Processo, Jurisdição e Sistema de Justiça Multiportas: entre o Brasil e a Itália
Por Guilherme Christen Möller*
Muito me alegra ter a honra de usar este espaço da Associação Brasileira de Direito Processual para tecer algumas linhas sobre minha nova obra, intitulada com o título desta matéria: “Processo, jurisdição e sistema de justiça multiportas: Entre o Brasil e a Itália”[1], recentemente publicada pela Editora Thoth. Evidentemente, não deixarei de enfrentar assuntos ligados ao tema para falar apenas do livro, mas o farei descrevendo os bastidores de como nasceu essa produção, assim como suas principais contribuições e as ideias fundamentais que busquei transmitir com ela.
Desde os meus primeiros passos no estudo do direito processual, um tema que me prendeu a atenção foi a jurisdição. Do latim iurisdictio (ou jurisdictio), como lembrado por Oscar Joseph Plácido e Silva[2], a etimologia do termo concentra-se em representar a ação de administrar a justiça. Meu grande questionamento no ponto está na capacidade de ressignificar[3] ou reobjetificar a ideia de administração da justiça – focando apenas na ideia de “administração” e deixando a ideia de “justiça” para outros estudos, escritos por mãos mais habilidosas do que as minhas. Ao estudante do Direito que está dando os seus primeiros passos, ou ao jovem processualista que recém começou a se debruçar sobre as robustas linhas desenvolvidas por grandes autoridades na área, talvez ainda não esteja tão claro o pano de fundo da questão: desde que começamos a contar com uma ideia de jurisdição, ainda que em feições diferenciadas e muito distantes da forma como a concebemos atualmente, esse ato de administração adquiriu formas e dimensões variadas, curiosas e, em alguns casos, preocupantes.[4]
Sem adentrar em voltas históricas que alargariam esta matéria para dimensões que fugiriam ao seu escopo, parafraseando a pesquisa de José Rogério Cruz e Tucci e Luiz Carlos de Azevedo[5], a estrutura da ideia de jurisdição que utilizamos até hoje é um reflexo direto do período do direito romano da ordo iudiciorum privatorum, quando os pontífices organizaram a disciplina da autotutela entre os litigantes. Indiscutivelmente, essa configuração de administração, que nos remete ao final do século II a.C., foi sendo paulatinamente modificada em decorrência de aspectos fenomenológicos, sobretudo sociais, econômicos e políticos. Na obra, por exemplo, o recorte é aplicado principalmente na construção jurídica ítalo-brasileira, trabalhando com a ideia dos estágios culturais do processo[6] (praxismo, processualismo, sistematismo/sistematização, instrumentalismo etc.) e como a carga concentrada em cada um desses períodos manifesta noções diferenciadas – especialmente a partir do período sistemático italiano, em evolução ao cientificismo bülowiano[7] – acerca do processo e sua relação com a jurisdição, inclusive quando analisadas proposições formuladas por teóricos filiados à correntes diferenciadas em recortes teóricos particulares (Mortara, Chiovenda, Redenti, Carnelutti etc.).
A tentativa de identificar o sentido do pêndulo da jurisdição, para melhor compreender sua transformação, evidenciou um desacordo teórico antigo e górdio: a diferença entre a jurisdição e o processo. Quanto mais se avançou na coleta de material, debates e reflexões, mais difícil se tornou encontrar um ponto de cisão entre jurisdição e processo. Por “processo”, não se está tratando de sua feição macro[8], isto é, como ramo do Direito, mas sim do processo judicial, o qual esteve presente em todas as concepções teóricas e fragmentos de reflexões coletados, a ponto de levantar a questão: haveria jurisdição sem processo?[9] E processo sem jurisdição? Aqui, o problema pareceu mais contextual do que outro: essa associação quase que intrínseca apenas foi assim conformada em razão da forma como era concebida pelo sistema jurídico de determinado recorte histórico; melhor dizendo, não se nega que a jurisdição e o processo são elementos jurídicos perfeitos, os quais não pendem entre si para ter uma posição na dogmática processual, contudo, o mesmo não se aplica aos seus aspectos pragmáticos, de forma que a associação existiu (e até hoje existe) porque o processo era situado como o “instrumento”[10] de concretização da jurisdição, e esta, por sua vez, não parecia poder existir fora dele.
Aos que entendem que essa relação é harmônica e não comporta revisões, creio que minha fala se encerra nesta sentença. Em sentido contrário – e esse é o meu ponto –, penso que a jurisdição possa existir sob feições ainda pouco conhecidas – ou se são, essa relação não é claramente compreendida, sobretudo diante da dicotomia entre o que é “judicial” e o que é “extrajudicial”. Essa divagação surgiu enquanto eu começava a dar os meus primeiros passos no Direito, ainda no tempo da graduação, coincidindo justamente com o período de transição do CPC/1973 para o CPC/2015. Um ponto frisado enfaticamente pelos meus professores nas últimas cadeiras de processo e, sobretudo, nas aulas extras de revisão que fiz, estava na autonomia das partes (ex.: art. 190 do CPC) e na ampliação da utilização de figuras autocompositivas antes, durante e após o processo (art. 3º do CPC). Isso me fez voltar a atenção a essas “novidades” – pelo menos, em termos de codificação e na dimensão disposta – para tentar compreender o que estava por trás dessa ruptura radical entre um código que priorizava o aperfeiçoamento procedimental com fins litigiosos (1973) para um código que parecia se preocupar mais com o protagonismo direto das partes, seja de forma amistosa ou litigiosa (ex.: art. 357, § 3º, do CPC).
Ao pesquisar os antecedentes legislativos[11], constatei que essa “autonomia” das partes é mais complexa do que aparenta. O modelo jurisdicional ainda fortemente presente é o da substituição das partes, proposto por Giuseppe Chiovenda[12] na primeira parte do século XX: o Estado substitui os particulares e aplica o direito para dirimir o seu conflito. É evidente que teorias possuem tempo e lugar e devem ser avaliadas conforme a contextualização que as recepciona e aplica.[13] O Processo Civil não parou em Chiovenda, mas chama atenção a forma como esse modelo de pensamento restritivo se enraizou na dogmática processual, especialmente porque foi concebido, no direito italiano, durante o estágio conhecido como sistematização, no qual houve a conceituação e delimitação das principais instituições do processo.[14] Ainda na Europa, o Código de Processo Civil italiano de 1940 – ainda em vigência – não parece ter se preocupado em acentuar a autonomia das partes. Isso possui uma explicação histórica: embora composta por uma excelente comissão de processualistas, a Itália enfrentava o período do fascismo de Benito Mussolini; para o Estado autoritário, não é interessante que haja autonomia entre os particulares, de modo que, quanto mais os conflitos estivessem sob sua supervisão, maior seria a concentração de sua soberania política.
Qual é, então, a relevância do contexto anteriormente sintetizado? O Processo Civil brasileiro absorveu fortemente a doutrina italiana, sobretudo no contexto do Largo de São Francisco (USP), com a vinda de Enrico Tullio Liebman[15] ao Brasil, catapultando a nossa dogmática processual para aquelas linhas, aperfeiçoadas pela ideia de instrumentalidade do processo e difundidas na formação das primeiras bases da Teoria Geral do Processo[16] brasileira. Fechando esse pequeno giro, aprendemos a pensar que o processo é um instrumento de exercício da jurisdição, ratificando, sempre que utilizado, o poder do Estado – eis aí o problema de tentar “isolar para compreender” esses três elementos (Estado, processo e jurisdição). Não diria que esse posicionamento está equivocado, mas ele restringe a dimensão de processo e, sobretudo, de jurisdição. Sem adentrar em aspectos pormenorizados da legislação ou de doutrinas ítalo-brasileiras – ainda que fundamentais e devidamente tratados na obra, a ideia de restringir a jurisdição versus a ideia de prestigiar a autonomia e a autocomposição, levou-me a voltar minha atenção ao que mais tarde viria a conhecer como “meios adequados de solução de conflitos”, “formas alternativas de solução de conflitos” até chegar à ideia do “Tribunal Multiportas”.
Em síntese geral, a ideia foi apresentada por Frank Sander em sua conferência Varieties of dispute processing[17], na Pound Conference de 1976, e consiste em direcionar a forma de solução mais adequada ao tipo específico de conflito. Embora engenhosa, a proposta enfrenta dificuldades práticas: afinal, qual seria o critério para definir o que é mais adequado para cada caso? A pesquisa, desenvolvida na perspectiva do cenário estadunidense, posteriormente adaptada sob a designação Multi-Door Courthouse System[18] (Tribunal Multiportas) e amplamente difundida pelo Poder Judiciário e pelo setor empresarial, sobretudo em razão do alto grau de congestionamento nas Cortes e elevados gastos com os processos registrados no período de seu desenvolvimento. A ideia também gerou uma contracorrente de críticos, capitaneada pelas antropóloga Laura Nader[19] – aliás, teóricos como Owen Fiss[20], Michele Taruffo[21] e Mauro Cappelletti[22] já haviam alertado para algumas feições que foram adicionadas à ideia geral do Tribunal Multiportas. Ainda que a teorização de Sander tenha sido projetada para uma contextualização específica e com a intenção de solucionar problemas estruturais do Poder Judiciário (tempo, gastos, acesso etc.), chama atenção a possibilidade de constatar que sim, parece haver uma abertura na relação entre o processo e a jurisdição, restando saber como ela se comportaria em todo esse conjunto. Essa inquietação constituiu o cerne da pesquisa doutoral[23], considerando-se os sistemas jurídicos italiano e brasileiro e tentando, ainda que infrutiferamente, dialogar com o quadro atual de índices globais de acesso à justiça, a partir da iniciativa brasileira Global Access to Justice Project – parte destacada da obra e atualmente no prelo para a publicação como artigo.
Durante o Doutorado, fui compelido a encerrar a análise nos elementos do Multi-Door Courthouse System, especialmente por se tratar de algo extremamente progressista, cuja análise demandava diálogo entre dois sistemas que, embora semelhantes, são hoje dogmaticamente opostos (inegavelmente, a Itália é mais conservadora do que o Brasil). Todavia, após a defesa, percebi a necessidade de retomar e ampliar a pesquisa, a fim de aprofundar e compreender com maior clareza os contornos da minha inquietação acerca da jurisdição e do que, doravante, passo a chamar de “sistema de justiça multiportas”, objeto de altíssima complexidade, difícil de conceituar e ainda mais de delimitar. Não se está falando mais apenas sobre a autonomia das partes e da autocomposição. Como destacado na obra, essa talvez seja a principal característica da primeira fase do sistema de justiça multiportas. Atualmente, observa-se uma cadeia densa e abrangente de agentes (Ministério Público, Advocacia, Procuradorias, Defensoria Pública, Tribunais de Contas e administrativos, PROCON, Serventias Extrajudiciais etc.) e figuras (Online Dispute Resolution, dispute boards, procedimentos administrativos variados, atividades extrajudiciais, a exemplo da desjudicialização da execução civil, etc.) que compõem, de diferentes formas, a justiça civil.[24]
A questão, que teve origem em um interesse inicial ainda na graduação sobre as transformações na ideia de jurisdição, revela-se agora ainda mais complexa: qual a relação desse cenário anteriormente delineado do sistema de justiça multiportas com o processo e a jurisdição, dentro da tradição que buscamos conservar e aperfeiçoar? Aparentemente, algo fundamental. Com base nas reflexões de Ada Pellegrini Grinover[25], ao admitirmos a existência de atividades desenvolvidas fora do Poder Judiciário com inegáveis aspectos jurisdicionais – mas que não são reconhecidas como tais pela ultrapassada dicotomia “judicial/extrajudicial”, que a utiliza como critério de separação –, faz sentido afirmar que o sistema de justiça multiportas, em suas diversas feições, expressa a ideia de administração da justiça (não na sua forma clássica), podendo situá-lo como parte da jurisdição; e, ao reconhecermos que a jurisdição integra a teoria do processo, também reconhecemos que esse sistema, ainda que atualmente pouco compreendido, nela se insere, reconfigurando temas como democracia participativa, acesso à justiça e acesso aos tribunais etc. e introduzindo noções atualizadas sobre coexistência de figuras do sistema, qualificação do processo judicial, figuras antagônicas ao Processo Civil etc. Em apertada síntese, estas são algumas reflexões introdutórias que são aprofundadas no meu “Processo, jurisdição e sistema de justiça multiportas: Entre o Brasil e a Itália”. Convido à leitura e diálogo sobre o tema, reiterando meu agradecimento à Associação Brasileira de Direito Processual pela oportunidade de contribuir com esta prestigiada coluna.
Notas e Referências:
*Dottore di Ricerca in Scienze Giuridiche pela Università degli Studi di Firenze (UniFi) e Doutor e Mestre em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do Instituto Iberoamericano de Derecho Procesal (IIDP) e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Advogado e Sócio do escritório Coelho, Murgel e Atherino Advogados. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0168074867678392. E-mail: contato@guilhermechristenmoller.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6237-3166.
[1] MÖLLER, Guilherme Christen. Processo, jurisdição e sistema de justiça multiportas: Entre o Brasil e a Itália. Londrina: Thoth, 2025.
[2] SILVA, Oscar Joseph de Plácido e. Vocabulário Jurídico. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 802.
[3] CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil. Tradução de Luiz Abezia e Sandra Drina Fernandez Barbery. Campinas: Bookseller, 1999. v. 1. p. 96
[4] GOLÇALVES, Marcelo Barbi. Teoria Geral da Jurisdição. Salvador: JusPodivm, 2020.
[5] TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz Carlos de. Lições de história do Processo Civil romano. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 36.
[6] JOBIM, Marco Félix. Processo Civil brasileiro: suas fases culturais e escolas. 5. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022. p. 193-206.
[7] BÜLOW, Oskar von. Die Lehre von den Processeinreden und die Processvoraussetzungen. Giesen: Emil Roth, 1868.
[8] RODRIGUES, Horácio Wanderlei; LAMY, Eduardo de Avelar. Teoria Geral do Processo. 7. ed. rev., atual. e ampl. Barueri: Atlas, 2023. p. 10/11.
[9] CABRAL, Antonio do Passo. Jurisdição sem decisão: non liquet e consulta jurisdicional no direito brasileiro. Salvador: JusPodivm, 2023.
[10] TESHEINER, José Maria Rosa. Elementos para uma Teoria Geral do Processo. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 1.
[11] ASSIS, Araken de. Processo Civil brasileiro. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. v. 2: parte geral. t. 1: institutos fundamentais. p. 1084.
[12] CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Tradução de J. Guimarães Menegale. São Paulo: Saraiva, 1969. v. 2: as relações processuais, a relação processual ordinária de cognição. p. 3.
[13] BEDUSCHI, Leonardo; HÜLSE, Levi. Anotações sobre a evolução do conceito de jurisdição. Revista Eletrônica Direito e Política, v. 8, n. 3, p. 2029-2055. p. 2051/2052.
[14] CARNELUTTI, Francesco. Metodi e risultati degli studi sul processo in Italia. Il Foro italiano, v. 64, p. 73-84, 1939. p. 76.
[15] GRINOVER, Ada Pellegrini. Magistério de Enrico Tullio Liebman no Brasil. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo. v. 81. São Paulo, 1986. p. 98-102. p. 99/100.
[16] VIDIGAL, Luís Eulálio de Bueno. Prefácio. In: CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 5/6.
[17] SANDER, Frank. Varieties of dispute processing. In: Levin, L. A.; Russel, W. R. (Orgs.). The pound conference: perspectives on justice in the future. Saint Paul: Leo Levin & Russel R. Wheeler, 1979.
[18] SANDER, Frank. The Multi-Door Courthouse: Settling Disputes in the Year 2000. HeinOnline: 3 Barrister 18, 1976.
[19] NADER, Laura. Disputing without the force of Law. The Yale Law Journal, v. 88, p. 998- 1022, 1979.
[20] FISS, Owen. Against Settlement. The Yale Law Journal, v. 93, n. 6, p. 1073-1090, 1984.
[21] TARUFFO, Michele. Uma alternativa às alternativas: modelos de resolução de conflitos. Tradução de Marco Félix Jobim. In: ______. Ensaios sobre o Processo Civil: escritos sobre processo e justiça civil. Organização e revisão de tradução de Darci Guimarães Ribeiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. p. 28-43.
[22] CAPPELLETTI, Mauro. Os métodos alternativos de solução de conflitos no quadro do movimento universal de acesso à justiça. Revista de Processo, v. 19, n. 74, p. 82-97, 1994.
[23] MÖLLER, Guilherme Christen. O novo pacto de acesso à justiça (Global Access to Justice Project) e o Direito Processual Civil: uma proposta na perspectiva da experiência ítalo-brasileira do Tribunal Multiportas. Tese (Doutorado em Direito) – Escola de Direito, Doutorado em Direito Público, Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Tesi – (Dottorato di Ricerca in Scienze Giuridiche), Dipartimento di Scienze Giuridiche, Dottorato di Ricerca in Scienze Giuridiche, Università degli Studi di Firenze. Firenze/São Leopoldo: 313p., 2024.
[24] DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Introdução à justiça multiportas: sistema de solução de problemas jurídicos e o perfil do acesso à justiça no Brasil. Salvador: JusPodivm, 2024.
[25] GRINOVER, Ada Pellegrini. Ensaios sobre a processualidade: fundamentos para uma nova teoria geral do processo. Brasília: Gazeta Jurídica, 2018. p. 20.