A propriedade imobiliária adquirida por sucessão hereditária prescinde do registro no fólio real para se constituir
É sabido que a transferência da propriedade de bem imóvel far-se-á mediante o registro do título translativo perante o Cartório de Registro de Imóveis do local onde situado o bem, conforme disposição expressa do artigo 1.245 do Código Civil, do qual decorre o brocardo “quem não registra não é dono”.
Contudo, referida norma é expressamente restrita aos atos entre vivos, não podendo ser aplicada à aquisição derivada da propriedade por sucessão hereditária, haja vista o Princípio da Saisine positivado no artigo 1.784 do Código Civil.
Em decorrência do referido princípio, a herança é transmitida ‘desde logo’ aos herdeiros legítimos e/ou testamentários, pois, a personalidade civil cessa com a morte, o de cujus já não pode ser proprietário e não pode haver direito sem o respectivo titular.
Assim, no momento do óbito a propriedade do bem imóvel é imediatamente transferida aos herdeiros em condomínio, sendo cada quinhão individualizado com a expedição do formal de partilha.
Portanto, na aquisição de imóvel por ato causa mortis, o registro do formal de partilha no Serviço de Registro de Imóveis não possui natureza constitutiva da propriedade, sendo admitido no fólio real (artigos 172 e 221, IV, da Lei 6.015/1973) para manter a continuidade da matrícula imobiliária e garantir a disponibilidade do imóvel pelo titular.
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, no julgamento da apelação cível 1.0000.22.164435-4/001, deu provimento ao recurso do consumidor para condenar a concessionária de energia elétrica à proceder à ligação do serviço no imóvel rural ocupado pelo autor sem qualquer custo porquanto comprovado os requisitos do Programa Luz Para Todos.
Referido programa do Governo Federal exige que “não exista outra unidade consumidora com fornecimento de energia na propriedade”.
Entendeu o Tribunal Mineiro que:
- na aquisição derivada da propriedade imobiliária por sucessão hereditária o conceito de propriedade não pode ser confundido com a propriedade registral;
- pelo Princípio da Saisine, desde a abertura da sucessão, a herança é imediatamente transmitida aos herdeiros legítimos e/ou testamentários, não carecendo da formalização do registro na serventia imobiliária;
- até a expedição do formal de partilha os herdeiros têm a propriedade do bem imóvel em condomínio, mas tão logo seja expedido, é possível atribuir a propriedade individual a cada um dos coerdeiros;
- o consumidor comprovou que sua propriedade rural ainda não havia sido beneficiada pelo Programa Luz Para Todos, pois, embora a matrícula imobiliária abarcasse o seu quinhão e o de outro herdeiro já atendido pelo programa, as unidades imobiliárias deveriam ser consideradas em separado porquanto apresentado o formal de partilha.
Eis a ementa do referido julgado:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL – CERCEAMENTO DE DEFESA – INOCORRÊNCIA – IMÓVEL RURAL – INSTALAÇÃO GRATUITA DE ENERGIA ELÉTRICA – PROGRAMA “LUZ PARA TODOS” – REQUISITOS – COMPROVAÇÃO – NEGATIVA EQUIVOCADA DA CONCESSIONÁRIA – DEFICIÊNCIA NO SERVIÇO PÚBLICO – DANO MORAL CONFIGURADO. 1. Não caracteriza cerceamento de defesa o indeferimento de provas, quando o acervo probatório constante dos autos é suficiente para a solução da lide. 2. São beneficiárias do Programa “LUZ PARA TODOS” as famílias residentes na área rural, que ainda não tenham acesso ao serviço público de energia elétrica, com prioridade de atendimento para famílias de baixa renda inscritas no Cadastro Único de Programas Sociais do Governo federal. 3. Estando o imóvel devidamente individualizado mediante a apresentação do formal de partilha, não procede a negativa da concessionária em não fornecer gratuitamente o serviço de energia elétrica ao argumento de que o imóvel já foi atendido pelo Programa “LUZ PARA TODOS”. 4. A privação de serviço essencial configura, por si só, dano moral, mormente quando a negativa administrativa de disponibilização do serviço está fundamentada em argumento equivocado.
(TJMG – Apelação Cível 1.0000.22.164435-4/001, Relator(a): Des.(a) Maria Cristina Cunha Carvalhais, 2ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 29/11/2022, publicação da súmula em 01/12/2022) (destaquei)
No caso apreciado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o consumidor teve negado o seu pedido de ligação gratuita de energia elétrica em seu imóvel rural, sob o fundamento de que a unidade imobiliária já havia sido beneficiada pelo Programa Luz Para Todos.
Contudo, não foi observado pela concessionária o formal de partilha apresentado pelo consumidor, documento suficiente a comprovar a sua propriedade imobiliária individualizada em relação à gleba pertencente a outro herdeiro, que havia sido contemplada pelo aludido programa do Governo Federal.
O caso revela a importância de se conhecer a natureza do registro do formal de partilha no Serviço de Registro de Imóveis – não constitutiva – porquanto na aquisição da propriedade por ato causa mortis não se aplica o artigo 1.245 do Código Civil, mas o artigo 1.784 do mesmo diploma legal.
O aparente desconhecimento pela concessionária de que a sucessão hereditária é forma de aquisição de propriedade, que prescinde do ingresso no fólio real para constituir-se, privou o consumidor de um serviço essencial por longo período, o que ensejou a fixação de indenização por dano moral.