Quando a Justiça Pede Acordo e Penaliza Quem Diz Não: O Caso TRT-2 e a Crise do Devido Processo
Por Lúcio Delfino*
A recente decisão do TRT da 2ª Região — que aplicou multa de 8 % do valor atualizado da causa a uma empresa por não aceitar, de modo reiterado, celebrar acordo[1] — constitui um exemplo revelador daquilo que, desde o nascedouro do CPC/2015, já vinha sendo objeto de advertência por parcela da doutrina crítica: a conversão da não adesão à conciliação em conduta passível de censura (DELFINO, Lúcio. Código de Processo Civil Comentado. Vol. 1. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2020, p. 52). Ou seja, o hiperativismo judicial que grassa sem freios no Brasil oferece mais uma “lição” perturbadora: negar-se a compor passa a ser, por distorção interpretativa, qualificado como ilícito.
O art. 3º do CPC/2015 incrementou — com entusiasmo e aplausos incontidos — o dever estatal de incentivar arranjos consensuais. É, sem dúvida, sintomaticamente simbólico o fato de a regra ter sido inserida, de forma estratégica, no rol das “Normas Fundamentais do Processo Civil”. À primeira vista, trata-se de uma diretriz promissora, alinhada às aspirações contemporâneas de pacificação social.[2] O risco, contudo — agora confirmado pela decisão mencionada — é o de que esse incentivo se degenere em imposição velada, com efeitos deletérios sobre garantias elementares. E dado que, por estas bandas, basta o apelo ideológico ou a boa intenção para subverter o texto legal, de pouco serviu a norma inequívoca que, em sua literalidade, condiciona o apoio à autocomposição à sua efetiva viabilidade — como bem expressa a cláusula “sempre que possível” (CPC/2015, art. 3º, § 2º).[3]
A conciliação, em si virtuosa, não deveria servir como critério de avaliação funcional, tampouco embasar sanções quando rejeitada. Nesse sentido, a Resolução nº 125/2010 do CNJ — que estabelece o desempenho autocompositivo como referência meritocrática para promoção na carreira da magistratura —, ao lado de políticas de estímulo à negociação assistida, tem contribuído para a edificação de um ethos gerencial que, não raro, desfigura o já combalido perfil garantista do processo.
Nesse contexto, a decisão do TRT-2 projeta inquietações mais amplas. A recusa da parte ré em transigir foi reputada como “litigância predatória” — na verdade, é a própria decisão que se mostra duplamente predatória: tanto à legalidade quanto ao bom senso, já que puniu quem apenas insistiu em exercer garantias constitucionais básicas. Em vez de se identificar dolo processual, manipulação de provas ou atuação temerária, penalizou-se a escolha de se defender e de ver a controvérsia devidamente apreciada pelo órgão competente. Talvez se esteja diante de mais um capítulo do livro, já em versão brochura, que cataloga as incontáveis inovações judiciais no país: o chamado panconciliacionismo — a sobreposição da cultura da composição à função jurisdicional, com o esvaziamento progressivo do processo enquanto espaço de contenção do poder.
A Constituição de 1988 consagrou o processo como cláusula de resistência, mecanismo de legitimação e de controle da jurisdição (CF/1988, art. 5º, LIV). O art. 1º do CPC/2015 — embora redigido em termos tautológicos — reafirma essa vocação contramajoritária, concebendo o processo como garantia de liberdade e de contenção dos excessos do poder, e não como mero vetor de realização estatística.
Penalizar a oposição à dinâmica conciliatória significa privilegiar um utilitarismo produtivista que pouco tem de republicano. O impulso oficial não autoriza o sancionamento de quem opta pela solução adjudicada. O acesso à justiça, por sua vez, não se coaduna com o dever de aquiescer a propostas de acordo — e menos ainda é dado ao Estado-juiz compelir comportamentos transacionais por via oblíqua.
Em suma, a conciliação é evidentemente válida — mas jamais obrigatória.[4] Quando a jurisdição reprime o direito de defesa — base da liberdade de qualquer cidadão submetido ao poder estatal — sob o nobre pretexto de “fomentar a paz”, o que se observa é a erosão da raiz de sua autoridade. Nesse diapasão, a lógica do desempenho substitui a prudência decisória; e a ânsia de pacificar e esvaziar escaninhos eclipsa o dever de julgar.
Oxalá esse acórdão não se converta em paradigma, tampouco sirva de modelo para futuras decisões — que permaneça, isso sim, como exceção dissonante, e não como ensaio de uma nova ortodoxia hermenêutica que inverta os fundamentos do devido processo. Em tempos de crescente valorização de métricas gerenciais e de um protagonismo jurisdicional por vezes desmedido, é imperioso reafirmar que a jurisdição não pode se tornar meio de coação velada, nem a composição consensual ser elevada à condição de dever jurídico. O processo, por sua natureza, é espaço de oposição e de garantia — não de conformação compulsória à racionalidade da eficiência ou da produtividade institucional.
Notas e Referências:
*Advogado. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. Ex-presidente da Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPro.
[1] MIGALHAS. TRT-2 multa por litigância abusiva “reversa” empresa que negou conciliar. São Paulo, 12 jul. 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/434434/trt-2-multa-por-litigancia-abusiva-reversa-empresa-que-negou-conciliar. Acesso em: 15 jul. 2025.
[2] Cumpre, desde logo, registrar um acerto normativo digno de destaque. A atuação do conciliador ou mediador, onde houver, é legalmente exigida como necessária na audiência inaugural de conciliação ou mediação, nos termos do art. 334 do CPC/2015. Trata-se de previsão salutar, pois assegura a indispensável separação entre a etapa negocial e a função decisória do magistrado. O princípio da confidencialidade, previsto no art. 166 do mesmo Diploma legal, fortalece essa separação ao vedar expressamente o aproveitamento, para outros fins, de informações reveladas durante a tentativa autocompositiva (art. 166, §§ 1º e 2º). Tal estrutura normativa encontra fundamento não apenas na proteção da intimidade processual e na liberdade das partes para negociar, mas também na proteção da imparcialidade judicial. A literatura especializada e pesquisas empíricas em psicologia cognitiva demonstram que juízes não estão imunes a vieses inconscientes, como o viés de confirmação ou o ancoramento, que podem ser desencadeados por informações antecipadamente recebidas em contexto negocial, ainda que desprovidas de contraditório ou irrelevantes à luz do direito estrito. Evitar esse contato direto entre o julgador e os fatos narrados informalmente nas tentativas de composição é, portanto, medida não apenas de política judiciária, mas de profilaxia da função jurisdicional.
[3] “Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. […] § 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. […]”
[4] O § 2º do art. 166 do CPC/2015 dispõe, com clareza, que “o conciliador […] poderá sugerir soluções para o litígio, sendo vedada a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem”. Ora, sendo o julgador também legitimado a fomentar soluções consensuais, é coerente entender que a vedação a constrangimentos e intimidações se lhe aplica, mutatis mutandis, sempre que desempenhar essa função. Nessa linha, a imposição de sanções pecuniárias como reação à recusa de conciliar assume, na prática, feição análoga à intimidação ou à coação indireta, incompatível com os limites legais da autocomposição e com a própria natureza voluntária que a caracteriza. Interpretar em sentido contrário significaria, na essência, admitir que o juiz pode fazer por via oblíqua — mediante ameaça de prejuízo processual — aquilo que está expressamente vedado aos demais agentes facilitadores do consenso.