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Da impossibilidade analítica do efeito substitutivo em recurso fundado em error in procedendo: um caso de duplo trânsito em julgado

1. Considerações introdutórias

Por ser o cerne da temática que estou a desenvolver no doutorado, iniciarei aqui nesta coluna uma série de textos (sem quantidade pré-definida) acerca da temática dos recursos. Os textos não seguirão, diferentemente do que ocorre na Série sobre as ações, uma ordem lógica. Serão, portanto, aleatórios. Por isso, sequer terão um título seriado; cada um deles terá um título específico.

Neste primeiro, tratarei da problemática em torno do efeito substitutivo. Deixo claro que o presente texto é uma reedição (com alguns ajustes, aprofundamentos e complementos) de algo que já publiquei em minha página profissional no Facebook: Professor Roberto P. Campos Gouveia Filho.

 

2. Desenvolvimento

Como cediço, pelo chamado efeito substitutivo, a decisão recorrida é, para os mais diversos fins, substituída pela decisão do recurso, em especial para o trânsito em julgado. É de se frisar que, no caso, o ato de substituir faz com que o objeto substituído (a decisão recorrida) deixe de existir[1]como que “apagado do mapa”. Uma substituição como forma de desconstituição, portanto.

Tudo isso tem, porém, uma causa simplíssima (e, por isso, óbvia):  o recurso versa sobre a mesma matéria que fora analisada na decisão recorrida[2]. A substituição, desse modo, ou é um imperativo de ordem lógica, quando o recurso é provido, ou de ordem prática, quando do não provimento.     

Contudo, para que o recurso (e, por consequência, a decisão sobre ele) verse sobre o mesmo objeto analisado na decisão recorrida, é preciso que seu fundamento seja a alegação de algum erro de avaliação do juízo recorrido, o error in judicando. Nesse caso, vindo a ser provido, o órgão recursal emitirá um juízo de sinal contrário ao constante na decisão recorrida. Por exemplo: em tendo sido dito nesta última ser “o autor é parte legítima para a causa”; fale-se, na decisão do recurso, “o autor não é parte legítima para a causa”. Aqui, como mencionado, a substituição é uma simples consequência lógica, já que, não podendo duas decisões contraditórias conviverem no sistema[3], a decisão recursal extinguirá a recorrida. De outro modo, não sendo provido o recurso, ambas as decisões, além de versarem sobre o mesmo objeto, terão o mesmo sentido. A do recurso, todavia, dada a própria estrutura do sistema, prevalece, pelo fato de o órgão recursal ter por essência servir de controle da atuação do órgão originário[4][5]. Tem-se, com isso, uma substituição estrutural.

Quando o fundamento do recurso, porém, é um error in procedendo, fala-se, muito por força da autoridade de José Carlos Barbosa Moreira, que a substituição acontece se o recurso for improvido. Sendo provido, ter-se-á um juízo rescindente.

Enfim, tal concepção pode ser sintetizada do seguinte modo: “o efeito substitutivo ocorre toda vez que, conhecido o recurso, a decisão recorrida não for invalidada”.

Não se mostra correta, todavia. Não no que se refere ao não provimento do recurso. Sem falar da questão – meramente lateral – de que, em verdade, não há rescisão, como sugere o clássico termo cunhado por Barbosa Moreira, mas sim invalidação, há nela um manifesto erro de premissa.

Explica-se.

Quando o fundamento do recurso é o error in procedendo, não há identidade entre o objeto da decisão recursal e o objeto da decisão recorrida. O que se alega no recurso é algo externo ao conteúdo desta última. Por variados motivos, diz-se: “tal decisão não poderia ter sido proferida”. Por exemplo, “não poderia ter sido julgada improcedente a ação pois não se deu à parte a oportunidade produção de provas”. 

Nesse caso, no não provimento, a decisão do recurso terá o seguinte dizer: “não houve cerceamento de defesa, não há o que se invalidar”. Algo que, obviamente, nada tem a ver com conteúdo da decisão recorrida.

Analiticamente, não se pode falar em substituição, porquanto não são homogêneos os objetos de ambas decisões. Eles não são substituíveis entre si.

Ademais, tem de se entender de tal modo para justificar uma necessidade pragmática. A decisão recorrida permanece e, com o esgotamento das vias recursais, transita em julgado. Como também, exatamente por ter um objeto distinto, transitará em julgado a decisão do recurso. Tem-se um duplo trânsito em julgado, portanto.

Em virtude disso, é possível que uma decisão seja rescindível sem que a outra o seja. A rescindibilidade é, com a permissão da metáfora, “personalíssima”, pois tem a ver com cada decisão tida isoladamente. Se se entender que, em tal caso, há efeito substitutivo, não se pode, logicamente, falar em rescindibilidade da decisão recorrida, uma vez que, por força dele, esta deixa de existir juridicamente.

Em próximas postagens, continuarei a tratar de problemas em torno da teoria dos recursos.

 

Notas e Referências:

*Texto originalmente publicado no Portal Empório do Direito em 02 de julho de 2019.

[1] Isto, obviamente, acontece com o passar em julgado da decisão recursal. Até então, a substituição (e, por consequência, a desconstituição) existe apenas em potência.

[2] A alusão acima à mesma matéria tem a ver com aquilo que foi analisado na decisão recorrida. Isto, como se sabe, tanto pode ser o mérito da causa originária como qualquer outra questão que surja no curso dela. O que importa é o fundamento do recurso ser composto de algo idêntico ao que compõe a decisão recorrida. A noção aqui de causa material, já empregada alhures, é bastante útil.

Não significa, porém, que, em tal caso, o conteúdo do recurso seja de todo idêntico ao da decisão recorrida, o que levaria à ideia de o recurso ser uma “simples” renovação da postulação feita. Como já dito em outros lugares, todo recurso baseia-se numa impugnação a algo que não existia quando do momento da postulação originária, sendo esse algo a decisão recorridaEmbora não opere uma novação (o que significaria apagar da história o que ocorreu), o recurso inova, ou seja, agrega algo novo ao conhecimento; no caso, por intermédio de uma relação jurídica processual que, erigida da eficácia do recurso, tem a originária (ou algo dela) como seu objeto. E tudo isso a partir do fato de que a decisão pode conter algum erro, os conhecidos error in iudicando in procedendo. Se o recurso não inovasse minimamente, bastaria, perante o juízo competente para apreciá-lo, repropor a ação ou, no caso do réu, propor ação cuja causa de pedir fosse o conteúdo da defesa apresentada. Não se faz possível porque existe uma decisão, que há de ser impugnada sob pena de consequências as mais diversas, especialmente a formação de coisa julgada sobre o que foi decidido. Alguns recursos praticamente apenas inovam, os fundados no segundo tipo de erro apontado; outros, fundados no primeiro tipo, causam uma renovação da postulação feita, mas isso a partir da inovação mencionada. O inovar é, assim, condição de possibilidade para o renovar. E é isto que se tem no caso do efeito substitutivo: dada essa renovação, há identidade de matéria entre o recurso e, por participar da postulação originária, a decisão recorrida.

Todo o dito acima se dá mesmo que se restrinja a análise ao recurso relativo a algum erro da decisão recorrida. Sabe-se, indo além, que ele pode servir de meio para o exercício de verdadeiras ações originárias, como é possível acontecer na previsão do art. 1.014, que sequer é uma novidade do vigente CPC. Nesta hipótese, tem-se um recurso essencialmente inovador.

[3] A contradição acima referida é a de nível máximo: entre dois juízos particulares. De algum modo, o sistema jurídico atua contra esse tipo de contradição, mesmo que um dos atos contraditórios permaneça. A sentença dada contra a coisa julgada, por exemplo, conforme a melhor doutrina (Beclaute Oliveira Silva), suspende a eficácia da primeira decisão, logo, posto que permaneça no sistema, a primeira sentença perde, ao menos de modo temporário, força. No caso da contradição existente entre a decisão recorrida e a do recurso a solução é sic et simpliciter: a primeira é substituída e, com isso, extinta. Não poderia ser diferente do ponto de vista da razoabilidade, pois que a decisão recorrida é, exatamente, o alvo do recurso.  

[4] Embora já se tenha utilizado do termo, inclusive na versão primitiva deste texto, não é correto dizer que o recurso é um mecanismo que serve à revisão, ao menos no sentido próprio desta. O termo revisão serve, basicamente, para designar as consequências que devem ser tomadas por conta da mudança no contexto fático (ou, até mesmo, fático-jurídico) de determinado ato jurídico. Como ocorre com a revisão por onerosidade excessiva. No recurso fundado em error in iudicando, reanalisa-se a matéria posta em discussão, não para mudar a decisão ou declarar alguma mudança nela, mas sim para proferir outra, substituta da recorrida. Em rigor, o termo reforma, designativo da consequência pelo provimento do tipo de recurso em tela, é equivocado, uma vez que não se muda a decisão recorrida, mesmo que para consertá-la (tal como se reforma uma casa com séria infiltração na fachada), mas sim, como fixado, se profere outra, que, por seu sinal trocado, substitui a primeira.

[5] O termo controle acima empregado não tem a ver com o controle da atividade judicial em si, ou seja, no sentido de vigilância dos atos praticados pelo Poder Público. O controle, no caso, é estritamente para os interessados na causa, que têm, pela via do recurso, a possibilidade de reanálise da matéria que lhes é relevante.

 

Colunista

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Roberto Campos
Doutor e Mestre em Direito Processual pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Professor de Direito Civil e de Direito Processual Civil da Unicap. Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Advogado e Consultor Jurídico.

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