A gestão da prova no processo penal: a atividade subsidiária do juiz
1 O DEVIDO PROCESSO LEGAL NA DIALÉTICA DO PROCESSO PENAL
O legislador constituinte ao estabelecer o princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da Constituição da República) deslocou para a acusação toda a carga probatória no escopo da imputação de um fato típico, antijurídico e culpável. Todavia, essa afirmação não isenta a parte de provar as alegações que fizer: onus probandi incumbit ei qui asserit.
Desse modo, a distribuição do ônus probatório, a partir de uma visão dialética do processo, deve privilegiar a paridade de armas em homenagem ao princípio constitucional do contraditório (par conditio). Entretanto, sob a égide da atual sistemática do processo penal, a partir de uma visão teleológica, transfere-se todo o ônus da prova para a acusação, a quem cabe provar a existência do crime e a respectiva autoria. Não obstante, como disse Manzini seria um “absurdo lógico” e uma manifesta iniquidade fazer-se prova negativa visando à demonstração da inculpabilidade (Oliveira, 2008; Manzini, 1952).
Com efeito, a acusação deve ser restrita para possibilitar a ampla defesa que, por ser tão importante alberga, no seu bojo, a autodefesa: direito de audiência e direito de presença. O primeiro é o de produzir prova em audiência pelo próprio acusado, por ocasião do seu interrogatório (autodefesa e meio de prova). O segundo corresponde ao direito de comparecer a juízo, a partir da conveniência e oportunidade, porquanto o acusado pode invocar o direito constitucional ao silêncio ainda que compareça a juízo, já que ele não está obrigado a produzir prova contra si próprio: nemo tenetur se detegere.
Por sua vez, o direito à defesa técnica, de natureza indisponível e irrenunciável, é aquele exercido por um profissional habilitado, em face da garantia constitucional do devido processo legal: ampla defesa e contraditório, não, apenas formal, de modo que o advogado deve estar regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil e também intimado para todos os atos do processo.
No que tange ao interrogatório, a partir da vigência da Lei 10.792/2003 o acusado e seu advogado devem ser intimados, inclusive da data do interrogatório de outro coacusado, porquanto, se assim não for os elementos de prova colhidos não poderão embasar uma condenação, haja vista a violação ao princípio do devido processo legal.
2 O DOGMA DA VERDADE REAL
Na sua gênese a prova judiciária tem por objetivo a reconstrução dos fatos trazidos ao debate entre as partes no processo, como metodologia utilizada na busca da verdade material. Enfatize-se, não obstante, que a verdade real não é e nunca foi compatível com a natureza do processo. Hodiernamente, grandes estudiosos do pensamento filosófico não adotam mais a existência de uma verdade de outrora como correspondência à realidade. O pragmatismo, orientação filosófica dos Estados Unidos da América, defende a construção de uma filosofia sem essência, procedimentalista, sem preocupação da verdade como correspondência e ou coerentismo. A fortiori, para o pragmatismo a verdade deve brotar de argumentos racionais.
Ensina Malatesta que a noção de certeza consiste em um estado da alma e só com isso determina-se o sujeito. Se a certeza tem uma natureza subjetiva, o sujeito natural não é e não pode ser senão a alma do julgador. “Em virtude de uma simples dedução, poder-se-á obter sem necessidade de qualquer outra indagação, sob o ponto de vista da racionalidade” (Malatesta, 1996).
Santo Agostinho e São Tomás de Aquino (MELENDO, 1978) buscavam compreender a verdade como correspondência da coisa com a ideia que o objeto representava; todavia, a ideia da coisa está no intelecto e a verdade não está nas coisas, senão na correspondência: coisa-intelecto. A distinção que a filosofia clássica faz entre verdade e verdadeiro tem sempre um sentido objetivo: o verdadeiro é o quê é – o falso é o que não é. “Assim, há uma identidade do verdadeiro com o ser (sein), enquanto que a verdade não é uma coisa (sache), mas consiste em pensar a essência das coisas como de fato elas são”. (ALVES, 2003)
A certeza da existência dos fatos investigados brota da coincidência das circunstâncias que se sucedem na realidade, porquanto, para Mittermaier a verdade decorre da concordância entre um fato da realidade e a ideia do aludido fato, plasmada na nossa consciência, em uma relação sujeito-objeto da filosofia essencialista.
A prova judiciária tem por objetivo definido trazer ao processo a reconstrução dos fatos, buscando-se a maior coincidência possível com a reprodução da realidade histórica, ou seja, com a verdade dos fatos na relação espaço-tempo. Tal tarefa é, certamente, das mais difíceis no processo penal. (Oliveira, 2008)
Para julgar o litígio o juiz deve conhecer a existência do fato sobre o qual versa a lide, que, segundo Carnelutti (1999), é o conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida ou insatisfeita. Por isso, às partes incumbe, com a produção da prova, convencer o juiz de que os fatos, realmente, existiram, ou não; é o juiz quem vai dizer se o acusado é culpado ou inocente.
O dogma da verdade real, que até bem pouco tempo tinha a incumbência de legitimar excessos e desvios de autoridades públicas, além de macular o processo penal e a própria verdade processual, atendia muito mais a um sistema inquisitivo do que acusatório em que o princípio da igualdade, como corolário da dignidade humana, sob o manto da legalidade, passou a permitir a existência não só do devido processo legal como corolário da amplitude de defesa, do contraditório e da licitude da prova.
3 O PRINCÍPIO DA LIBERDADE DAS PROVAS PELO JUIZ
O art. 155 do Código de Processo Penal, pela lente do legislador reformista dispõe, verbis:
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
Em thema probandum vige o princípio da liberdade das provas pelo julgador, como corolário do princípio da livre convicção ou persuasão racional da prova, que obriga o juiz a examinar todos os pontos relevantes.
A reforma do processo penal, relativa à prova – Lei 11.690/2008 estabelece que o acusado não pode ser condenado, exclusivamente, com base na prova indiciária produzida na fase extrajudicial, sem o crivo do contraditório que só ocorre em juízo. Não obstante, pode haver absolvição sumária com base, unicamente, na prova indiciária.
En passant, no sistema legal de produção de prova, vigora o princípio da relativização ou não hierarquização, sendo que o valor e a credibilidade dos elementos de prova serão sopesados pelo juiz, em uma mesma escala valorativa, não ficando a depender, segundo o magistério de Frederico Marques, de critérios legais a priori discriminados (Marques, 2000).
Deduz-se, da assertiva em tela que o princípio do convencimento livre decorre do princípio da reserva da função jurisdicional afeta ao juiz, como resultado da garantia da liberdade de avaliação da prova (mitigada), fundada a convicção sobre a qualificação jurídica da infração penal e arbitramento motivado da correspondente sanção penal (Prado, 2001).
Malgrado os pontos da reforma, contudo, o juiz continua a ser o destinatário da prova e a finalidade não é outra senão a de produzir a convicção ou persuasão do juiz (Melendo, 1978).
Com efeito, a exegese do art. 156, inciso I, do Código de Processo Penal, permite ao juiz, na fase pré-processual a produção de provas consideradas urgentes e relevantes, observado o princípio da proporcionalidade e o inciso II prevê a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.
A redação do inciso I, com interpretação restritiva, outorga ao julgador antecipar, cautelarmente ad perpetuam rei memoria prova considerada urgente e relevante.
A ressalva ao inciso II, feita pelo legislador reformista, radica que o juiz somente em casos excepcionais deve deliberar a produção da prova de ofício. Assim, o campo de atuação do juiz, na área da pesquisa probatória, deve ser por ele próprio delimitado, no escopo de resguardar a sua imparcialidade (Tourinho Filho, 2009).
Neste diapasão, requer-se uma atuação sensível do juiz para evitar a quebra da imparcialidade, como adverte Tourinho Filho, verbis:
Ademais, o juiz que desce do seu pedestal de órgão superpartes e destas equidistantes, para proceder à pesquisa e colheita do material probatório, compromete, em muito, a sua imparcialidade e “no se comporta funcionalmente como auténtico órgano jurisdicional”.
4 A GESTÃO DA PROVA NA REFORMA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Na novel sistemática da gestão da prova, de iniciativa das partes, a teor do art. 212 do referido Diploma Processual Penal, que trouxe para o âmbito do processo penal o sistema do cross examination e do common law, a função do magistrado passa a ser subsidiária e somente sobre os pontos não esclarecidos pelas partes, é que o juiz está autorizado a complementar a prova, como estabelece o parágrafo unico do art. 212.
No exercício da função subsidiária da prova, o julgador está jungido à delimitação dos fatos que as partes pretendem provar. Assim, a ele cabe, somente, realizar diligências para dissipar dúvida se esta já estiver delimitada pelo debate travado entre as partes, devendo o juiz ser parcimonioso para esperar o requerimento das partes. Se, porventura a dúvida não for objeto da controvérsia, quer-me parecer que ao juiz, na sua atividade probatória complementar, não cabe buscar uma prova nova fora dos autos.
Neste sentido, bastante elucidativa é a opinião de Melendo (Melendo, 1978), ipsis litteris:
[…] a função do juiz não é averiguar; essa função é das partes, porém não ao julgador; ao juiz pode ser necessário aclarar, clarificar algum aspecto do que já está discutido, porém nunca ir à busca dessa verdade que devem as partes procurar trazê-la.
A fortiori ratione, a atividade probatória complementar do juiz, não significa dizer que o princípio do livre convencimento foi derrogado, simplesmente pela iniciativa probatória das partes. Se esta assertiva fosse verdadeira estar-se-ia diante de um paroxismo, de consequências danosas para a administração da justiça, posto que haveria dificuldade para o exercício da atividade probatória do juiz, porquanto ele não pode ser considerado um “convidado de pedra” ou mero espectador da luta das partes.
O art. 212, parágrafo único, do CPP não dá margem à dúvida de que a gestão da prova, outrora centrada na pessoa do juiz, em decorrência do sistema presidencialista, deslocou a iniciativa probatória para o âmbito de atividade das partes, mantendo o juiz um pouco equidistante da primazia da prova.
Não se discute, apesar disso, que a prova colhida nos autos, pelas partes, destina-se ao juiz para formação do livre convencimento. Todavia, o juiz não pode substituir as partes; se assim o fosse ele seria parte. Assim, a gestão da prova, de iniciativa das partes, não nega vigência ao comando normativo, insculpido no art. 156 do CPP.
Máxime, se houver a necessidade de o juiz arrolar testemunhas, elas serão inquiridas, utilizando-se do mesmo critério do cross examination.
Igual raciocínio deve ser empregado na acareação, porque o procedimento da produção de prova, perante o juiz singular, é um só. Porém, diferente daquele afeto ao Tribunal do Júri, como se depreende da redação do art. 473 do CPP, com as modificações da Lei 11.689/08, sob o resquício do sistema presidencialista.
No adversary ou sistema de partes, modelo típico do common law, a atividade do juiz é restrita à verificação da legalidade da produção, introdução e valoração da prova. Nos Estados Unidos da América há dois modelos distintos de jurisdição: um de competência dos jurados e outro de competência do juiz singular. No primeiro sistema a atividade do juiz circunscreve-se ao controle da legalidade da prova; no segundo a solução da causa cabe, unicamente ao juiz e, a este, cumpre a determinação de esclarecer pontos controvertidos.
Com efeito, o intuito do legislador da reforma processual de 2008 ao importar o adversary system para o âmbito do processo penal brasileiro, foi o de tornar eficiente a colheita da prova oral. No sistema presidencialista anterior o magistrado ao refazer uma pergunta a uma testemunha poderia alterá-la até mesmo involuntariamente e, com isso, causar prejuízo às partes (Mendonça, 2008).
Não obstante, no Excelso Pretório é pacífica a jurisprudência que só admite nulidade pela inversão da ordem fixada no art. 212 do CPP, para formulação de perguntas, quando demonstrado prejuízo pela parte:
Ementa: Habeas Corpus. Processual Pena. Audiência de Instrução. Inversão da Ordem de Inquirição das Testemunhas. Artigo 212 do Código de Processo Penal. Arguição de Nulidade. Prejuízo. Demonstração. Ausência. Ordem Denegada. I – Não é de se acolher a alegação de nulidade em razão da não observância do procedimento de formulação de perguntas às testemunhas, estabelecida no art. 212 do CPP, com redação conferida pela Lei 11.689/2008. Isso porque a defesa não se desincumbiu do ônus de demonstrar o prejuízo decorrente da inversão da ordem de inquirição das testemunhas. II – Esta corte vem assentando que a demonstração de prejuízo, a teor do art. 563 do CPP, é essencial à alegação de nulidade, seja ela relativa ou absoluta, eis que “o âmbito normativo do dogma fundamental da disciplina das nulidades pás de nullitè sans grief compreende absolutas” (HC 85.155/SP, Rel. Min. Ellen Gracie). Precedentes. III – O acórdão ora questionado está em perfeita consonância com decisões de ambas as turmas desta Corte no sentido de que a inobservância do procedimento previsto no art. 212 do CPP pode gerar, quando muito, nulidade relativa, cujo reconhecimento não prescinde da demonstração do prejuízo para a parte que a suscita. IV – Ordem denegada”. (HC 117102/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski).
Em julgado por arguição semelhante, a Min. Carmen Lúcia do STF deixou assentado que “[…] O princípio do pás de nullitè sans grief exige, sempre que possível, a demonstração de prejuízo concreto pela parte que suscita o vício” (HC 103525/PE).
Pacelli afirma que o legislador reformista assumiu o modelo acusatório do processo penal, no qual o juiz deve assumir uma posição de neutralidade na produção da prova, evitando o risco de o magistrado substituir o órgão da acusação. Desta maneira, as partes começam a inquirição de testemunhas e o juiz, se necessário a complementa (OLIVEIRA, 2008).
Em síntese conclusa: (i) o juiz não pode realizar audiência sem a presença do representante do Ministério Público, a quem incumbe provar a acusação, assegurados ao acusado a ampla defesa e o contraditório e (ii) de acordo com a gestão da prova, novidade da reforma de 2008, as testemunhas devem ser inquiridas na forma preconizada pelo art. 212, parágrafo único, do CPP, em face do princípio acusatório.
Notas e Referências:
* Texto originalmente publicado na Revista de Direito do IAP | e-ISSN: 2526-1592 | Recife – PE | v. 1 | n. 1 | p. 110-118 | Jan/Dez. 2016.
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