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A Rebeldia da Autenticidade

Por Lúcio Delfino*

 

Vivemos uma era que glorifica a adaptação irrefletida ao fluxo, mas despreza a coerência interior. A paisagem cultural gira em ciclos vertiginosos: ideais se dissipam, ideias eclipsam as anteriores, rostos apagam outros mil, esquecidos na voragem do efêmero. Tudo flui e se esvai — valores, identidades, relações —, compondo a modernidade líquida descrita por Zygmunt Bauman, na qual a estabilidade é rara e a urgência por relevância supera a busca pela verdade. Ser notado ganhou primazia sobre ser autêntico. E, nesse torvelinho, honrar o que em si é essencial converteu-se em ato de rebeldia.

Sobre isso, Louis Lavelle ofereceu um antídoto precioso: a vocação é um chamado do ser, não uma aspiração social — uma essência velada que pulsa no invisível e pode manifestar-se apenas em quem a escuta.

Se Bauman diagnosticou a dissolução das estruturas, Lavelle exaltou a firmeza da interioridade. A adesão a esse núcleo próprio é, hoje, uma das expressões supremas de coragem. Como ensinava o filósofo espiritualista, o gênio não é um dom espetacular, e sim a realização serena daquilo que só em nós se encontra — e que desaparece se não for acolhido.

Sem rodeios: o presente erode a alma. As redes sociais moldam desejos em série, enquanto modas ideológicas forjam consensos voláteis. A cultura da comparação asfixia a autenticidade. O esplendor vazio ofusca a substância, e o imperativo “o que você deve ser” cala o “quem você é”. Ser singular, nesse cenário, é quase um escândalo — e, quiçá, a única maneira plena de lucidez.

A metáfora que melhor descreve essa fidelidade é a da chama solitária que subsiste contra o vendaval. Não depende de aplausos para existir, nem de plateia para brilhar. A cada sopro que tenta apagá-la — a pressa alheia, a sedução do instante, as narrativas enlatadas —, ela responde com a persistência e a graça de manter-se acesa.

Ser devoto do que há de mais irredutível no que se é implica recusa: rejeitar a ansiedade coletiva, evitar o atalho cômodo, renunciar ao sucesso imediato. Ao dizer não a esses apelos, abraça-se o que, no âmago, é mais laborioso, mais denso — e, por isso, mais fecundo. Como Emily Dickinson, que, reclusa em seu quarto, escreveu versos que sua época não soube reconhecer, mas cuja ressonância atravessa o tempo como sinais tênues de uma profundidade intocada. Foi exatamente sua entrega ao que nela se conservava oculto que produziu, paradoxalmente, uma claridade duradoura para gerações futuras.

Comprometer-se com o que perdura, em vez de moldar-se ao que passa, não é mero desafio: é um gesto de imanente verticalidade. Esse fundamento não está nos discursos exteriores; antes, habita o silêncio do que não se anuncia. E não frutifica por acaso: exige cultivo, atenção, esforço paciente — e uma dose generosa de resistência.

Numa travessia em que as certezas escorrem, a vocação é rocha. Ancorado nela — ainda que de modo anônimo, recolhido, sem aclamação —, talvez seja possível edificar vidas que valham a pena e que, na quietude, despertem em outros o impulso de fazer o mesmo. Raramente se saberá os nomes dos que não cederam. Contudo, a parcela do mundo que, por milagre, insiste em guardar algum sentido é tecida justamente por essas almas discretas, que, em sua jornada, abnegaram a facilidade e permaneceram leais ao que só nelas poderia florescer.

 

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Advogado. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPro.

 

 

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