Fora da caixa

Da Fé Vermelha à Liberdade Interior: Quando a Ideologia se Torna Escombro da Consciência

Por Lúcio Delfino*

 

Ao querido amigo Eduardo José da Fonseca Costa.

 

Há algo de nobre — e profundamente comovente — naqueles que, seduzidos em sua mocidade por promessas ideológicas redentoras, mais tarde conseguiram curar-se da febre, às vezes delirante, e reencontrar o centro da razão. Não se alude aqui à conversão oportunista ou ao revisionismo covarde. Refere-se, antes, àquela metamorfose íntima, sincera e reflexiva que só se opera quando o espírito amadurece e decide confrontar suas próprias ilusões a partir da sobriedade dos fatos.

É natural que os jovens se tornem presas fáceis dos discursos utópicos. A justiça absoluta, a igualdade perfeita, o fim das opressões — qual coração esperançoso e sedento por mudanças resistiria à melodia dessa liturgia? O comunismo, como descreveu Raymond Aron, jamais foi apenas uma teoria política — é, sob muitos aspectos, uma religião secular, com seus dogmas, mártires e excomunhões. Sua força repousa predominantemente na fé, não na razão: a crença no advento de um novo homem, redimido pela História e purificado pela luta de classes (ARON, Raymond. O ópio dos intelectuais. Tradução de Yvonne Jean. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980).

Acontece que esse evangelho histórico, outrora recitado com fervor militante, foi de maneira gradativa perdendo o brilho — desencanto que, longe de findo, felizmente ainda projeta sua luz purgativa. Arthur Koestler, ao romper com o Partido Comunista Alemão, descreveu a experiência como sair de um templo em ruínas. Orwell, ferido na Espanha, reconheceu que o totalitarismo também podia se revelar sob a bandeira vermelha. André Gide, até então simpático à União Soviética, voltou de Moscou espantado e escreveu, com uma quase-ingênua surpresa, que ali não havia poesia, senão censura e medo. E Kołakowski, o sofisticado filósofo polonês, desceu às entranhas do marxismo, emergindo não com rancor, mas com aguda sabedoria.

Não há vergonha em ter sido um crente. Mas é, no mínimo, embaraçoso persistir na mentira ante a evidência irrefutável da verdade. A maturidade espiritual, lembra Louis Lavelle, não se dá pela adesão a doutrinas, e sim pelo retorno a si — ao ponto interior no qual o ser se desvela em sua densidade silenciosa. É nesse lugar que o pensamento deixa de repetir slogans e começa, enfim, a discernir (LAVELLE, Louis. A consciência de si. Tradução de Lara Christina de Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2014).

A liberdade genuína manifesta-se em indivíduos que, ao rejeitarem convicções transformadas em véus à percepção, optam, com humildade, por um compromisso com a lucidez que apenas uma consciência desperta reconhece. Koestler, Orwell, Gide, Kołakowski e tantos outros, longe de serem considerados traidores, merecem reverência. São exemplos raros de uma coragem reservada, porém firme, que se afirma na renúncia serena ao erro abraçado no passado com sinceridade.

Em tempos de reencantamento acrítico com fantasias igualitárias, rememorar essas trajetórias é exercício de profilaxia intelectual. Elas evidenciam que há mais grandeza em revisar convicções do que se acorrentar a fidelidades cegas; que escolhas não são cláusulas irrevogáveis; e que a interioridade vigilante e estruturada na honestidade intelectual não precisa de moldes herdados para justificar sua presença no mundo.

A idolatria ideológica-totalitária costuma nascer da promessa de um paraíso e culminar nos rastros do inferno. Por isso, honra deve ser prestada àqueles que um dia creram — e, ao abandonarem a parte de si contaminada pelo engano, souberam descrer com dignidade.

 

*Advogado. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro). Ex-presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

 

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