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Dever de Revelação: o que se deve esperar de Árbitros (e das Partes)?

Por Alberto Jonathas Maia[1]

 

O dever de revelação tem se destacado como um dos temas mais discutidos na comunidade arbitral atualmente. Nessa semana, foi publicado um acórdão em que a 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, por unanimidade, anulou uma sentença arbitral em razão da falha do árbitro-presidente em cumprir esse dever.

Não faz muito tempo que o mesmo tema (relatado inclusive pelo mesmo magistrado) julgou de forma diametralmente oposta. Para melhor compreensão, observe o quadro abaixo:

A problemática ainda se encontra nas instâncias superiores. Refiro-me ao já conhecido REsp 2101901/SP, no qual foi mantida a decisão de não anular a sentença arbitral, mas com votação dividida, o que evidencia a ausência de consenso no Judiciário acerca do tema. Confira-se a questão no ponto:

Percebe-se que o voto vencedor adotou uma abordagem mais cautelosa, exigindo provas concretas de prejuízo para justificar a anulação. Por outro lado, o voto divergente seguiu em sentido oposto indicando a desnecessidade de demonstração de prejuízo.

De saída, pode-se perceber que os tribunais brasileiros ainda tratam, de forma inadequada, a questão da imparcialidade e do dever de revelação, porque ainda ignoram o estudo e a aplicação dos vieses cognitivos que influenciam tanto as decisões quanto os julgadores, incluindo-se aí os árbitros. Essa falta de atenção prejudica o entendimento de que a imparcialidade, comprometida por tais vieses, é uma garantia constitucional (CF, art. 5º, LIII, LIV, LV)[2].

A partir disso, deve-se ponderar que a omissão do árbitro deveria resultar na nulidade da sentença. Isso porque a base para a nulidade não está no prejuízo causado – a lei brasileira sequer menciona esse pressuposto –, mas sim na quebra de confiança. É inviável mensurar o impacto da violação do dever de revelação sobre a imparcialidade do árbitro, o que torna impossível essa análise, ainda mais quando estamos diante de sentenças arbitrais elaboradas por um colegiado de profissionais. A interpretação do art. 13, caput, da Lei de Arbitragem indica que, quando há quebra de confiança, o árbitro se torna incapaz de exercer sua função. Caso ele ainda assim atue, aplica-se o disposto no art. 32, II.

O suporte fático para a nulidade da sentença arbitral reside na violação do dever de revelação, independentemente de qualquer demonstração de prejuízo efetivo. Não importa se, ao longo do processo arbitral, não se verificou comportamento tendencioso, se apenas um dos membros do painel de três árbitros quebrou a confiança das partes, ou se a análise dos fatos e provas revela um “actio bias” por parte do árbitro. A nulidade está fundamentada na falha em cumprir o dever de revelação, e não nos efeitos concretos ou potenciais sobre a imparcialidade do julgador. O prejuízo já advém do “pré-juízo” cognitivo ao qual o árbitro estava exposto. Assim, a demonstração de que o árbitro omitiu um fato relevante já é suficiente para questionar a integridade do processo arbitral[3].

O dever de revelação não pode ser ignorado tampouco flexibilizado. Sem essa transparência, a atuação do árbitro torna-se duvidosa, comprometendo sua aparência de imparcialidade. Portanto, a importância de revelar informações fornece a base mais sólida e objetiva para avaliar a imparcialidade. Não se trata apenas de uma formalidade. O dever de revelação dá forma e substância à imparcialidade, assim como uma conduta parcial já se comprova caso se constate que o árbitro ocultou informações relevantes.

Não há uma separação essencial entre o dever de revelação e o dever de imparcialidade; ambos coexistem de forma justaposta e complementar. O dever de revelação existe especificamente para o exercício da função de árbitro, enquanto o dever de imparcialidade é um requisito para qualquer atuação jurisdicional. A violação do dever de revelação resulta na parcialidade do árbitro, pois, como dito acima o suporte fático para anular a sentença arbitral está na falha em revelar, e não nas possíveis consequências ou prejuízos concretos da falta de imparcialidade do julgador.

Contudo, a responsabilidade não deve recair apenas sobre o julgador.

O dever de revelação é uma via de mão dupla, não se limitando a uma obrigação exclusiva do árbitro, mas também envolve uma postura ativa as partes. Os litigantes devem atuar ativamente na construção desse dever de revelação, com o objetivo de evitar as já conhecidas táticas de guerrilha. Isso inclui prevenir que partes mal-intencionadas utilizem fatos conhecidos ou de fácil acesso como uma “bomba relógio” para tentar anular o procedimento, caso o resultado seja desfavorável a elas.

A lei não estabelece um prazo, mas determina que qualquer parte interessada em questionar o impedimento de um árbitro deve fazê-lo na primeira oportunidade após o início do procedimento arbitral (Lei 9.307/96, art. 20, caput). Se a alegação de suspeição ou impedimento for aceita, o árbitro será substituído; caso contrário, o processo arbitral prosseguirá normalmente. No entanto, essa decisão poderá ser revista posteriormente pelo órgão judicial competente em uma eventual ação anulatória (art. 32, II; art. 20, §§1º e 2º).

Conforme se observa no art. 14, §1º, da Lei de Arbitragem, o dever de revelar fatos que possam suscitar “dúvida razoável sobre a imparcialidade e independência” não é um fim em si mesmo, mas um mecanismo fundamental para garantir a neutralidade dos árbitros e a legitimidade do processo arbitral.

A dúvida pode ser vista como uma “quase-desconfiança” ou uma “hesitação na certeza”. O caminho para dissipar a desconfiança e impedir que a dúvida seja considerada “justificada” é justamente a revelação do árbitro. O sistema impõe ao árbitro a obrigação de revelar, esclarecer e expor às partes qualquer fato, circunstância ou informação que possa levantar dúvidas razoáveis sobre sua imparcialidade.

Como dito acima, as partes possuem também possuem obrigações relacionadas ao dever de revelação.

De fato, as partes em um procedimento arbitral têm o dever de agir proativamente e de forma imediata para revelar qualquer informação relevante que possa afetar a imparcialidade do árbitro. Isso inclui a realização de averiguações razoáveis e a comunicação de qualquer relacionamento entre seu representante e o árbitro, bem como a identidade dos membros da equipe jurídica envolvidos. Essas informações devem ser compartilhadas na primeira oportunidade disponível, especialmente em casos de mudanças durante o processo arbitral. Devem, inclusive, dizer quais as informações relevantes a serem expostos, quais os critérios que utilizaram e proativamente indicar os detalhes e esclarecimentos que desejam saber para dissipar qualquer dúvida. Enfim. as partes também devem colaborar para que não surjam dúvidas injustificadas sobre a imparcialidade do árbitro.

A discussão em torno do dever de revelação e da imparcialidade dos árbitros certamente persistirá por muito tempo. A complexidade e a importância do tema são evidenciadas pelo aguardado julgamento da ADPF 1050, que levou essa discussão ao Supremo Tribunal Federal.

Para que o debate sobre o dever de revelação e a imparcialidade na arbitragem atinja sua plenitude, é fundamental incluir a análise dos vieses cognitivos que podem influenciar os julgadores e os árbitros. Reconhecer e enfrentar esses vieses é essencial para garantir que a imparcialidade — uma garantia constitucional— seja efetivamente preservada.

A comunidade arbitral deve ter um compromisso incansável em aperfeiçoar os mecanismos que asseguram a imparcialidade e fortalecem o dever de revelação, buscando elevar a transparência e a confiança no processo arbitral. Esse esforço coletivo é vital para consolidar um sistema de arbitragem que não apenas preze pela aparência de justiça, mas que a realize em sua verdadeira essência.

 

Notas e Referências:

[1] Publicado também na Boletim Revista dos Tribunais Online. vol. 55/2024.

[2] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Os quinze inimigos da imparcialidade. Revista Brasileira de Direito Processual, v. 123, p. 373-390, 2023

[3] Cf. COSTA. Eduardo José da Fonseca. Levando a imparcialidade a sério: proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. Salvador: Juspodivm, 2018.

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Alberto Maia
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Professor de Arbitragem e de Processo Civil da Unicap. Advogado e Árbitro. Membro da Lista de árbitros da Câmara de Arbitragem Especializada CAMES e da CMAA ACIF. Fundador do Grupo Marco Maciel de Mediação e Arbitragem (GMMA) da Unicap. Colaborador do Grupo de Estudos em Direito Administrativo CNPq/UNICAP. Membro da Comissão de Conciliação, Mediação e Arbitragem da OAB/PE, da Associação Brasileira de Direito Processual -ABDPro e da Associação Brasileira dos Estudantes de Arbitragem. ABEArb e da Iniciativa de Novos Arbitralistas da INOVARB-AMCHAM. Membro do Comitê de Jovens Arbitralistas do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CJA – CBMA).

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