06.2021 para: “Determinar ao Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Vigilância da Saúde (SVS-MS), que, no prazo de 30 (trinta) dias: proceda à alteração do layout da DNV para que faça constar da declaração a categoria “parturiente”, independente dos nomes dos genitores de acordo com sua identidade de gênero. Isso possibilitará, ao mesmo tempo, o recolhimento de dados para a formulação de políticas públicas pertinentes e o respeito à autodeclaração de gênero dos ascendentes”.

Em sessão realizada no dia 18 de setembro, os Ministros Nunes Marques, André Mendonça, Alexandre de Moraes e Flávio Dino manifestaram-se no sentido de permitir que a DNV também possa contemplar os termos “mãe” e “pai”. De acordo com o Ministro André Mendonça, tal medida visa o respeito às escolhas pessoais daqueles que preferem ser referidos com as designações tradicionais. Com seu costumeiro bom humor, o Ministro Flávio Dino também fez a seguinte pontuação: “Hoje é aniversário da minha mãe, e se eu ligar para ela e disser ‘feliz aniversário, minha parturiente’, ela vai brigar comigo”.[1]

Parece-nos estranha a rejeição ou a alegação de inconstitucionalidade de um termo que se encontra no próprio texto constitucional brasileiro, que considera brasileiros natos os “nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira” (art. 12, I, b), e que situa a “proteção à maternidade” no rol de direitos sociais fundamentais (art. 6º) e como critério a ser atendido pela previdência social (art. 201, II). Ademais, a Constituição Federal de 1988 também insere a proteção a maternidade no rol de objetivos da assistência social (art. 203, I) e também garante a “aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil” (art. 227, § 1º, I).

Obviamente, não se está defendendo aqui um conceito de maternidade necessariamente vinculado a questões biológicas, mas que está fora deste mundo, no céu das ideias platônicas, espécie de ideia imutável e de caráter transcendente. Não se pode ignorar, contudo, que a maioria de nós sabemos identificar quem são nossas mães, sejam elas mães biológicas ou por adoção. Ante o espanto de saber que escandaliza a alguém chamar uma mãe de mãe (!), lembro a descrição do poeta Aristófanes por Otto Maria Carpeaux: “Pois também nunca se ouviu poeta tão francamente obsceno, chamando todas as coisas pelos nomes certos”.[2]

Neste sentido, seria também obsceno chamar de amante ou qualificar de concubinato a relação de caráter sexual e afetivo que terceiro mantém com pessoa casada, pois são palavras com “alta carga de preconceito social” e “que provocam reações hostis”, segundo nota publicada pelo IBDFAM.[3] O Código Civil de 2002, contudo, com peculiar “obscenidade” continua a afirmar que as “relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato” (art. 1.727). Em breve, talvez já não se possa mais chamar de ladrão aquele que subtrai coisa alheia móvel, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, nos termos do art. 157 do Código Penal brasileiro. É obsceno chamar as coisas pelos nomes certos!

A propósito do tema da maternidade, é de se fazer menção ao belíssimo Sermão de Nossa Senhora do Carmo, proferido no ano de 1659 da Cidade de São Luís do Maranhão, do Padre Antônio Vieira, que discute qual é a maior prerrogativa e a maior excelência: ser filho natural ou filho adotivo? Para o “Imperador da Língua Portuguesa” (alcunha dada pelo grande Poeta Fernando Pessoa), ser filho adotivo tem maior prerrogativa do que ser filho natural, pois: “O filho natural, ama-se porque é filho; o filho adotivo é filho porque se ama. Ser natural é fortuna; ser adotivo é merecimento. A razão de toda esta diferença é porque os filhos naturais são partos da natureza; os adotivos são filhos da eleição. Nos primeiros não tem parte a vontade nem o juízo; nos segundos tudo é juízo, e tudo vontade”.[4]

No texto do Padre Antônio Vieira, é de se notar que a valorização da filiação adotiva ou socioafetiva não pode ser qualificada como “novidade” nestas terras tupiniquins; e que também não há que se falar na exclusividade da filiação biológica como ideia corrente na tradição luso-brasileira. Em verdade, considero que a supervalorização da filiação biológica parece ser fenômeno relativamente recente e conexo a difusão do pensamento positivista entre nós, com o primado das ciências naturais.

Por fim, esperamos que o Supremo Tribunal Federal faça bom juízo da questão e respeite a vontade da ampla maioria da população que ama e respeita as suas mães, independentemente da origem da filiação. Caso contrário, confesso que irei exercer respeitosa desobediência civil e continuarei chamando a avó de meus filhos simplesmente de Mãe.

 

Notas e Referências:

[1] Cf.: https://www.migalhas.com.br/quentes/415570/stf-ministros-divergem-sobre-termos-inclusivos-em-formulario-do-sus Acesso em: 03 de outubro de 2024.

[2]CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental – Volume I. 3 ed. Brasília: Senado Federal, 2008, p. 70.

[3]Cf.: https://ibdfam.org.br/index.php/noticias/8063/IBDFAM+aponta+uso+de+termos+inadequados+em+not%c3%adcias+do+julgamento+do+STF+sobre+uni%c3%b5es+simult%c3%a2neas Acesso em: 03 de outubro de 2024.

[4] Cf.: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=149156 Acesso em: 03 de outubro de 2024.

Colunista

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Venceslau Tavares Costa Filho
Doutor em Direito pela UFPE. Professor dos Cursos de Graduação em Direito da UPE e da FAFIRE. Professor Permanente dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito, e do Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UFPE. Professor convidado do Curso de Especialização em Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco-USP. Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) - Seção Pernambuco. Membro da Academia Iberoamericana de Derecho de Familia y de de las Personas. Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Advogado.

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