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O garantismo processual e a guerra das ideologias

Por Eduardo José da Fonseca Costa*

 

«Cada ideologia tem a inquisição que merece» (Millôr Fernandes)

 

I

HANS KELSEN expulsou do direito tudo quanto lhe seja estranho: o ético-lógico, o econômico-lógico, o estético-lógico, o político-lógico, o teo-lógico, o antropo-lógico, o psico-lógico, o histórico-lógico etc. Destarte, fez sobrar tão só o indispensável ao jurídico: o nomo-lógico. Esse adelgaçamento permitiu que a norma jurídica se tornasse o objeto específico de uma ciência social. Por conseguinte, tornou os juristas uma classe específica de cientistas sociais, agora com status dignitatis próprio. Essa depuração objetiva viabilizou uma ciência jurídica stricto sensu em bases descritivo-normativas, conferindo-lhe um estatuto epistemológico particular. Ante o exposto, a ciência do direito se distinguiria das outras ciências sociais por ser normativa, por ser livre de elementos externos e por focar na estrutura e na validade das normas jurídicas, desinteressando-se das suas causas e das suas consequências. No entanto, a Teoria Pura do Direito se tornou um alvo fácil de leviandades. Afinal, quando se é cingido ao essencial, de tudo se pode acusá-lo, pois em tudo ele está.

No espectro político-ideológico, por exemplo, o modelo de HANS KELSEN foi enquadrado pelos seus críticos em todas as vertentes possíveis e imagináveis: no eixo socioeconômico horizontal, ora foi chamada de capitalista, ora de socialista; no eixo sociocultural vertical, ora foi tida como libertária, ora como autoritária. Portanto, foi ela rotulada ora como liberal [= capitalista libertária], ora como fascista [= capitalista autoritária], ora como anarquista [= socialista libertária], ora como marxista [= socialista autoritária]. O clímax representativo dessas detrações foi a famosa submissão da teoria a uma estapafúrdia reductio ad Hitlerum (contra essa redução, e. g.: VALADÃO, Rodrigo Borges. Positivismo jurídico e Nazismo. São Paulo: Contracorrente, 2022). Somando-se essas críticas, chega-se ao atestado puro e cabal de que a Teoria Pura do Direito é, de fato, pura. O próprio jusfilósofo austríaco deixou isso claro no prefácio escrito em maio de 1934 à 1ª edição da sua obra mestra: «Os fascistas declaram-na liberalismo democrático, os democratas liberais ou os sociais-democratas consideram-na um posto avançado do fascismo. Do lado comunista é desclassificada como ideologia de um estatismo capitalista, do lado capitalista-nacionalista é desqualificada, já como bolchevismo crasso, já como anarquismo velado. O seu espírito é – asseguram muitos – aparentado com o da escolástica católica; ao passo que outros creem reconhecer nela as características distintivas de uma teoria protestante do Estado e do Direito. E não falta também quem a pretenda estigmatizar com a marca de ateísta. Em suma, não há qualquer orientação política de que a Teoria Pura do Direito não se tenha ainda tornado suspeita. Mas isso precisamente demonstra, melhor do que ela própria o poderia fazer, a sua pureza» (Teoria pura do direito. trad. João Baptista Machado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991).

 

II

Algo muito semelhante acontece com o Garantismo Processual. Trata-se de uma teoria constitucionalística que parte da premissa fundamental de que o processo – pouco importa o adjetivo que se lhe dê (civil, trabalhista, penal comum, penal militar, penal eleitoral, eleitoral não penal, previdenciário, tributário etc.) – é uma modalidade de tutela contra o arbítrio do Estado, motivo pelo qual o «devido processo legal» [CF/1988, art. 5º, LIV] é uma garantia de liberdade em si [= garantia constitucional do processo], sem embargo das garantias de liberdade outras, que o atravessam [= garantias constitucionais no processo – ex.: imparcialidade, independência, contraditório, ampla defesa, presunção de inocência, vedação da prova ilícita, juiz natural, publicidade, fundamentação das decisões judiciais, etc.]. Desse modo, os juristas garantistas «reduzem» o processo à função protetiva primordial que a Constituição Federal de 1988 lhe atribui, proscrevendo tudo quanto lhe seja exógeno (instrumentalismo processual, cooperativismo processual, igualitarismo processual, gerencialismo processual etc.) e que, em alguma medida, sabote essa função originária e transforme o processo de garantia dos jurisdicionados em instrumento da jurisdição. Conquanto essa teoria tenha despontado nos cenários europeu e hispano-americano sobretudo no início dos anos 2000, e embora se tenha começado a defendê-la no Brasil por volta de 2005, ela só ganhou força real no cenário nacional com a fundação da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) no início de 2016, que a abraçou como doutrina oficial, quando entrava em vigência no País o novo Código de Processo Civil (Lei 13.015, de 16 de março de 2015).

Na época, estava a pleno vapor a chamada «Operação Lava Jato», que durou de 17 de março de 2014 a 1º de fevereiro de 2021 e que consistiu em um conjunto de investigações realizadas pela Polícia Federal para se apurar um esquema bilionário de lavagem de dinheiro de propinas e que atingiu parte significativa do núcleo duro do Partido dos Trabalhadores (PT), a mais importante legenda político-partidária da esquerda brasileira. Ante os vários arbítrios policiais, ministeriais e judiciais cometidos no curso da mencionada operação, o discurso garantístico-processual recebeu a adesão ad hoc de alguns juristas esquerdistas, que o passaram a replicar, se bem que também a condenação de alguns juristas direitistas, que o passaram a refutar, quase sempre com argumentação rasa (e fazendo um enorme confusão entre o garantismo ferrajoliano, uma teoria zetética que conceitua o termo garantia como «tutela contra a inefetividade», e o garantismo não ferrajoliano, uma teoria dogmático-constitucional que conceitua o termo garantia como «tutela contra o arbítrio estatal» – para uma diferenciação entre as duas teorias, v. nosso Garantia: dois sentidos, duas teorias. <https://encurtador.com.br/felJh>).

 

III

Todavia, no dia 14 de março de 2019 foi instaurado no Supremo Tribunal Federal o Inquérito 4781/DF, mais conhecido como «Inquérito das Fake News». De acordo com o site do próprio STF, apura-se «a divulgação de notícias fraudulentas, falsas comunicações de crimes, denúncias caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de ânimo para caluniar, difamar e injuriar o STF e os seus integrantes, por meio de esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes sociais, com o intuito de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário e ao Estado de Direito» (<https://encurtador.com.br/4DBMH>) (obs.: esse inquérito teve vários «filhos», como o Inquérito 4874/DF, mais conhecido como «Inquérito das Milícias Digitais»). Duas coisas chamam a atenção nessas investigações criminais: 1) a considerável quantidade de arbítrios que as maculam (sobre alguns deles, v. nosso Os quinze inimigos da imparcialidade. <https://encurtador.com.br/z236t>); 2) empresários, parlamentares e influenciadores digitais ligados à direita bolsonarista como os principais alvos. Seja como for, a situação se inverteu: alguns dos juristas bolsonaristas, que outrora aplaudiam os arbítrios cometidos contra os lulopetistas implicados na Operação Lava Jato, passaram à defesa intransigente das garantias constitucionais em favor dos seus correligionários implicados no Inquérito das Fake News; em contrapartida, alguns dos juristas lulopetistas, que outrora faziam a defesa intransigente das garantias constitucionais em favor dos seus correligionários implicados na Operação Lava Jato, passaram a aplaudir os arbítrios cometidos contra os bolsonaristas implicados no Inquérito das Fake News.

Como se vê, esses juristas lulopetistas abandonaram por completo o discurso garantístico-processual ou, simplesmente, subverteram-lhe o sentido com o propósito cínico de justificar o injustificável. Quase sempre, eles invocam a defesa do «Estado democrático», da «ordem democrática», do «regime democrático», da «gestão democrática», das «instituições democráticas», dos «espaços democráticos» ou de qualquer outra expressão versátil congênere – que inflija ao termo democracia um arruinamento semântico – a fim de fundamentar o que quer que seja, inclusive práticas antidemocráticas. «Nunca antes na história deste país» o conceito de democracia foi tão prostituído. Daí se nota que, em meio à guerra das ideologias, surge um novo tipo de processualista: o «garantista de ocasião», «de conjuntura», «de circunstância», que reivindica in favor amicorum as garantias constitucionais e contra inimicos os excessos e desvios da máquina repressora estatal. Ele se encontra tanto à direita quanto à esquerda, tanto entre alguns bolsonaristas quanto entre alguns lulopetistas, dizendo e desdizendo-se ao sabor do que convém para a sua fé política e para o seu populista de estimação. Trata-se de uma praga, cuja dubiedade intelectual tem contribuído para o aumento da desorientação jurídica que hoje aflige o Brasil.

 

IV

modus operandi desses pseudogarantistas é sempre o mesmo: ressuscitar sociologismos e axiologismos para prejudicar o seu inimigo ideológico privando-lhe das suas garantias constitucionais processuais. Eles rompem com o normativismo a fim de que lhes seja possível esquematizar ad hoc um regime de exceção ao próprio Garantismo, que dizem professar. Dessa maneira, desenvolvem uma «teoria» frankensteiniana, a qual remenda partes garantísticas (dedicadas aos seus aliados) com partes persecutórias (dedicadas aos seus rivais). No caso da Operação Lava Jato, o antipetismo afirmava que uma «obediência cega» às garantias constitucionais poderia debilitar a eficiência da persecução criminal, uma vez que o sistema procedimental penal positivo vigente não é preparado para apurar esquemas de corrupção tão complexos, que envolvem cobranças de propina, lavagem de dinheiro, superfaturamento de obras e evasão de divisas para o abastecimento de partidos, políticos e funcionários de empresas estatais. Outrossim, no caso do Inquérito das Fake News e dos seus «filhotes», o petismo alega que uma «obediência cega» às garantias constitucionais pode debilitar a eficiência da persecução criminal, visto que o sistema procedimental penal positivo vigente não é preparado para apurar a existência de uma organização criminosa tão complexa, a qual atenta contra o Estado democrático de direito mediante uma forte atuação digital articulada em diferentes núcleos (político, de produção, de publicação e de financiamento).

Como é possível perceber, cada confraria ideológica invoca «singularidades», «particularidades» e «especificidades» para justificar uma ação «atípica», «anômala», «extraordinária» ou «insólita» contra o seu adversário e sempre em nome de uma decantada «eficiência» (que é o mantra hodierno para o enfraquecimento de direitos fundamentais). Talvez isso seja tolerável no discurso panfletária da militância política; contudo, é inaceitável no discurso (pretensamente) dogmático dos (pretensos) garantistas. No Garantismo Processual lídimo, a defesa das garantias constitucionais se faz sem reservas, a qualquer custo, a todo preço, doa a quem doer. Ocorrido o suporte fático da garantia constitucional, ela incide e, então, deve ser aplicada objetivamente contra o arbítrio potencial ou efetivo do exercente da função persecutório-criminal, sem que se lhe permita inventar in causa sua et post causam qualquer ressalva. Logo, quando se enxerga um «garantista de ocasião», na verdade o que se tem diante dos olhos é um militante político fantasiado de jurista, um lumpen-jurista, um subjurista, um jurista de meia pataca, o que há de mais rasteiro na comunidade dos cientistas dogmáticos do direito. Ele disfarça o boné com notas de rodapé, a bandeira com normas da ABNT, a camiseta com marcos teóricos, o broche com referência bibliográfica, o grito de guerra com palavras-chave e o punho erguido com doutrina estrangeira (que, de ordinário, ele importa pela metade e distorce a metade importada em prol do seu ideário).

 

V

Quando maldisse a Operação Lava Jato, insinuaram a miúdo que a minha teoria processual era esquerdista; quando censuro o Inquérito das Fake News, julgam-na não raro direitista. Mas isso precisamente demonstra, melhor do que ela própria o poderia fazer, que a ideia de processo como um direito de defesa do cidadão contra eventuais arbítrios estatais é, antes de tudo, uma conquista civilizatória permanente, não um produto ideológico. Não varia segundo as circunstâncias históricas. Tem valor absoluto. Independente do espaço-tempo. Por isso, o Garantismo Processual não pende à direita nem à esquerda. Tampouco se acomoda no centro. Não é um liberalismo processual, nem um fascismo processual, nem um anarquismo processual, nem um marxismo processual, nem uma subdivisão ou variação anômala de qualquer uma dessas doutrinas. Não é o desdobramento processualístico, em síntese, de qualquer ideologia político-social. Não sem razão, em meio aos processualistas garantistas genuínos e autênticos, há tanto direitistas quanto centristas e esquerdistas, todos eles comprometidos com o Estado democrático parlamentar, com a separação de poderes, com a legalidade em sentido estrito, com a autonomia do direito, com uma atividade jurisdicional técnico-burocrática e com uma processualidade estruturada em marcos constitucionais e legais que não dependem da vontade temporal das partes e do juiz. Na realidade, a doutrina garantista é uma dogmática que se constrói ao redor do processo – do «devido processo legal» – como direito subjetivo de liberdade individual contra o Estado [CF/1988, art. 5º, LIV]. Se essa doutrina é porventura instrumentalizada pela ideologia do momento, deve-se enviar a fatura aos ideólogos, não aos garantistas.

Nada obstante, mesmo os garantistas são tentados, a todo instante, por seduções ideológicas. Ser um garantista exige um esforço incomensurável de autocontenção. Não serve para os fracos. Não é fácil sobrepor a imparcialidade à sede pessoal de justiça. Não é fácil contrapor-se àqueles que se excedem ou se desviam no exercício das funções públicas. Não é fácil preferir a crítica honesta (que nada dá em troca) à bajulação fingida (na qual se viciam os poderosos, que a retribuem com moedas e favores). Não é fácil renegar a corrente dominante e, dessa forma, atuar academicamente à margem dos espaços oficiais do establishment. Não é fácil defender o opositor ideológico quando a persecução estatal lhe acena com arbítrio, nem reprovar o companheiro ideológico quando ela lhe acena com justa punição. Uma coisa é certa: sempre que silencia sobre a afronta estatal às garantias constitucionais do seu antagonista, o «garantista de ocasião» é um omisso e, assim sendo, um oportunista, um embusteiro, um fajuto, um hipócrita. Se ele se omite por medo, comporta-se como um covarde; se por dolo, como um canalha. Ao fim e ao cabo, o Garantismo Processual é-lhe apenas isto: a arma da vez na guerra das ideologias.

 

*Juiz Federal em Franca/SP. Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP. Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (triênio 2016-2018). Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual. Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual

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