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O processo pode ser, ao mesmo tempo, garantia do jurisdicional «e» instrumento da jurisdição?

Por Eduardo José da Fonseca Costa*

 

«Não podeis servir a Deus e a Mamom» (Mt. 6:24)

 

I

Às vezes, só após a prédica sobre a luz se pode despertar a consciência para a existência mesma das trevas. Isso é próprio a este mundo limitado e limitante, palco dialético de forças opostas. Pois algo parecido se deu no campo processualístico brasileiro: só após a divulgação do garantismo processual surgiu para o público a percepção de que, até então, só se havia produzido no País uma única e mesma doutrina (o instrumentalismo processual), embora com variações metodológico-conceituais internas e certas especificidades tanto regionais quanto pessoais. Ao fim e ao cabo, jamais se teve a consciência de que toda a moderna produção científico-processual eram meras «variações sobre um mesmo tema». Como não poderia deixar de ser, essa abertura de consciência gerou uma crise de fé em alguns juristas do direito procedimental civil mais afeitos aos valores republicano-democráticos. Muitos deles sempre repetiram por automatismo a velha cantilena autoritária do processo como um instrumento da jurisdição e, portanto, como uma ferramenta a serviço do poder do Estado. Depois de um contato sincero com o pensamento garantístico, a primeira reação de muitos, ainda impulsiva e um tanto orgulhosa, não foi aderir a ele. É compreensível: não é fácil desdizer-se após décadas de equívoco e reaprender toda a ciência processual desde uma nova perspectiva. Daí por que preferiram lançar mão de uma solução de compromisso: o processo seria, a bem da verdade e a um só tempo, um instrumento da jurisdição «e» uma garantia do jurisdicionado. Daí já se nota que a crise de consciência foi muito mal resolvida. Afinal de contas, por detrás dessa solução de compromisso existe um grave vício epistêmico. Hoje, o vício emparelha esses civil-procedimentalistas com alguns penal-procedimentalistas, pouco dados à liberdade, que há anos têm defendido que o papel do processo no âmbito criminal é tanto servir à persecução penal do Estado [= função instrumentalístico-inquisitorial] quanto à defesa dos implicados contra os eventuais arbítrios nessa persecução [= função garantístico-adversarial].

Ora, com um atraso de alguns anos, decidi apresentar nesse pequeno artigo breves críticas a esse «e», que quiçá uniria e unificaria as expressões instrumento da jurisdição (que está à base do instrumentalismo processual) e garantia do jurisdicionado (que está à base do garantismo processual). Mostro que essas duas expressões apontam para dois modelos teóricos irreconciliáveis entre si. Ao conflito entre as duas teorias se aplica sem ressalvas o dito mors tua vita mea. Elas se apagam reciprocamente, sem ser possível uma terza via, que os sintetize ou despreze (obs.: na realidade, a pretensa «terceira via», que em geral recebe a alcunha de cooperativismo processual, nada mais é do que uma versão rósea, macia e disfarçada do instrumento processual). De algum modo, as breves críticas que ora exponho se encontram nas entrelinhas de parcela considerável dos artigos garantístico-processuais que já escrevi. No entanto, era preciso colhê-las, reuni-las, organizá-las, clarificá-las, aprofundá-las e expô-las em um texto específico. Ei-lo abaixo.

 

II

O processo – o devido processo legal – é um direito subjetivo fundamental de liberdade contra os eventuais arbítrios do Estado [CF/1988, art. 5º, LIV]. Na dicção da teoria liberal alemã dos direitos fundamentais, trata-se de um «direito defesa ou resistência contra o Estado» [Abwehrrechte gegen den Staat]. Todo e qualquer tutela contra o arbítrio estatal é chamada de GARANTIA. Logo, por força da Constituição Federal de 1988, o processo é uma garantia. Pudera: ele manieta e cadencia o exercício das funções públicas, impedindo que os agentes do Estado ou quem lhes faça as vezes às desempenhem de uma forma abrupta, açodada, repentina, súbita, inesperada, inopinada, irrefletida, simpliciter et de plano, inaudita altera parte. Daí por que a garantística processual é isto: a dogmática jurídico-constitucional que se debruça sobre o processo como uma garantia do cidadão. Por esse ângulo, ela é uma constitucionalística especializada na garantia do devido processo legal [CF/1988, art. 5º, LIV]. Existe o direito subjetivo fundamental de liberdade a que: a) entre o cidadão-administrado e o Estado-administração se interponha um processo [= garantia constitucional do processo perante o administrador público; garantia constitucional do processo administrativo; garantia constitucional do devido processo administrativo]; b) entre o cidadão-legislado e o Estado-legislação se interponha um processo [= garantia constitucional do processo perante o legislador; garantia constitucional do processo legislativo; garantia constitucional do devido processo legislativo]; c) entre o cidadão-jurisdicionado e o Estado-jurisdição se interponha um processo [= garantia constitucional do processo perante juízes e tribunais; garantia do processo judicial; garantia constitucional do devido processo judicial] (obs.: a CF/1988 não equiparou a arbitragem à jurisdição e, por isso, há evidente dessimetria entre a relação jurídico-privada árbitro/arbitrado e a relação jurídico-pública Estado-jurisdição/cidadão-jurisdicionado, motivo por que a sentença arbitral é título executivo judicial apenas ex vi legis [CPC, art. 515, VII], não ex vi naturæ suæ; dessa maneira, o direito a que seja interposto um processo entre o árbitro e o arbitrado decorre da Lei 9.307/1996, não da Constituição de 1988, conquanto se possa falar – quando muito, mas em sentido impróprio – em «garantia legal do processo perante o árbitro», «garantia legal do processo arbitral» ou «garantia legal do devido processo arbitral»).

Com isso se percebe que o autêntico processualista deve ser um constitucionalista não circunscrito ao estudo do processo judicial, embora a sua maior ordem de problemas se apresente justamente no processo perante juízes e tribunais; afinal, sem sombra de dúvida, é a modalidade processual mais presente no cotidiano do povo, posto que a mais complexa. Sem embargo, nada justifica a indiferença do processualista tradicional ao estudo devotado dos processos administrativo e legislativo, que são de igual modo relevantes para a vida republicano-democrática (obs.: nada impede que se acomode dentro da ciência processual stricto sensu o estudo do processo arbitral, emprestando-se-lhe o aporte metodológico-conceitual da garantística).

 

III

Entretanto, um outro conteúdo notável está implicado no direito fundamental ao devido processo legal: d) o direito a que, no plano infraconstitucional, o Estado-legislação institua os diferentes procedimentos em juízo obedecendo sempre ao caráter garantista do processo. Os cidadãos-jurisdicionados têm pretensão de direito fundamental a que o Estado legislador esquematize procedimentos qualificados, que os proteja dos eventuais arbítrios da justiça civil [= procedimento civil como garantia], da justiça empresarial [= procedimento empresarial como garantia], da justiça trabalhista [= procedimento trabalhista como garantia], da justiça penal comum [= procedimento penal comum como garantia], da justiça penal militar [= procedimento penal militar como garantia], da justiça penal eleitoral [= procedimento penal eleitoral como garantia], da justiça eleitoral não penal [= procedimento eleitoral não penal como garantia], da justiça administrativa [= procedimento administrativo como garantia], da justiça tributária [= procedimento tributário como garantia], da justiça ambiental [= procedimento ambiental como garantia], da justiça constitucional [= procedimento constitucional como garantia], etc. (obs. 1: entende-se aqui por justiça a braço do Poder Judiciário com especialidade temática na aplicação de determinado ramo do direito material, razão pela qual se pode falar em justiças, múltiplas, no plural; por outro lado, jurisdição, porque una, se pode usar apenas no singular) (obs. 2: em momentos de ativismo judicial desvairado, é importante sublinhar que a expressão procedimento constitucional significa procedimento objetivo de controle abstrato de constitucionalidade, que se presta também a proteger os cidadãos dos eventuais arbítrios do tribunal constitucional ou de quem lhe faça as vezes).

Logo, sempre que algum aspecto desses procedimentos discordar com o modelo garantista prescrito pela CF/1988, ele será inconstitucional. O legislador não dispõe do poder de enfraquecer a garanticidade de qualquer um desses procedimentos mediante «juízos de ponderação», «balanceamentos», «calibragens dogmáticas», «sopesamentos» ou outro artifício sabotador. Fazendo-o no todo ou em parte, o Estado legislador produz inconstitucionalidade total ou parcial. Pode variar em função das particularidades do ramo jurídico-material aplicável unicamente o formato do procedimento, não o seu grau de garanticidade. Invariavelmente, esse grau há de ser o máximo em todo e qualquer ramo procedimental. Quanto mais garantista é o procedimento, quanto menos instrumentalista ele é, tanto menor o risco de arbítrio judicial; quanto menos garantista é o procedimento, quanto mais instrumentalista ele é, tanto maior o risco de arbítrio judicial. Na própria estrutura da realidade está radicada essa relação de proporção invertida entre a «força disciplinante» do processo (e, portanto, dos seus diferentes desdobramentos procedimentais) e a «força indisciplinada» do poder (e, portanto, da jurisdição e dos seus desdobramentos em diferentes justiças). É lei mesma de física social.

 

IV

Isso significa que o modelo procedimental instituído pela lei ordinária federal [CF/1988, art. 22, I]: 1) se for garantista no todo, será constitucional por inteiro; 2) se for instrumentalista no todo, será inconstitucional por inteiro; 3) se for misto, será inconstitucional na metade instrumentalista e constitucional na metade garantista. Uma coisa é certa: um modelo procedimental positivo nunca poderá ser híbrido. O legislador brasileiro não tem o poder de mesclar, em proporções iguais, modelos processuais heterogêneos e, dessa maneira, arquitetar «amálgamas procedimentais». Isso seria possível se a CF/1988 não tivesse instituído um modelo constitucional de processo. Instituiu-o, porém, sem deixar ao legislador qualquer margem de discricionariedade para se decidir entre um modelo garantista, um modelo instrumentalista e um modelo misto. Enfim, não existe anomia constitucional em matéria processual; por isso, o legislador não tem soberania plena para configurar os diferentes ramos do direito procedimental como bem lhe apeteça. A adoção legislativa do modelo garantista é obrigatória ex vi constitutionis; do modelo instrumentalista, proibida. Definida a ossatura garantista do procedimento, duas alternativas restam ao legislador: 1) variar a musculatura do procedimento em função do direito material aplicável, criando um procedimento especial; 2) submeter a causa ao procedimento comum.  A especialização procedimental é feita pelo legislador in abstrato et ante causam, não pelo juiz in concreto et post causam. Usurpam função legislativa os juízes que flexibilizam o procedimento legal com o propósito de «adaptá-lo às particularidades do caso concreto e às especificidades do direito material».

Seja como for, o procedimento não pode ser meio garantista por força da lei constitucional e meio instrumentalista por força da lei infraconstitucional. Não é possível um procedimento extrapenal misto, que seja, ao mesmo tempo, garantista-adversarial por força da Constituição e instrumentalista-inquisitivo por força do Código de Processo Civil e das leis procedimentais extrapenais extravagantes. Outrossim, não é possível um procedimento penal misto, que seja, a um só tempo, garantista-acusatório por força da Constituição e instrumentalista-inquisitorial por força do Código de Processo Penal e das leis procedimentais penais extravagantes (obs.: o caráter instrumentalístico-inquisitorial do inquérito policial, do inquérito civil e da sindicância não contamina, respectivamente, a natureza garantístico-adversarial dos procedimentos da ação penal condenatória, da ação civil pública e da ação administrativa disciplinar). Um modelo misto, que seja semi-garantista ou semi-instrumentalista, é um modelo mezzo constitucional e mezzo inconstitucional. Nem mesmo se pode cogitar da possibilidade de um escalonamento legislativo, que torne o procedimento penal «ultra-garantista», o procedimento civil «semi-instrumentalista» e o procedimento trabalhista «ultra-instrumentalista» (que é o triste destino para o qual tem caminhado os sistemas jurídico-procedimentais positivos brasileiros): só o procedimento penal seria, aqui, totalmente constitucional.

 

V

Da mesma maneira, ao menos sob o ponto de vista dogmático, é inaceitável a um procedimento impuro, com predominância de garantismo e laivos de instrumentalismo. O predomínio da parcela constitucional sobre a parcela inconstitucional não convalida as inconstitucionalidades. Nada obstante um determinado procedimento seja acusatório-adversarial em essência, o seu eventual quê inquisitivo-instrumental afrontará a garantia constitucional do devido processo legal [CF/1988, art. 5º, LIV]. Tome-se o exemplo das iniciativas judiciais provatórias, que são o clímax representativo do modelo inquisitivo-instrumental: elas são inconstitucionais per se, ainda que inseridas excepcionalmente em um procedimento de substância acusatório-adversarial. Sem os poderes instrutórios do juiz, sobra no exemplo dado um procedimento acusatório-adversarial em estado de pureza bruta e imaculado de inconstitucionalidades. Pode haver quem defenda a conveniência e a oportunidade de se instituírem procedimentos com predominância de garantismo e laivos de instrumentalismo. Pode haver quem entreveja superioridade prática nesse tipo de hibridismo e, por razões de política processual, proscreva modelos de «pureza infactível». Todavia, isso é fazer pragmática, não dogmática. Contudo, trata-se de pragmática enviesada, que se presta a otimizar a performance de juízes e tribunais [= pragmática pró-jurisdicional], não robustecer a proteção do cidadão em juízo [= pragmática contra-jurisdicional].

Ora, como já dito, a garantística processual é a dogmática constitucional do devido processo legal como um direito subjetivo fundamental de liberdade do cidadão contra os eventuais arbítrios do Estado. Nesse sentido, ela: 1) fixa como ponto primordial de compreensão dos diferentes ramos procedimentais (civil, trabalhista, penal comum, penal militar, penal eleitoral, eleitoral não penal, administrativo etc.) a ideia de que todos eles devem ser meros desdobramentos infraconstitucionais de uma unidade constitucional de garantia chamada devido processo legal ou, em outras palavras, processo [CF/1988, art. 5º, LIV]; 2) estabelece que não deve haver obstruções na descida que vai da unidade constitucional do processo para a multiplicidade infraconstitucional dos procedimentos; 3) cria condições – por intermédio de uma complexa atividade analítico-organizativa de definições, conceituações, divisões, separações, sistematizações, classificações etc. – para que o jurista acomode em um todo sistemático o enorme arcabouço de textos vigentes de direito procedimental positivo, sendo a partir daí capaz de avaliar, resolver e prevenir problemas jurídico-procedimentais mediante raciocínios passíveis de controle objetivo-racional. Desse modo, o garantista do processo constrói um círculo juspositivista de ferro contra toda e qualquer intrusão sabotadora (teologismos, moralismos, economicismos, politicismos, esteticismos, psicologismos etc.), permitindo assim que os processos administrativo, legislativo e judicial cumpram a contento o papel constitucional que lhes cabe: tutelar o cidadão contra o arbítrio estatal.

 

*Juiz Federal em Franca/SP. Bacharel pela USP. Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP. Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (triênio 2016-2018). Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual. Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual

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