ABDProDireito Processual CivilProcesso Civil

O Ego no Centro do Julgamento: Atalhos Mentais e seus Perigos

Por Lúcio Delfino*

 

Louis Lavelle, um dos mais eminentes representantes da metafísica do século XX, investigou a relação entre o indivíduo e a verdade. Em suas reflexões, sustentou que o “conhecimento verdadeiro” só pode ser devidamente alcançado quando o ego se dissolve diante daquilo que se almeja compreender (LAVELLE, Louis. A consciência de si. São Paulo: É Realizações, 2014). Esse estado exige, segundo ele, o abandono do desejo de domínio, permitindo que a verdade venha à tona de maneira espontânea, sem as deformações impostas pelo amor-próprio. Isso demanda uma postura de desprendimento: a consciência se torna – para usar uma imagem metafórica – um lago cristalino, cujas águas imaculadas refletem a essência do real em sua pureza, livre de qualquer interferência subjetiva.

Essa lição filosófica, de inegável profundidade, encontra ressonância na ciência contemporânea, sobretudo em pesquisas dedicadas aos vieses cognitivos. Embora os padrões automáticos de pensamento sejam inatos – reflexo da necessidade humana de processar informações com rapidez –, eles recorrem a atalhos mentais que, volta e meia, distorcem a percepção e comprometem a tomada de decisões.

O viés de confirmação, por exemplo, leva o indivíduo a selecionar e valorizar evidências que corroboram suas crenças prévias, ao passo que rejeita ou minimiza informações contrárias. O viés de ancoragem provoca escolhas influenciadas por referências iniciais, ainda quando irrelevantes. Já o viés de representatividade estimula ilações apressadas ao associar características particulares a estereótipos preexistentes.

No campo judicial, onde a imparcialidade deveria ser o esteio sagrado das decisões, essas inclinações heurísticas encerram ameaças silenciosas à integridade dos julgamentos. Um magistrado que construa sua percepção inicial com base em um elemento isolado — como a postura do réu, a eloquência do advogado, a narrativa da acusação, a aparência física das partes, o tom emocional de um depoimento ou mesmo a reação do público presente em audiência — pode, sem perceber, interpretar o conjunto probatório de modo a confirmar essa impressão inicial. A consequência é um juízo que ostenta aparência de racionalidade, mas cuja substância já foi comprometida pela contaminação de premissas não depuradas por um exame severo.

Estudos empíricos comprovam o peso dos vieses. Uma constatação bem documentada é a pesquisa conduzida por Danziger, Levav e Avnaim-Pesso, que identificou como decisões sobre a liberdade condicional podem ser influenciadas pelo simples fator do horário. Juízes se mostraram mais propensos a conceder liberdade no início do dia ou logo após um intervalo para refeição, enquanto, nos períodos de maior cansaço, as deliberações tornavam-se mais rígidas (DANZINGER, Shai; LEVAV, Jonathan; AVNAIM-PESSO. Extraneous factors in judicial decisions. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 108, n. 17, p. 6889-6892, 2011). 

Outro fenômeno que merece atenção é o crescente protagonismo de certos magistrados, que, em vez de aterem-se à centralidade da causa, priorizam a visibilidade e o reconhecimento midiático. A instrumentalização da função para fins de autopromoção intensifica essas armadilhas cognitivas, notadamente o viés da confirmação, erodindo a equidistância e a indispensável isenção que se esperam daqueles que exercem a jurisdição.

Para Lavelle, a raiz do problema, como já apontado, reside no enaltecimento do amor-próprio, que subverte o processo de conhecimento ao colocar o ego no centro da experiência. No contexto forense, essa exaltação manifesta-se amiúde como vaidade intelectual, excesso de confiança ou ainda pelo impulso velado por reafirmação pessoal. O juiz, em vez de se apagar diante do caso, projeta sobre ele suas preferências e inclinações, comprometendo a neutralidade exigida pelo cargo.

A boa notícia é que a experiência internacional oferece alternativas para mitigar tais riscos. No Reino Unido, para ilustrar, o Judicial College incorporou em seus programas de formação de membros da magistratura temas relacionados ao viés implícito, estimulando a autoconsciência crítica e a reflexão sobre os julgamentos. Técnicas como o pensamento contrário, que desafia o julgador a considerar hipóteses alternativas, têm demonstrado eficácia. Da mesma forma, práticas metacognitivas — a capacidade de monitorar e avaliar os próprios mecanismos analíticos — ajudam a corrigir defeitos de raciocínio antes que contaminem o desfecho decisório. Adicionalmente, sistemas de inteligência artificial têm sido testados com o propósito de fornecer análises complementares ao conjunto probatório, a fim de reduzir o impacto dessas tendências humanas inconscientes. Se, por um lado, tais ferramentas não representam uma solução definitiva, por outro, oferecem uma camada extra de controle capaz de prevenir posicionamentos precipitados.

É nesse ponto que talvez o pensamento de Lavelle revela sua aplicação mais precisa. A superação dos vieses exige o que ele denominou de “purificação interior”. A prática judicante só pode ser exercida com distanciamento e objetividade quando o juiz se desvencilha da arrogância e se dispõe a refletir, blindado mentalmente contra influências internas ou externas, a realidade em sua plenitude.  Trata-se de uma tarefa árdua e contínua, porém essencial, pois, sem isso, as soluções litigiosas tornam-se frágeis, enredadas nas sombras do orgulho.

É claro que essas estratégias transcendem a técnica, exigindo disposição ética e compromisso intransigente com o jurisdicionado, só alcançando magistrados sérios, devotados à nobre função que exercem. Lamentavelmente, há aqueles que, longe de serem vítimas de distorções cognitivas, manipulam suas decisões para atender a interesses próprios, de terceiros ou até a agendas ideológicas. Em oposição a essa categoria, nem a filosofia espiritualista lavelleana, nem as abordagens de sensibilização da ciência comportamental oferecem remédio.

Julgar é, por definição, um exercício de humildade.  A sabedoria que deve orientar o decisor não o impele à perseguição obsessiva por uma suposta “verdade absoluta”; ao contrário, conduz à adesão serena à garantia fundamental da imparcialidade e à fidelidade ao direito posto. Como intérprete atento e comprometido, deve renunciar à pretensão de controle sobre o resultado e empregar esforços na construção de decisões que respeitem os limites da lei e traduzam fielmente, com equilíbrio e lucidez, as particularidades do caso concreto. O futuro do Judiciário não se consolidará pela prepotência ou pelo ímpeto autoritário, mas sim pela sobriedade, pelo rigor intelectual e pelo permanente aprimoramento ético daqueles que o integram.

 

* Advogado. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPro.

 

Colunista

Avalie o post!

Incrível
1
Legal
0
Amei
0
Hmm...
0
Hahaha
0

Você pode gostar...

Comentários desativados.

Mais em ABDPro