Grandes poderes e grandes responsabilidades: sanções não pecuniárias e política de defesa da concorrência
É bastante popular a frase, difundida por Stan Lee em uma das suas histórias em quadrinhos[1], que ficou conhecida como “princípio de Peter” e intitula o presente artigo. Como se verá ainda na parte inicial do texto, é extremamente oportuna quando se trata de qualquer órgão com poder decisório.
Recentemente, mais precisamente em novembro de 2022, houve uma profícua discussão, conduzida pela OCDE com subsídios de diversas jurisdições, que resultou no paper intitulado “Director Disqualification and Bidder Exclusion in Competition Enforcement”[2].
Basicamente, com a elaboração do documento, foram apresentadas, à comunidade jurídica e à sociedade civil, a partir de dados de uma plêiade de países, notas sobre duas sanções cuja natureza é não pecuniária, isto é, estão associadas à aplicação de uma contribuição financeira, mas que com ela não se confundem: a desqualificação de agentes com poder decisório e a exclusão de certames licitatórios.
Na realidade brasileira, de acordo com a Lei de Defesa da Concorrência (Lei Federal nº 12.529/11), por infrações à ordem econômica, o agente, seja pessoa jurídica ou física, está sujeito ao pagamento de multa que segue alguns parâmetros estabelecidos na legislação[3]. A metodologia de cálculo e outras questões relacionadas à dosimetria dessa contribuição financeira são temas espinhosos e pauta para produções futuras.
Contudo, o texto da lei igualmente estabelece que sem prejuízo da punição monetária, quando assim exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público geral[4], sanções não patrimoniais poderão ser aplicadas. Em um rol não exaustivo, a Lei aponta, dentre outras, duas punições: a proibição de contratar com a administração pública e a proibição de exercer o comércio em nome próprio ou como representante de pessoa jurídica.
A lógica por trás da aplicação de sanções não monetárias seria a de que somente uma contribuição financeira não estaria perfeitamente alinhada com a política pública que norteia e direciona as ações estatais voltadas à preservação e à promoção do ambiente competitivo. Outrossim, também não seria idônea o suficiente para punir ilícitos e dissuadir condutas futuras, sobretudo em se tratando de empresas dotadas de expressiva musculatura financeira e evidente capacidade de pagamento.
Especificamente em relação à proibição de que pessoas físicas assumam cargos de direção[5], o documento aponta que os critérios utilizados para aplicar a sanção variam de uma jurisdição para outra. Em alguns casos, exige-se uma participação direta[6], em outros direta e indireta[7], e, em outros, a comprovação de que o agente está enquadrado em determinados requisitos[8].
Como desafios a este tipo específico de sanção não pecuniária, o documento elenca algumas hipóteses, como (i) a do indivíduo apenado, mas que está em vias de se aposentar ou (ii) quando continua trabalhando na mesma companhia, após a sanção, mas em função diferente.
O outro tipo de sanção não pecuniária, igualmente de caráter exclusionário debatido no documento, diz respeito à proibição de contratar com entes da administração pública. Uma questão interessantíssima suscitada pela OCDE é relativa à duração ou aos setores abrangidos pela punição.
Isso porque, em alguns locais, como o Chile, empresas punidas por fraudar a competitividade de um certame público podem ser proibidas de contratar não só com entes governamentais diretos e indiretos, mas também com uma série de outras empresas que possuem vínculos contratuais com o Estado. Já em outras jurisdições, como na Áustria e na Suécia, o escopo da sanção está limitado ao ente alvo do ilícito.
No Brasil, há uma pesquisa sobre o tema na qual a autora conclui que a declaração de inidoneidade, proferida pelo Tribunal de Contas, mas cujo telos é semelhante ao conteúdo e efeito da decisão prolatada pelo Tribunal do Cade (impedir a contratação com o ente público), deve ser restrita ao ente federado aplicador da sanção, sob pena de violação à autonomia administrativa conferida pela Constituição[9]. Outrossim, no que tange ao prazo de duração, o documento apresenta uma tabela com variação de meses até uma década a depender da jurisdição.
O principal desafio em aplicar essa sanção, como não poderia ser diferente, está no exercício prospectivo que deve ser feito pelo julgador no tocante à estrutura do mercado. Isso porque, por razões óbvias, a dinâmica de competição de licitações futuras será afetada em razão da saída temporária de um player.
Em países emergentes, como o Brasil, essa equação é ainda mais difícil de ser equilibrada, visto que se trata de um país cuja infraestrutura de serviços essenciais (água, esgoto, transporte, telecomunicações etc.) ainda não está plenamente consolidada e, no geral, as contratações públicas contam com poucas empresas dotadas lastro financeiro suficiente para realizar o serviço ou obra.
Mais do que isso. Não é irrazoável supor que a maior parte do faturamento dessas empresas condenadas por acordo anticompetitivo venha – justamente – dos contratos com o governo. Desse modo, a supressão de um player pode ser o remédio errado para a doença certa.
A questão que se coloca, portanto, não é se é possível aplicar tal sanção, mas quando e sob quais hipóteses, sob pena de se utilizar tiros de canhão para matar mosquitos. É necessário algum elemento adicional do caso concreto que torne necessária e proporcional qualquer condenação adicional, sobretudo aquelas que se perpetuam por anos a fio.
Do contrário, a decisão exarada por quem detém competência para examinar violações à ordem econômica e concorrencial, correrá o risco de ser questionada e, eventualmente, revista ou superada no judiciário ante, dentre outras circunstâncias, a ausência de razoabilidade[10].
Por todo o exposto, duas são as conclusões que poderão ser extraídas do documento da OCDE. A primeira delas, direcionada para empresas e pessoas físicas, está no fortalecimento dos programas de integridade e na disseminação da cultura de concorrência.
Mais do que o pagamento da multa, as autoridades de defesa da concorrência do mundo inteiro têm debatido se – somente – a contraprestação pecuniária é suficiente para atingir os objetivos de uma política concorrencial, punindo adequadamente condutas conhecidas e dissuadindo condutas futuras.
O outro, destinado às autoridades, está no título desse breve artigo: o ferramental sancionatório é vasto e sofisticado, mas é necessário que seja proporcional e adequado, sob o risco de a condenação ser mais severa do que o necessário.
Considerando que a sanção pode resultar (i) na restrição a exercício da atividade profissional e/ou a consecução do objeto social da empresa ou, em hipóteses mais severas, (ii) na eliminação do meio de subsistência e/ou na retirada de um player do mercado (no caso de os contratos públicos serem determinantes no fluxo de caixa da PJ), é fundamental que exista um elemento adicional que justifique tais sanções, para além da conduta em si, sobretudo em razão da ausência de parâmetros claros e balizas objetivas no que diz respeito à imposição de sanções não pecuniárias.
Notas e Referências:
[1] A frase aparece na edição “Amazing Fantasy, vol. 1, n. 15”, publicada em 1962.
[2] OECD. Director Disqualification and Bidder Exclusion in Competition Enforcement. OECD Competition Policy Roundtable Background Note, 2022. Disponível em: http://www.oecd.org/daf/competition/director-disqualification-and-bidder-exclusion-in-competition-enforcement-2022.pdf.
[3] Art. 37. A prática de infração da ordem econômica sujeita os responsáveis às seguintes penas:
I – no caso de empresa, multa de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do valor do faturamento bruto da empresa, grupo ou conglomerado obtido, no último exercício anterior à instauração do processo administrativo, no ramo de atividade empresarial em que ocorreu a infração, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação;
II – no caso das demais pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como quaisquer associações de entidades ou pessoas constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, que não exerçam atividade empresarial, não sendo possível utilizar-se o critério do valor do faturamento bruto, a multa será entre R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) e R$ 2.000.000.000,00 (dois bilhões de reais);
III – no caso de administrador, direta ou indiretamente responsável pela infração cometida, quando comprovada a sua culpa ou dolo, multa de 1% (um por cento) a 20% (vinte por cento) daquela aplicada à empresa, no caso previsto no inciso I do caput deste artigo, ou às pessoas jurídicas ou entidades, nos casos previstos no inciso II do caput deste artigo.
- 1º Em caso de reincidência, as multas cominadas serão aplicadas em dobro.
- 2º No cálculo do valor da multa de que trata o inciso I do caput deste artigo, o Cade poderá considerar o faturamento total da empresa ou grupo de empresas, quando não dispuser do valor do faturamento no ramo de atividade empresarial em que ocorreu a infração, definido pelo Cade, ou quando este for apresentado de forma incompleta e/ou não demonstrado de forma inequívoca e idônea.
[4] Art. 38. Sem prejuízo das penas cominadas no art. 37 desta Lei, quando assim exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público geral, poderão ser impostas as seguintes penas, isolada ou cumulativamente:
I – a publicação, em meia página e a expensas do infrator, em jornal indicado na decisão, de extrato da decisão condenatória, por 2 (dois) dias seguidos, de 1 (uma) a 3 (três) semanas consecutivas;
II – a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitação tendo por objeto aquisições, alienações, realização de obras e serviços, concessão de serviços públicos, na administração pública federal, estadual, municipal e do Distrito Federal, bem como em entidades da administração indireta, por prazo não inferior a 5 (cinco) anos;
III – a inscrição do infrator no Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor;
IV – a recomendação aos órgãos públicos competentes para que:
- a) seja concedida licença compulsória de direito de propriedade intelectual de titularidade do infrator, quando a infração estiver relacionada ao uso desse direito;
- b) não seja concedido ao infrator parcelamento de tributos federais por ele devidos ou para que sejam cancelados, no todo ou em parte, incentivos fiscais ou subsídios públicos;
V – a cisão de sociedade, transferência de controle societário, venda de ativos ou cessação parcial de atividade;
VI – a proibição de exercer o comércio em nome próprio ou como representante de pessoa jurídica, pelo prazo de até 5 (cinco) anos; e
VII – qualquer outro ato ou providência necessários para a eliminação dos efeitos nocivos à ordem econômica.
[5] o termo deve ser entendido em acepção mais ampla, com a finalidade de abranger indivíduos com poder decisório.
[6] Chile e Nova Zelândia são exemplos de casos em que a contribuição material é requisito necessário.
[7] A exemplo do México.
[8] No Reino Unido, por exemplo, a responsabilidade do diretor pode advir de situações em que (i) contribuiu para a infração; (ii) não agiu para evitar a conduta quando teria motivos razoáveis para suspeitar (omissão); e (iii) não sabia, mas deveria saber, que a conduta infringiu regras concorrenciais.
[9] SALGADO, Laís Rocha. DEBARMENT E A DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE PARA CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Análise comparada entre o instituto brasileiro e o norte-americano. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Federal de Minas Gerais, 2019, p. 193.
[10] Eu e o Prof. Eric Jasper tivemos a oportunidade de fazer alerta semelhante em oportunidade anterior. Nesse sentido, vide: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/de-volta-para-o-futuro-direito-concorrencia-03112021.