Caçadores de Dívidas Prescritas: os escritórios garimpeiros de despojos
Introdução
A atividade advocatícia atual não é empresa de fácil execução. Sabe-se que o contexto moderno, as dificuldades ante a concorrência acirrada, os percalços formais, a desigualdade de condições, mormente entre os atores que estão em lados opostos dos balcões dos cartórios judiciais, e – até mesmo – a falta de vontade política na prestação do serviço jurisdicional, erguem-se em inclementes barreiras que se postam entre a labuta dinâmica da advocacia com a necessidade de se obter o sustento material e a verdadeira consecução da justiça.
Em sociologia usa-se termo “inovação” para designar o desvio de comportamento inusual dos seres sociais quando desenvolvem uma peculiar “criatividade” para solucionar um problema ou alcançar o objetivo de maneira a pavimentar atalhos, facilitar meios “engenhosos” em prol do fito a ser alcançado. O inovador sociológico, pode-se resumir, é o que concorda com os fins/objetivos, mas não está disposto a assumir as dificuldades ou consequências dos meios. Um exemplo extremo pode-se usar a pessoa que entende que quer ganhar dinheiro, concorda que ser uma cidadão de sucesso para a sociedade é ter um bom patrimônio; todavia, não concorda que tem que trabalhar arduamente para isso, daí inova com outros meios mais acessíveis. Assim, a inovação não é propriamente um proceder que preserve em essência a ética. Desfoca a linha limítrofe da axiologia e tenta – com aparente respaldo legal – transformar em legítimo um pleito que, amiúde, não é ético e tampouco moral.
Observa-se, nesse diapasão, empresas/escritórios que se utilizam de verdadeiros “falácias” legais para tentar “recuperar” créditos prescritos “no atacado,” levando como estratégia alguns elementos que ora podemos classificar:
- A funâmbula distinção processual (legal, jurisprudencial e doutrinária) entre, prescrição, decadência e prescrição intercorrente;
- O desconhecimento dos devedores acerca da natureza jurídica do débito; e,
- A insistência contumaz inconveniente que causa o desconforto psicológico do suposto devedor, mormente os bem-intencionados que – por um ou outro motivo – caíram em uma esparrela armada pelas instituições de crédito.
Analisaremos, pelo prisma desses três parâmetro a questão dos escritórios de cobrança/advocacia que garimpam dívidas prescritas de terceiros.
- Dívidas Prescritas
Via de regra as instituições financeiras (de crédito) captam clientes oferecendo atrativos empréstimos cuja contratação é estabelecida de maneira prática, rápida e – como ostentam nos jargões publicitários – sem qualquer burocracia. Os juros, incontestavelmente no Brasil, sabem-se extorsivos para qualquer comparação com o padrão mundial.
O alto risco é a justificativa para a extorsão. Ou seja, o tomador que paga regularmente, já suportou e cobriu com folga possível inadimplência. Os lucros divulgados anualmente pelo oligopólio bancário brasileiro deixam mais do que patente que tal risco é deveras insignificante.
O volume e a alta lucratividade das operações com cartões de crédito, créditos pessoais diretos e cheques especiais imputam naturalmente um acumulo de dívidas e o já conhecido “efeito bola de neve”, e aqui não cabe mais alegar o já superado anatocismo, visto o acolhimento jurisprudencial e doutrinário da capitalização do montante devido.
Em suma: é muito fácil tomar o empréstimo; os juros são extorsivos; não há uma efetiva preocupação da instituição em evitar que a dívida saia do controle. O controle, e o cuidado – pode-se dizer – é exercido meramente por um ou outro gerente do setor sempre coagido, principalmente nas instituições privadas, pelo superior hierárquico, em relação aos denominados “índices de performance da carteira”. O banco, contudo, em dimensão institucional, pouco se movimenta, deixando, na maioria das vezes, a dívida prescrever. Diretamente, por não ajuizar cobrança, ou ainda que ajuizada, pela falta de interesse em manejar a ação impetrada (intercorrente).
A inscrição no órgão particular/privado/intra-corpus SERASA, também prescreve, embora se fale em tom de ameaça de um cadastro secreto que negativa o devedor para sempre (SIC). Qualquer coisa substanciada – quem sabe – numa sentença de Direito Canônico Medieval.
Para ficar mais claro a natureza jurídica e a incidência da prescrição em tais contratos:
- Os contratos são de adesão, atual e majoritariamente remotos por meios eletrônicos.
- O crédito é de natureza pessoal, geralmente sem aval, e sem qualquer garantia real.
Pelas duas premissas acima, interpreta-se as cláusulas controversas em favor do aderente que não redigiu ou teve a possibilidade de discutir quaisquer parâmetros, com privilegio, sem embargos, na maior possibilidade de arrependimento; e, não será alcançado diretamente qualquer bem do devedor (exceto em fase de execução), excluindo-se, todavia os inalienáveis com base no Código de Processo Civil Brasileiro.
- Os escritórios de cobrança
Como já dito, o montante é insignificante diante dos suntuosos lucros bancários. As instituições, entretanto, precisam aparentar eficiência e equilíbrio, principalmente as que têm sede no exterior, visando equacionar positivamente os balanços e melhor a imagem para os grandes investidores/acionistas, “vendem” (por cessão) a carteira de créditos prescritos, também chamado de créditos podres “no atacado” por módicos valores[1].
Os escritórios assumem o risco, uma vez que pagaram muito pouco diante do montante nominal, e partindo do princípio de que débito prescrito não é débito extinto, valem-se da cobrança insistente e – muitas vezes – inconveniente, exercida por operadores de telefones, despreparados, desrespeitosos e arrogantes (mal remunerados) que vão propor acertos supostamente vantajosos para o devedor “se ver livre” da dívida/importunação.
- Pode-se Cobrar Dívidas Prescritas Cedidas?
A resposta apressada, ou superficialmente analisada é a que tais escritórios usam.
Sim, a princípio, prescrição não é decadência.
Se um indivíduo compra a crédito tijolos em um armazém de construção, por exemplo, e não paga. A dívida prescrevendo, perde o comerciante o direito de cobrar judicialmente, provocar o judiciário em seu favor, todavia, se o devedor resolver quitar a dívida é justo, honesto e legal o credor receber e quitar a dívida.
Mas, esse montante de dívidas cedidas em grosso pelas instituições bancárias, amiúde não se enquadram nesse caso, por que?
- Por se tratar de um terceiro cedido, dificilmente o escritório terá a base documental para fundamentar a cobrança, geralmente são passados contratos de créditos, ou planilhas sem qualquer comprovação fática da operação ou assinatura (normalmente associam a um contrato genérico de abertura de crédito em poder do banco, nunca da operação específica que foi remotamente feita), ou seja, há uma inscrição que denota uma dívida ou uma relação de um “contrato mãe” com o cedido a relação originária que possibilitou o crédito não foi cedida (nem poderia), ao contrário do armazém de construção, não tem o cedido uma nota fiscal, nota de transporte ou fatura dos tijolos. O cedido alegando que os têm, o devedor simplesmente poderia contestar, alegando até que pagou, e – baseado na prescrição – não precisa sequer mostrar comprovação, pois, a lei o autoriza a se desfazer dos documentos depois da prescrição. O escritório não tem em mãos qualquer título hábil, sequer para uma ação monitória, nem justificativa para a inação ao logo de dez e até vinte anos.
- O credor originário poderia consubstanciar e cobrar, embora sem gozar das possibilidades judiciais, a dívida prescrita, alegando, como visto, a não extinção, todavia, o que foi “vendido/cedido” ao escritório? Um direito prescrito? A cessão, na verdade, foi de uma possibilidade, jamais de um crédito. Há cessão de possibilidades no Direito brasileiro? Como se pode vender um direito que não poderá ser exercido? O objeto é certo e possível? Cessão de Crédito é, em substância, apenas uma cessão de direitos. Mas, o que dizer da cessão de um direito indisponível? Tal operação, sem exagerar, poderia até ser considerada um embuste. O banco cedeu algo que a justiça não reconhece como possível. Caso o devedor resolva – por qualquer improvável motivo – pagar, deveria pagar ao banco, não a um cessionário que comprou uma falácia. Isso não já ocorreu no Brasil quando a Jurisprudência determinou a impossibilidade da reabilitação de títulos prescritos da dívida pública para garantia ou quitação de dívidas vigentes?
- A prescrição extingue o direito de forma oblíqua. Muito não podemos detalhar nessa ocasião ou formato, mas, o conhecimento e a distinção desses dois institutos feitos desde a época do Direito Pretoriano, levar-nos-ia às digressões mais profundas. O que é possível resumir, todavia, é a intenção teleológica do legislador na adoção do conceito que se pode resumir: A prescrição deixa claro a sentença que o Direito não socorre aos que dormem; e, garante a volta da normalidade da vida, a segurança jurídica. Por essa simples conceituação se faz mister partir da dedução que os escritórios de cobrança perturbam a normalidade jurídica. Cobram um débito indiretamente extinto. Sem valor, extrapolam o que o Direito restringe, agem ilegalmente.
Considerações Finais
Com base em tais possibilidades, ou impossibilidades apresentadas: não é ilegal um devedor espontaneamente pagar um débito prescrito, mas não é legal, moral, ético e possível, um escritório de cobranças cedido importunar inconveniente um suposto devedor que não tem qualquer responsabilidade ou vínculo pela cessão de um direito juridicamente impossível, incobrável, ilegal Em ultima rátia, o débito é pagável, mas não cobrável.
O fruto dessa receita, pode ser – a priori – considerado até enriquecimento sem causa, mas isso é assunto para outro artigo e ademais, não se quer aqui taxar a verdade absoluta, lavramos uma tese, bom que se refute.
Espera-se para que a reflexão sempre prospere,
Referências:
AMARAL. Direito Civil – Introdução. Editora. Renovar. São Paulo: 2010. Comentado por MARIA HELENA DINIZ.
CARVALHO, João Andrades. Código de Defesa do Consumidor – Comentários- Doutrina- Jurisprudência. 1. ed. Rio de Janeiro: Aide Editora, 2000.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. ver., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
[1] Inclusive pelo órgão regulador brasileiro (Banco Central) na ocasião de considerar um banco sem liquidez, e, uma vez decretada a intervenção, passa os créditos “saudáveis”, contas corretes, investimentos para outra instituição no mercado. Esses créditos prescritos (podres) são descartados ou dados a fundo perdido, visto que a parte securitária, de certa forma, já compensa estas perdas.