Razão de decidir

Aplicabilidade das normas de direito processual e direito material introduzidas ou modificadas pela Lei 14.230/2021

A Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa) foi modificada pela Lei 14.230/2021 com a revogação de alguns artigos, criação de novos dispositivos e algumas alterações redacionais.

Dentre os dispositivos revogados, introduzidos ou modificados temos normas de caráter processual e normas de direito material, cuja aplicabilidade é imediata nos termos do artigo 6º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (“A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o aro jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”).

Não obstante a aplicação imediata, o novo regramento de natureza processual não será aplicado de forma retroativa em homenagem à teoria do isolamento dos atos processuais.

No que tange às normas de caráter material, além da aplicação imediata, poderão retroagir se houver benefício para a parte ré.

A retroatividade benéfica tem fundamento no artigo 9º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, dispositivo que não se reduz ao Direito Penal, podendo ser aplicado sempre que houver inovação de uma norma sancionadora.

O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, ao analisar o processo 1.0000.21.244811-2/001, à unanimidade, não conheceu da remessa necessária e, por maioria, negou provimento ao recurso de apelação.

Entendeu o Tribunal Mineiro que:

a) a remessa necessária, realizada com fundamento no artigo 19 da Lei 4.717/1965, não deve ser conhecida porquanto atualmente a Lei 8.429/1992 prevê expressamente o não cabimento do reexame necessário (princípio da especialidade);

b) as modificações introduzidas pela Lei 14.230/2021 são aplicáveis de forma imediata, podendo haver retroatividade da norma de direito material, se mais benéfica ao réu;

c) à petição inicial confeccionada antes da Lei 14.230/2021 não se aplica o § 10-D do artigo 17 da Lei 8.429/1992.

Eis a ementa do referido julgado:

 

EMENTA: REEXAME NECESSÁRIO – APELAÇÃO CÍVEL – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – INOVAÇÕES DA LEI 14.230/2021 – APLICAÇÃO IMEDIATA – ARTIGO 6º DA LINDB – NORMAS DE DIREITO MATERIAL – RETROATIVIDADE BENÉFICA – CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – NORMAS DE DIREITO PROCESSUAL – APLICAÇÃO IMEDIATA, MAS NÃO RETROATIVA – REMESSA NECESSÁRIA – DESCABIMENTO – NÃO CONHECER – PETIÇÃO INICIAL ANTERIOR À REFORMA – INDICAÇÃO DE MAIS DE UMA CONDUTA TÍPICA – POSSIBILIDADE – CONVÊNIO – AUSÊNCIA DE PRESTAÇÃO DE CONTAS – ILEGALIDADE – COMPROVAÇÃO – ELEMENTO SUBJETIVO DOLO – NÃO DEMONSTRADO – IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO – RECURSO NÃO PROVIDO. 1. A Lei 14.230/2021 implementou reformas na Lei 8.429/1992 com a alteração, exclusão e inserção de dispositivos de natureza de direito material e direito processual. 2. Respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, a lei em vigor terá efeito imediato e geral (art. 6º LINDB), autorizada a retroatividade da norma de direito material ulterior mais benéfica (art. 9º CADH). 3. A mera ilegalidade não configura, por si só, ato de improbidade administrativa, este que exige a comprovação do elemento subjetivo dolo e do efetivo enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário ou ofensa aos princípios da Administração Pública.

V.v. EMENTA: REMESSA NECESSÁRIA – AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – APLICAÇÃO, POR ANALOGIA, DA LEI DA AÇÃO POPULAR – REMESSA NECESSÁRIA EM SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA – ENTENDIMENTO SUPERADO – ALTERAÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI N. 14.230/2021 NA LEI DE IMPROBIDADE – NÃO CABIMENTO DE REEXAME – APELAÇÃO CÍVEL – EX-PREFEITO – IRREGULARIDADE NA PRESTAÇÃO DE CONTAS DE CONVÊNIO – OBRA EXECUTADA – CAPITULAÇÃO INICIAL NOS ARTS. 10, I, VI, IX, X E XI E 11, I, II, IV E VI DA LEI N. 8.429/1992 – VEDAÇÃO ENQUADRAMENTO EM MAIS DE UM TIPO LEGAL PARA A MESMA CONDUTA ÍMPROBA – ART. 17, § 10-D INCLUÍDO PELA LEI N. 14.320/2021 – PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADM INISTRATIVO SANCIONADOR – NORMAS MAIS BENÉFICAS AO RÉU – RETROATIVIDADE – TEMA N. 1.199 – IMPOSSIBILIDADE DO PROSSEGUIMENTO DO JULGAMENTO COM BASE NOS TIPOS INDICADOS NA PETIÇÃO INICIAL – IMPOSSIBILIDADE DE EMENDA À PETIÇÃO INICIAL PARA A ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR E DO PEDIDO – ART. 329, I E II, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – INDEFERIMENTO, DE OFÍCIO, DA PETIÇÃO INICIAL – MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA – PROCESSO EXTINTO, SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO – ART. 485, I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – RECURSO DE APELAÇÃO PREJUDICADO.1. Diante da recente alteração da lei de improbidade administrativa, que expressamente estabelece que não haverá remessa necessária das sentenças proferidas com base na referida lei, resta superado o entendimento jurisprudencial acerca da aplicação, por analogia, do art. 19 da Lei da Ação Popular. 2. Segundo fixado no julgamento do Tema n. 1.199/STF, a Lei n. 14.230/2021 aplica-se aos fatos pretéritos, desde que não tenha ocorrido o trânsito em julgado da decisão condenatória. 3. Conforme disposto no art. 17, § 10-D da Lei n. 14.230/2021, é vedado o enquadramento da conduta em mais de um tipo legal. 4. Diante da imputação de vários tipos para uma só conduta, a ação deve ser extinta, sem julgamento do mérito, não sendo possível determinar a emenda da petição inicial para a alteração do pedido e da causa de pedir (CPC, art. 329, II). 5. Petição inicial indeferida de ofício. Processo extinto, sem resolução do mérito, na forma do art. 485, I, do Código de Processo Civil. 6. Recurso de apelação prejudicado. (TJMG – Ap Cível/Rem Necessária 1.0000.21.244811-2/001, Relator(a): Des.(a) Maria Inês Souza, Relator(a) para o acórdão: Des.(a) Maria Cristina Cunha Carvalhais, 2ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 30/04/2024, publicação da súmula em 02/05/2024)

 

No caso apreciado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, a relatora indeferiu a inicial da ação de improbidade administrativa e julgou extinto o feito, sem apreciar o mérito, por entender que a peça de ingresso violou o artigo 17, § 10-D, da Lei 8.429/1992 apontando mais de um tipo legal para o mesmo ato ímprobo.

A primeira vogal, relatora para o acórdão, apresentou divergência entendendo pela inaplicabilidade ao caso do referido dispositivo porquanto introduzido na Lei de Improbidade Administrativa apenas em 2021 pela Lei 14.230, ou seja, em momento posterior à confecção da petição inicial.

O entendimento sufragado no voto condutor do acórdão é no sentido de que as normas de direito processual, embora aplicáveis de forma imediata, não poderão retroagir, devendo respeitar os atos processuais já praticados.

O voto vencedor destaca ainda que as regras de direito material, também aplicáveis imediatamente, poderão ser aplicadas retroativamente, se beneficiarem o réu.

O julgado revela a importância de fazer distinção entre as normas de direito processual e de direito material a fim de definir se haverá ou não aplicação retroativa.

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Glaucia Chiaradia
Mestre em Direito Empresarial. Assistente Judiciário (2009-2014) e Assessora Judiciária (2014 em diante) no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).

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