Um pouquinho sobre o positivismo jurídico democrático
Por André Luiz Maluf de Araújo[1]
Em tempo que tanto falamos em ativismo judicial, como a prática de juízes tomarem decisões com base em suas visões políticas, em vez de sua interpretação honesta da lei vigente. Isso contrasta com a contenção judicial, que enfatiza de um lado, a deferência aos precedentes e de outro a relutância em reinterpretar a lei estabelecida, vale a pena falarmos um pouquinho sobre o positivismo jurídico democrático (nada de positivismo antípoda), como uma teoria de como a contribuição moral no ponto de aplicação deve (não “é”, mas “deveria”) ser mantida no mínimo – e, portanto, como esse “deveria” se desenrola em relação as abordagens judiciais apropriadas para interpretação, que tipo de leis o legislador deve promulgar, a conveniência ou não de uma declaração de direitos, as deficiências do direito internacional, e qual lado prevalece no debate positivismo jurídico versus direito natural.
Gosto de pensar o positivismo jurídico, não apenas como uma teoria analítica antiquada que busca definir o direito, mas uma teoria normativa ou ética que expressa uma preferência por um certo tipo de sistema jurídico, onde, pelo menos de acordo com minha própria versão, há um conjunto de regras gerais bastante específicas que podem ser identificadas e aplicadas sem recorrer a questões morais controversas ou outras questões especulativas, um sistema que é possível para os cidadãos entender e seguir (sem dúvida com aconselhamento jurídico em áreas complexas) e que os juízes podem aplicar sem recorrer a julgamentos morais controversos de primeira ordem.
Jeremy Waldron[2] tende a usar o termo “positivismo normativo”, e as vezes chamado por alguns de positivismo democrático. Penso que essa teoria do ‘deveria’, se baseia em que a moralidade deve ser mantida distinta.
Herbert Lionel Adolphus Hart[3] apresenta esse argumento em sua obra traduzida, quando adota a posição de observador externo, o Marciano Visitante. Mas, a partir da metade do da obra, ele muda de assunto e adota a posição de Cidadão Preocupado. Hart em nenhum momento argumenta que as pessoas (no plano do “é”) separam a lei da moralidade. Claramente, algumas pessoas o fazem e outras não. Hart, em vez disso, argumenta que as pessoas deveriam (no plano do “deveria”) manter a lei e a moralidade separadas, as regras legais e as regras morais.
Observe que, mesmo quando Hart passa da posição desinteressada do Marciano Visitante para a de um participante do sistema, ele se recusa a adotar (implicitamente ou não) a posição de Juiz. Ronald Dworkin[4], é claro, o faz.
Em certo sentido, a conexão entre o positivismo jurídico analítico (a melhor forma de entender o que é o conceito de direito, seja uma compreensão haitiana ou alguma outra, até mesmo dworkiniana) e o positivismo jurídico democrático (como o direito deve ser criado e interpretado e em que ponto a moralidade deve ser infundida nele) é totalmente contingente. Não há erro conceitual em dizer, a título de exemplo, que o direito é infundido com princípios de alguma maneira dworkiniana e que os juízes constroem os melhores ajustes de fundo hercúleos, mantidos juntos neste estágio de segunda ordem por suas próprias visões morais, e ainda assim dizer que devemos tentar nos livrar o máximo possível dessa contribuição moral do ponto de aplicação. Em outras palavras, as visões analíticas de alguém no plano do “é” são logicamente separadas das visões normativas de alguém no plano do “deveria”.
Mas se não buscarmos quaisquer vínculos conceituais ou lógicos entre a adesão ao positivismo jurídico democrático e a opção por qualquer versão específica de compreensão do direito no plano do “é”, e, em vez disso, perguntarmos de que perspectiva as pessoas tendem a ver a relação entre direito e moralidade, então acho que podemos, no mínimo, identificar uma tendência e fazer uma generalização.
É a seguinte. Aqueles, como Tom Campbell[5], Jeremy Waldron[6], Jeff Goldsworthy [7], que no plano do “deveria” buscam minimizar a contribuição moral no ponto de aplicação –para reduzir o escopo para julgamentos ou avaliações morais particularizados (e pior ainda, autoritários) dos juízes – tendem a querer ver o direito através dos olhos de Cidadãos Preocupados (e Cidadãos Preocupados em uma democracia, não em alguma ditadura totalitária ou estado teocrático governado por clérigos). Assim fez Hart, implicitamente, ao argumentar que deveríamos manter a lei e a moral separadas porque ter uma plataforma moral separada a partir da qual avaliar a lei (à maneira benthamita) tornará mais provável que nós, cidadãos, possamos desobedecer a leis perversas e percebamos que a lei é uma coisa, a moral outra, e que, quando a situação aperta, é esta última, e não a primeira, que deve exigir nossa lealdade.
Em vez disso, tente olhar para o direito através dos olhos de um juiz (ou mesmo de um ser onisciente, embora essas duas perspectivas não sejam idênticas, a despeito das crenças de alguns juízes de alto escalão). Agora se torna muito mais difícil — não logicamente impossível, mas praticamente difícil — pensar que devemos minimizar a contribuição moral no momento da aplicação.
Da mesma forma, a partir desta perspectiva do juiz, torna-se muito mais difícil muitos concordarem com Hart, ao pensarem que devemos e podemos manter o direito e a moral separados. Da perspectiva do juiz, por que não deixar em aberto a possibilidade de infundir um teste moral (ou seja, o do juiz) na determinação do que contará como direito ou como interpretar um direito, e por que não misturar ou elidir direito e moralidade (ou seja, a moralidade do juiz em qualquer caso específico, em oposição a qualquer moral amorfa, elevada às alturas olímpicas das abstrações morais e, portanto, ao sentido de refinar o desacordo)?
Tenho pendido aqui, como afirmado por Campbell, quando ele defende como o direito deveria ser, é melhor (implícita ou explicitamente) se colocar no lugar do cidadão preocupado e renunciar à vantagem do juiz. É a partir da vantagem do cidadão preocupado em minimizar a contribuição moral dos juízes parece atraente, também que aprovar leis sem abstrações vagas, amorfas e que refinam o desacordo parece atraente, para dar consideravelmente mais peso à certeza em vez da flexibilidade no ponto de aplicação parece atraente, para compreender a noção do Estado de Direito em termos processuais em vez de substantivos parece atraente, ao invés de recusar-se a fazer de juízes não eleitos os árbitros das questões morais altamente discutíveis e controversas da sociedade sob a égide de uma declaração de direitos parece atraente. Em suma, o positivismo jurídico democrático é persuasivo e atraente na medida em que se opta pela vantagem do cidadão preocupado em vez da do Juiz. Mas, uma vez que você tenha optado por esse caminho, então eu acho que, como eu, você tem uma probabilidade esmagadora — como uma questão empírica, e não lógica ou necessária — de achar a essência das visões do positivismo jurídico democrático atraentes.
É esse desejo de adotar a perspectiva do cidadão preocupado que fornece um elo, um elo reconhecidamente contingente, entre a insistência haitiana ou benthamita[8] (e se você incluir o homem mau e seu cinismo amoral entre as fileiras de seus cidadãos, então, também, um holmesiano[9]) de que devemos manter separados o “direito como ele é” e o “direito como deveria ser”.
Assim, podemos falar em um teoria do positivismo jurídico democrático como sendo uma forma normativa ou moral de positivismo jurídico que leva o positivismo além da análise conceitual e empírica para o âmbito da avaliação e prescrição, na medida em que pelo menos parte do que a teoria aborda é recomendar um tipo específico de sistema jurídico, um que leve as regras (de suficiente clareza, inteligibilidade e precisão) a sério e busque minimizar o papel do julgamento moral na compreensão e implementação efetivas dessas regras cujo conteúdo deve ser determinado pelo processo democrático.
Se implementadas, os benefícios consequentes (pelo menos da perspectiva do cidadão preocupado) serão concretizados em termos que incluem maior previsibilidade das decisões judiciais, maior escopo para satisfazer expectativas e planejar a própria vida e, crucialmente, maior igualdade de contribuição – ainda que minúscula em termos absolutos – para resolver as controvérsias políticas e morais contenciosas e discutíveis da sociedade.
Dado o tempo e o espaço limitados que restam, permitam-me terminar com uma pequena questão, um esclarecimento e um lamento.
O positivismo jurídico democrático exige que se tome uma posição sobre como os juízes devem interpretar a lei, e isso precisa ser feito em um mundo que – como questão empírica – parece deficiente. Há normas vagas em abundância; estatutos incorporando provas morais amorfos abundam; declarações de direitos foram consolidadas e promulgadas; e muito mais. Essa realidade, no entanto, não elimina a necessidade de identificar a estratégia mais aceitável para a tomada de decisões judiciais quando o sistema jurídico é falho.
Podemos pensar em uma forma de textualismo, que situa os textos em seus contextos. Esse textualismo, não deve ser equiparado a um literalismo que evita o contexto, nem a qualquer versão forte de interpretação proposital, em que os juízes usam o texto para encontrar o propósito final ou abrangente da legislação e, em seguida, fazem o que for necessário para atingir esse propósito neste caso ou em casos semelhantes.
Tampouco é intencionalismo. Em vez disso, o textualismo contextual– ou o que se chama de contextualização, é uma forma de originalismo, no sentido de que gera razões para enfatizar os textos originais.
Aqui uma pequena crítica. Acredito que, quando se trata de estatutos ordinários, qualquer abordagem de significado claro do texto oficial em contexto pode ser vista como uma forma de sustentar o domínio do legislativo, pelo menos a longo prazo. Isso decorre do fato de que, se o significado normal do texto oficial difere das intenções dos proponentes (nos raros casos em que há evidências persuasivas dessa divergência), optar pelo significado claro ainda deixa espaço para uma resposta legislativa.
Pode-se aprovar um novo estatuto nos moldes usuais e superar os juízes, sem dúvida também aprendendo uma lição sobre a conveniência de promulgar textos oficiais cujo significado claro não diverge do significado pretendido.
Mas isso claramente não é verdade no caso da interpretação constitucional. O significado claro aqui apresenta fragilidades muito mais graves. Em primeiro lugar, as constituições são formuladas em termos mais gerais, em geral, do que a maioria dos estatutos. O recurso ao significado claro aqui, muitas vezes, simplesmente entrega a decisão aos juízes do ponto de aplicação porque, quando aplicado à disputa perante o tribunal, não há uma resposta de significado claro. O mesmo, se aplica às declarações de direitos, sejam elas arraigadas na constituição ou em forma estatutária (pois, neste último caso, sabemos que, na prática, a partir de inúmeras evidências empíricas e apesar das garantias dos proponentes, o legislativo praticamente nunca consegue reunir a coragem política para contradizer os juízes).
Muito ainda poderia ainda ser escrito, mas encerro aqui com um lamento. Ele nos leva de volta ao ponto anterior sobre como a posição que se adota pode afetar os atrativos percebidos do positivismo jurídico democrático. E é direcionado aos professores de direito, a todas as pessoas presentes hoje. Muitos professores de direito pensam sobre o direito, implícita ou explicitamente, da perspectiva do juiz. Eles se imaginam na mais alta corte da jurisdição, decidindo aquelas raras falhas no sistema, casos que chegam a um tribunal de apelação final, em vez de considerar como as coisas seriam do ponto de vista do cidadão.
Notas e Referências:
[1] Advogado e Professor. Mestrado em Proc. Civil pela USP, especialista em Dir. Civil, Administrativo e Constitucional. Membro da ABDPRO e do IPDC. malufcg@hotmail.com
[2] A dignidade da legislação / Jeremy Waldron ; tradução Luís Carlos Borges, revisão da tradução Marina Appenzeller. São Paulo, Martins Fontes, 2003.
[3] O conceito de Direito; Hart. Martins Fontes. 2009
[4] O Império do Direito Capa comum- Dworkin – Edição padrão, 12 janeiro 2014, Edição Português, Martins Fontes.
[5] CAMPBELL, Tom. Prescriptive Legal Positivism: Law, Rights and Democracy. Londres: UCL Press, 2004.
[6] WALDRON, Jeremy. Normative (or Ethical) Positivism. In: COLEMAN, Jules (Ed.). Hart’s Postscript: Essays on the Postscript to “The Concept of Law”. Oxford: OUP, 2001.
[7] Judicial Power, Democracy and Legal Positivism (Applied Legal Philosophy) (English Edition), 2000.
[8] An Introduction to the Principles of Morals and Legislation (with linked TOC) (English Edition), Edição Inglês | por Jeremy Bentham | 28 abr. 2010
[9] The Common Law Edição Inglês | por Oliver Wendell Holmes , 1991.